Terça-feira, 29 de Setembro de 2009

LENDAS DO INTERIOR DO BRASIL

 

 
O Brasil é um país continente, rico em tradições e lendas. Grande parte delas estão ligadas aos costumes herdados dos colonos europeus, dos nativos indígenas e dos negros vindos da África. Neste artigo foram reunidas três lendas de partes opostas do país, como a da Mãe de Ouro, típica do Centro-Oeste, que teve a sua história feita em cima do desbravamento dos bandeirantes e das pedras preciosos ali encontradas; do Vaqueiro Misterioso, mítico personagem do interior nordestino, que tem nas vaquejadas uma das festas mais tradicionais do sertão; e, a lenda das Amazonas, que roubada da mitologia grega, deu origem ao nome do maior rio do mundo em águas, o Amazonas, tornando-se parte do folclore do norte do Brasil.
O Vaqueiro Misterioso é o estereótipo do herói da caatinga, à primeira vista um retirante, como grande parte dos habitantes da chamada região da “Civilização do Couro”, mas que se transforma no mais valente dos homens, um autêntico sobrevivente de todas as diversidades do sertão. O herói incansável aparece e desaparece, sem deixar um nome, a sua identidade é o próprio sertão nordestino.
A Mãe de Ouro nasceu da fantasia dos solitários garimpeiros, que em busca da riqueza, construíram o Brasil central. A lenda corre no rio das Garças, que em outros tempos foi rico em pedras preciosas. O fago-fátuo desprendido das ossadas dos animais mortos causava medo aos garimpeiros, ao mesmo tempo eram vistos como os pingos de luz de uma mulher que trazia as riquezas da região, escondidas em suas grutas e no leito dos seus rios.
As Amazonas, lenda da terra das mulheres guerreiras e sem homens, vem da antiga mitologia grega. Em 1542, os espanhóis chegaram a um imenso rio que chamaram de “Mar Dulce”. Frei Gaspar de Carvajal, escrivão da frota espanhola, revela ter sido atacado por mulheres guerreiras, nuas e com arcos nas mãos. Associou-as ao mito das Amazonas, e a partir de então, o grande rio foi batizado de rio Amazonas, sendo a lenda grega transportada para o imaginário brasileiro.

O Vaqueiro Misterioso

O sol do sertão queima sem piedade o solo. Valentes mandacarus resistem imponentes, tornando-se o único verde no meio de toda a caatinga. No meio do cenário agreste, aparecia a figura misteriosa de um vaqueiro. Surgia do nada, ao longe trazia o retrato do sertão cortante e seco, trajando vestes rotas, chapéu cambaio sobre o rosto queimado. Montava a sua égua esquálida, que trazia um ar de cansaço, sôfrego e sem esperança, como o era o mais valente dos retirantes. Quando surgia no horizonte, o Vaqueiro Misterioso era a própria visão do apocalipse sertanejo.
Conforme se aproximava dos povoados e das fazendas, a imagem do vaqueiro transformava a mais incrédula retina, o seu semblante trôpego dava passagem para os gestos rápidos, para uma vitalidade contagiante. A sua égua dantesca deixava os infernos da seca, mostrando-se a mais valente das bestas, um autêntico e indomável corisco.
E o Vaqueiro Misterioso empregava-se momentaneamente pelas fazendas, tornando-se o mais hábil na lida, com a força de dez homens. Embrenhava-se na caatinga atrás do gado fugitivo, trazia no laço quantos se lhe deparassem, sem mostrar qualquer cansaço ou fatiga. Tão logo encerrava as tarefas, recebia a paga e partia, deixando frustrados os fazendeiros que tudo davam para tê-lo ao seu serviço para sempre, pois sabiam, igual a ele não existia homem algum no sertão. Quem era aquele vaqueiro? De onde vinha? Para onde ia? Ninguém sabia ao certo. Por isto era chamada de Vaqueiro Misterioso. Tão afamado ficou, que os violeiros do sertão cantavam o seu “ABC” nas praças dos vilarejos, e os cordéis das feiras ilustravam as suas façanhas.
Finalizada a apartação do gado, o nordeste iluminava-se para a sua festa mais tradicional, a vaquejada. Homens viris mostravam o canto triste de vaqueiro, que chamavam de aboio. Após o som dos aboios, a vaquejada tinha início. Quando os animais eram soltos, surgia do nada, o Vaqueiro Misterioso. Vinha intrépido montado na sua égua branca. De repente reluzia apenas a sua brava imagem, a derrubar pela cauda, os mais valentes bois. Seu corpo trespassava a gravidade, como se voasse no galope do vento, pondo ao chão o mais feroz dos marruás. Sua sombra entrelaçava-se ao corpo, enfrentando o mais bravio dos bois, domando-o e pondo-lhe o tapa-olho, fazendo-o urrar como um cordeirinho.
Aos aplausos, o Vaqueiro Misterioso encerrava a sua atuação. Era o grande herói da festa. Subia ao palanque, onde recebia a fita amarela de campeão, amarrada ao seu braço. Humildemente sorria, jogando a fita à mais bela das donzelas que por ele suspirava. Todas elas debatiam-se para levar a fita de tão viril herói. Muitas entregavam a ele o seu coração, mas a todas o misterioso andarilho ignorava.
Após ser aclamado por todos, ele comia e bebia como nenhum outro era capaz. Cantava ao lado dos violeiros. Dividia com todos a sua alegria fugaz. Depois do rega-bofe, ele guardava um pouco de carne seca na bolsa de couro que trazia, preparava a sua égua e partia, assim como viera, distanciando-se no horizonte. Ainda ouvia atrás de si, quem lhe gritava, a perguntar-lhe pelo nome. Não respondia. Ninguém sabia. Era o Vaqueiro Misterioso, que desaparecia no meio da caatinga, como a chuva que não caiu no sertão.

A Mãe de Ouro

Maria caminhava pelas beiras do rio das Garças. Todas às vezes que olhava para as águas do rio, seu coração sentia o conforto de que seria feliz, como se a felicidade emergisse das profundezas do seu leito. Caminhava desatenta, quando chegou à gruta onde o rio desaparecia. Ali, diziam os seus antepassados, morava a Mãe de Ouro. Maria sorriu para a gruta, como se sorrisse para a felicidade prometida. Seus olhos de donzela sonhadora miraram no horizonte, quando percebeu que a tarde já ia avançada, e o Sol, muito breve, cederia o seu reinado para a Lua.
Maria pensou em voltar para casa, antes que se fizesse escuro. O frescor da tarde trouxe uma nuvem de pirilampos, ansiosos pela noite. No meio da luz dos insetos surgiu, de dentro da gruta, uma linda mulher, que trazia uma vasta cabeleira reluzente. Era a Mãe de Ouro, a sair para o mundo. Sua beleza fulgurante não poderia ser revelada ao Sol, para que por ele não fosse ofuscada. Só saía da gruta ao torpor da tarde, já pronta para o encontro com a Lua, de quem era irmã gêmea.
O rosto de Maria iluminou-se diante do esplendor reluzente dos cabelos da Mãe de Ouro. Deles caiam pingos de luz, que refletiam todas as cores e, ao contacto com o chão, transformavam-se em pedras preciosas. Maria viu a Mãe de Ouro iniciar a sua trajetória pelo céu. Sua luz refletia um imenso arco-íris, os pingos dos seus cabelos assumiam as sete cores do arco. Maria sabia que, ao ver a Mãe de Ouro, se fizesse um pedido antes que um pingo de luz caísse na terra, seria atendida, tornando-se uma mulher feliz. Assim, cerrou os olhos e fez o seu pedido.
Ao fim da visão, Maria retornou para a sua casa. Desde então passara a pertencer à Mãe de Ouro. Nas noites de lua cheia, ao adormecer, ela, silenciosamente, deixava o seu corpo na cama, e era transportada ao palácio da Mãe de Ouro.
No palácio, escondido nas profundezas da gruta, havia uma luz que reluzia as cores de todas as pedras preciosas. Era lilás nos quartos de ametistas, branco reluzente nos de diamantes, vermelhos nos de rubis, verdes nos de esmeraldas, azuis nos de safira, amarelos nos de topázios...
Ao chegar ao palácio, Maria teve o seu corpo coberto por um traje de pedras preciosas, vistoso, rico e translúcido. Ela foi levada para o salão principal, onde se ouvia as mais belas músicas, cantadas por jovens sereias; danças de belas mulheres e gênios travestidos de belos rapazes; o amor e a alegria transbordavam por todos os cantos do palácio.
Maria passou a usufruir todos os encantos daquele mundo. Ao seu lado estavam outras mulheres que, assim como ela, pertenciam à Mãe de Ouro. Viu quando uma, ao falar com outra, transformou-se em carvão. Uma das regras era que, nenhuma mulher poderia falar ou tocar na outra.
No fim da noite, um gênio encantando, trazendo o corpo viril de um homem, amou e possuiu Maria, fazendo-a a mais feliz das amantes. No meio do leito do rio, as suas águas tomaram forma de uma cama nupcial. Maria transbordou de amor.
Por fim o galo deu o seu primeiro canto. As mulheres encantadas saíram da gruta, em forma de um grande nevoeiro de nuvens brancas. Transformada em uma nuvem leve e alva, Maria voltou para a sua casa, retornou ao seu corpo, vestiu a sua pele e despertou, pronta para viver a sua vida normalmente, até a próxima lua cheia, quando os encantos da Mãe de Ouro virão buscá-la novamente.

As Amazonas

No Reino das Pedras Verdes, no coração da selva amazônica, contam os índios, vivem mulheres guerreiras, que caçam e pescam os seus alimentos, trabalham na roça, onde cultivam a mandioca, tecem redes e tecidos coloridos, fazem vistosas cerâmicas, adornos de penas para os corpos esbeltos. São mulheres que dividem tudo por igual e, naquele reino, não vivem homens. Elas são as Amazonas.
O Reino das Pedras Verdes é governado por uma rainha. Cabe a ela a pajelança e os rituais de purificação aos deuses da mata. A rainha das Amazonas é quem organiza as festas e as tarefas de trabalho. Seu reinado é curto, dura apenas cinco luas cheias de abril. Por isto, de cinco em cinco anos, o reinado é passado a uma virgem de vinte anos.
Para demarcar o reino, as Amazonas fabricam um amuleto, o muiraquitã, uma raridade que nenhum índio de toda a selva amazônica sabe como é feito. A matéria-prima para fabricá-lo só é encontrada na terra das mulheres guerreiras.
Uma vez por ano, no mês de abril, as mulheres guerreiras recebem os homens, para que assim, possam acasalar, garantindo a prole e as tradições. Na noite de lua cheia de abril, uma grande claridade ilumina as águas límpidas do grande lago Jaci-Uaruá. Refletidas pelos raios do luar, as Amazonas mergulham no lago, indo até as suas profundezas, de onde trazem uma grande quantidade de barro. É deste barro limoso que modelam as figuras de rãs, peixes e tartarugas. O barro tem que ser modelado às pressas, ainda debaixo da água, antes que o luar endureça o limo verde.
Dos animais modelados, a rã, símbolo da fertilidade das mulheres guerreiras, transforma-se em um amuleto de acasalamento, que ao ser perfurado, é posto nos seus pescoços. Elas estão prontas para naquela noite, receberem os mais viris e saudáveis índios das tribos vizinhas. É a noite nupcial do luar de abril.
Após uma noite ardente de amor, as Amazonas estão fecundadas. Para os índios que lhe deram uma filha, elas retribuem com o muiraquitã. Os que lhe deram um filho no ano anterior, terão que levar o menino para ser criado em suas aldeias, posto que no Reino das Pedras Verdes só vivem mulheres, são elas as Amazonas, as mulheres sem maridos.

Ilustrações: José Lanzellotti
Adaptação livre de Jeocaz Lee-Meddi para textos de Brasil, Histórias, Costumes e Lendas
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Sábado, 29 de Agosto de 2009

AVES BRASILEIRAS E SUAS LENDAS

 

 

No imaginário popular há certos animais que por sua imponência, são associados ao folclore regional, originando lendas que tentam explicar a natureza, ou mesmo a tornar épica a construção de um determinado povoado. No Brasil imaginário, onças, peixes, cobras e tantos outros animais, suscitaram lendas e crendices que atravessaram os séculos, da colonização à nação, formando a cultura popular transmitida de pai para filho. Em particular as aves, pelo seu canto, pela capacidade de voar, pela beleza das plumagens ou pela falta dela, suscitam muitas crendices populares e as mais magníficas lendas.
Três lendas fazem parte deste artigo, todas elas envolvendo aves, a do urutau, ave noturna dos sertões brasileiros; a da gralha azul, símbolo do Estado do Paraná; e, a do urubu, a mais brasileira das aves, existente em todo o país.
A Festa no Céu é uma lenda que existe não só no Brasil, como em Portugal, o que nos remete a crer que seja de origem lusitana. Envolve a destreza do urubu diante da natureza e a esperteza do sapo, indo contra as limitações do seu corpo. Em outras versões o sapo é trocado pela tartaruga, mas o desejo de alcançar o céu como as aves, prevalece.
O Urutau conta a lenda da mulher que por ser muito feia, foi abandonada pelo homem que amava e transformada nesta ave de canto melancólico, de hábitos noturnos. Famosa entre os sertanejos, a ave é tida como símbolo de sorte para uns e como mau agouro para outros. É uma das aves mais feias do sertão, recebendo vários nomes: jurutaí, mãe-da-lua, jurutau, curiango, bacurau grande ou chora-lua.
A Gralha Azul traz a lenda de uma ave típica do sul. É símbolo da construção do Paraná, do homem que ao colonizar a terra e cultivá-la para a sua subsistência, destrói a sua mata e os pinhais, árvore símbolo daquelas terras. A gralha azul, de cabeça preta, com o seu canto estridente, é a esperança da conservação da natureza, mesmo diante da colonização do homem.

A Festa no Céu

Uma grande festa no céu foi anunciada aos animais. Para desencanto de muitos, só foram convidadas as aves, por possuírem asas e lá poder chegar. Ao saber da festa, o sapo Cururu não se conformava em não ter sido convidado. Mesmo sabendo da impossibilidade de ir ao céu, espalhou por toda a mata que também tinha sido convidado, fazendo com que os outros animais dele risse e escarnasse.
Cururu passava os dias na lagoa, a rebater o escárnio, mantendo sempre a convicção de que iria à festa no céu. Foi quando um dia, o Urubu foi lavar os pés na lagoa. Cururu sabia que ele era o violeiro que tocava nas festas dos bichos, e, como voava, com certeza iria tocar na festa do céu.
-Hoje é o dia da festa no céu. – Falou o Urubu ao sapo, trazendo a viola nas costas. – Venho lavar os meus pés e seguir para lá. Soube que foste convidado.
-É verdade, mais tarde lá estarei e poderei ouvir-te tocar! Quero dançar a noite toda, até que nasça o sol.
O Urubu não se preocupou com Cururu, lavou os pés, bebeu água, sacudiu as penas, sem que se apercebesse que o astuto sapo entrara em sua viola, lá permanecendo silencioso. Ao terminar a sua higiene, o Urubu pegou a viola e voou para o céu, distanciando-se cada vez mais da terra, até que chegou à tão esperada festa.
Foi em um momento de distração do Urubu, que o sapo Cururu saiu de dentro da viola, surpreendendo a todas as aves com a sua presença. O Urubu tocou durante toda a noite, afirmando a sua fama de violeiro dos bichos. Cururu dançou, cantou e comeu todas as delícias da festa. Era a primeira vez que um bicho que não tinha asas participava de uma festa no céu.
Momentos antes de a festa terminar, já o sol nascia, e Cururu voltou para dentro da viola do Urubu, onde permaneceu quieto, refestelado e pronto para voltar à lagoa. O Urubu despediu-se de todos, e de viola nas costas, pôs-se de volta à terra. Como Cururu tinha comido muito, o seu peso aumentara drasticamente, fazendo com que a viola pesasse mais ao Urubu. Desconfiada, a ave sacudiu a viola e viu que dentro dela estava o sapo.
-Mas que grande trafulha e malandro este sapo. Dar-te-ei uma lição, que não me logrará uma outra vez.
Assim dizendo, o Urubu atirou Cururu no ar. O pobre sapo assustado, viu passar diante dos seus olhos a imensidão do vácuo, caindo de costas sobre as pedras. A pancada foi tão forte que ficou marcada para sempre nas costas de Cururu, fazendo marcas que cicatrizaram em forma de desenhos. Desde então, todos os sapos trazem desenhos nas costas, como testemunho de que um dia Cururu foi à festa no céu.

O Urutau

Maria era uma moça sonhadora, que pensava um dia poder conhecer um belo príncipe e com ele se casar. Queria ter filhos e um lar para cuidar e ser feliz. Mas Maria era a mais feia das mulheres da sua terra. Era demasiadamente magra, vesga dos olhos, nariz enorme e olhos esbugalhados.
O aspecto físico de Maria espantava todos os rapazes jovens, que dela fugiam como se fugissem de uma bruxa. As outras mulheres casadoiras chamavam-lhe pelas costas de mãe da lua. Mas Maria o que não tinha de beleza, derramava de bondade, tendo um coração infinito.
Certa noite, após a labuta no campo, Maria voltava para casa, quando se deparou com um rapaz gentil e de voz sedutora. No céu densas nuvens encobriam o luar, trazendo um grande breu à estrada, o que levara o rapaz a se perder. Maria ouviu o jovem perdido, conhecedora de todos os caminhos daquela região, prontificou-se em ajudá-lo a sair do ermo.
Os dois caminharam na noite escura. O rapaz ouvia a doçura da voz de Maria. Na escuridão só lhe via o semblante, que lhe parecia belo e garboso. Apaixonado, segurou na mão de Maria, e assim, caminharam pela escuridão. Cada vez mais apaixonados, juraram amor eterno. Ele era um príncipe honrado, e diante de tanta bondade e doçura na voz, propôs a Maria que se casasse com ele. Maria aceitou. Caminhavam felizes, de mãos dadas, quando a lua saiu do meio das nuvens, cobrindo de luz toda a estrada do sertão. Naquele instante o príncipe pôde ver o rosto da amada. Assustou-se diante de tão horrenda criatura. Arrependido do pedido de casamento que fizera, ele disse à jovem que o esperasse, que já voltava. Sem olhar para trás, distanciou-se dela e jamais retornou.
Maria ficou perdida no meio do sertão, à espera do amado. Esperou... Esperou... Mas a imagem do amado foi tragada pela imensa lua que brilhava no céu. Maria chorava, quando lhe surgiu no caminho uma velha feiticeira. Desesperada, perguntou à feiticeira se tinha visto o belo príncipe que lhe jurara amor e casamento.
-Casar contigo? – Indagou a feiticeira. – Teu coração é gigante, assim como o teu rosto é horrendo. O teu príncipe fugiu do teu rosto, perdendo-se do teu coração...
-Não é verdade, tivesse eu asas e voaria pelo céu, até encontrar o meu príncipe!
Compadecida, a feiticeira pôs as mãos sobre a cabeça de Maria, transformando-a em uma ave, assim ela poderia voar em busca do seu príncipe. Maria, metamorfoseada em ave, saiu voando pelos céus, atrás do seu príncipe. Voou toda a noite, quando o dia raiou, os seus olhos, acostumados à escuridão, não se mantinham mais abertos diante do sol. Maria procurou o oco de uma árvore a ali se aninhou, fazendo daquele buraco o seu novo lar.
Maria tornou-se uma ave que foi chamada de urutau. Passa o dia a dormir, saindo à noite em vôos tristes e silenciosos. Quando a lua surge no céu, o urutau deixa o oco das árvores e começa a cantar. Solta um canto triste, pungente, como se fosse um grande lamento. Quem ouve o urutau, não sabe que por trás do seu canto melancólico e crescente está Maria, que com a sua lamúria em voz de ave, repete pungentemente: “Foi... foi... foi...”

A Gralha Azul

Numa fria manhã de inverno, a gralha ainda dormitava no galho do pinheiro, quando foi surpreendida por um súbito e seco barulho. Assustada, ela pôde ver um homem a desferir o machado no tronco do pinheiro. A gralha ouviu os gemidos agudos do pinheiro, enquanto que a seiva de dentro dele transbordava em dor.
Com tristeza, a gralha viu os golpes do machado, cada vez mais intensos, a cortar sem piedade o majestoso pinheiro que por muitos anos deu-lhe abrigo, tornando-se um amigo. Sabia que o destino de tão bela árvore, que por décadas a natureza tecera o porte que apresentava, seria o de uma serraria, transformada em madeira morta para servir aos caprichos humanos.
Impotente diante da tragédia que se abatia sobre o pinheiro amigo, a gralha voou em direção ao infinito, subindo muito além das nuvens, de modo que não pudesse ouvir os gemidos de dor causados pelo corte fatal do machado. Já na imensidão do céu, a pobre ave pôde ouvir uma voz terna a ecoar:
-O coração das aves é misericordioso, revoltando-se com as dores da mata! Bendita sejas tu, avezinha! Tua bondade faz-te digna do mundo. Volta para os pinhais, a partir de hoje tu serás a minha ajudante. Transformarei a tua plumagem em azul, da cor do céu. Quando voltares para os pinhais do Paraná, vais plantá-los, para que se renove e jamais se extinga.
-Sou apenas uma ave negra, a chorar a dor dos pinheiros mortos.
-Já não serás uma ave negra, já te disse, terás a cor do céu. Quando comeres o pinhão, tirar-lhe-á a cabeça, para com as tuas bicadas, abrir-lhe a casca. Nunca te esqueças de antes de terminar a tua alimentação, enterrares alguns pinhões com a ponta para cima, já sem cabeça, para que não apodreça antes que surja um novo pinheiro dali nascido. Do pinheiro, árvore da fraternidade, nascerá a pinha, da pinha nascerá o pinhão... do teu bico cairá a semente que fertilizará o solo.
Ao ouvir a voz, a gralha viu-se no topo do céu. Olhou para o seu pequeno corpo de ave e apercebeu-se que as penas negras tinham ficado azuis. Até onde os seus olhos pudessem avistar, tornara-se uma ave azul, ao redor da cabeça, onde não podia enxergar, continuou com a plumagem preta.
Ao ver a beleza das suas penas, a avezinha retornou para os pinhais. Encontrou os galhos de todos os pinheiros abertos, a convidar-lhe para pousar em seus galhos, assim ficariam perenemente. Tão alegre estava a gralha com a sua nova plumagem, que o seu canto passou a ser como um alarido a lembrar crianças a brincar. Assim a gralha, ao voltar, iniciou o seu trabalho de ajudante celeste, ajudando aos pinheiros a renascer dos seus pinhões.
Ainda hoje, quem passa pelas florestas do Paraná, consegue ver bandos de gralhas azuis matracando nos galhos dos frondosos pinheiros, comendo os pinhões que alegram as festas do povo do lugar.

Ilustrações: José Lanzellotti
Adaptação livre de Jeocaz Lee-Meddi para textos de Brasil, Histórias, Costumes e Lendas
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Terça-feira, 28 de Julho de 2009

LENDAS LUSITANAS

 

 

Portugal é o país mais ocidental da Europa, sendo também um dos mais antigos em suas fronteiras. A conquista do território foi feita aos muçulmanos (chamados de mouros), que dominaram a península Ibérica por quase mil anos. Antes da formação da nação portuguesa, vários povos habitaram o lugar, entre eles os lusitanos, pescadores e camponeses primitivos, que enfrentaram bravamente o domínio e a opressão dos romanos.
Sendo um país tão antigo, foram muitas as lendas que se criaram para contar tão extensa história. Lendas medievais, lendas ainda mais antigas; chegaram aos nossos dias as mais belas narrativas que contam a saga de um povo e da sua nação, formadora de uma cultura lingüística que se estendeu pelos quatro cantos do mundo. Da antiga Lusitânia ao Portugal de hoje, chaga-nos um acervo de personagens maravilhosas, algumas trazidas das páginas de Homero, outras do imaginário medieval, das páginas cantadas pelos trovadores.
Olisipo, a Cidade de Ulisses” é uma das lendas mais cultivadas pelo povo português. É a história da fundação de Lisboa, que segundo a tradição lendária, teria sido feita pelo herói homérico Odisseu (Ulisses), que na sua trajetória errante após o fim da guerra de Tróia, perder-se-ia por vinte anos pelos mares europeus. O herói grego teria atravessado as Colunas de Hércules (Estreito de Gibraltar), alcançando a desembocadura do rio Tejo, deparando-se com o reino de estranhas criaturas metade mulheres, metade serpentes. Olisipo, a cidade mítica de Ulisses, seria mais tarde Lisboa, a bela capital portuguesa.
A Dama Pé de Cabra” resgata o período de conquista das terras lusitanas aos muçulmanos, chamados de mouros. A luta por esta conquista foi sangrenta, o que fazia o povo cristão a sentir que efetuava uma guerra santa, cada mouro morto por sua espada, significa recompensa na terra e nos céus medievais. Esta lenda traz a figura do diabo, tão temida e tão comum no cotidiano do homem medieval. Entre as guerras e os medos dos demônios, surgia uma nação jovem, cristã e destinada à expansão através do mundo.
O Galo de Barcelos” retrata um dos símbolos mais populares de Portugal. Várias são as versões da lenda, mas todas elas remetem para um único final: a ressurreição de um galo assado, que com o seu canto vivo efetuaria a justiça e repararia a injúria diante dos injustiçados. É uma lenda sucinta, mas com forte teor de se ver através dela o cumprimento de todas as leis, fundindo-se entre as leis sacras e as leis dos homens, tornado-se um uno inquestionável.
Três lendas de beleza universal, que nos remete para diversos momentos de uma história imaginária e repleta de aventuras seculares, que fariam dos lusitanos grandes navegadores e descobridores de mundos diversos, infinitos aos olhos humanos.


Olisipo, a Cidade de Ulisses

Há muito tempo atrás, em um ponto remoto do calendário, existia um promontório que recebia o desembocar do Tejo. Era um reino inóspito, muito além das Colunas de Hércules, conhecido pelo nome de Ufiusa, a terra das serpentes. Este reino formado por serpentes, tinha como rainha um estranho ser, metade mulher, metade serpente, que trazia um rosto belíssimo, dona de um olhar feiticeiro e de uma voz quase de criança.
Senhora absoluta do seu reino, a rainha mulher-serpente costumava visitar o alto de um monte e gritar ao vento as palavras que ecoavam por todo o Tejo:
-Este é o meu reino! Só eu governo aqui, mais ninguém! Nenhum homem atrever-se-á pôr aqui os pés. Ai do que ousar! As minhas serpentes não o deixarão respirar um só minuto!
Assim correram os anos. Até que um dia surgiu errante, com os ventos, o grego Ulisses (Odisseu). O rei da Ítaca, herói da Tróia destruída, tão logo terminara a guerra, por um capricho dos deuses, navegava perdido pelo Mediterrâneo sem fim. Um dia os barcos de Ulisses foram soprados para muito além das Colunas de Hércules, vindo a entrar pela desembocadura de um imenso rio ao qual chamavam de Tejo, aportando no reino de Ufiusa. Tão logo chegou àquelas terras, o grego deslumbrou-se com a sua beleza, com a suavidade das suas brisas, o sabor das suas frutas e o gosto doce das águas do Tejo. Ofuscado por tanta beleza, Ulisses reuniu os seus homens, declarando potente a todos eles:
-Aqui, onde a natureza mostra-se tão pródiga, edificarei a mais bela cidade do mundo! Dar-lhe-ei o meu nome... será Ulisseia, capital das belezas do mundo!
Assim foram edificados os primeiros alicerces da sua cidade. Mas a terra que tanta beleza trazia aos olhos do grego, mostrou-se traiçoeira diante das serpentes que deslizavam por elas. Muitos dos homens da tripulação tombaram envenenados por picadas das serpentes, outros desapareciam, vitimados por armadilhas traiçoeiras. Cada vez mais o inimigo oculto ladeava Ulisses. Diante de estranhos inimigos, o valente rei da Ítaca clamou:
-Por todos os deuses do Olimpo, eu vos desafio, inimigo invisível e traiçoeiro. Aparecei das sombras, mostrai a vossa face e desafiai-me corpo a corpo!
Mas o inimigo continuou oculto, Ulisses só continuava a ouvir os silvos das serpentes, que vinham como uma sinfonia noturna. Assim o perigo rondava Ulisses e os seus homens, que cada vez mais tombavam envenenados. Irritado, Ulisses bradou com todas as suas forças:
-Traiçoeiro inimigo, podeis tentar tudo o que quiserdes, mesmo assim não abandonarei esta terra sem aqui deixar a mais famosa cidade edificada que se tenha notícia!
Foi então que a rainha das serpentes, profundamente atraída pelo valente guerreiro, revelou-se a ele. Surgiu do disfarce de uma rocha, com a sua voz de criança e formosura na sua face de mulher, escorregadia na sua metade serpente.
-Bem vindo ao reino das serpentes, conhecido por Ufiusa! Sois valente e ousai a enfrentar aos súditos deste reino, do qual sou a rainha soberana e absoluta!
Ao ver a revelação da rainha, Ulisses apercebeu-se da face do misterioso inimigo, finalmente revelada. Uma vez revelado-lhe o inimigo, o grego já não o temia. Viu na voz doce da mulher o sibilar das serpentes, refletida no olhar amargo.
Já apaixonada por Ulisses e por sua valentia, a rainha percebeu que a sua rendição não iria acontecer. Não mais esperava por ela, pelo contrário, decidira que queria o guerreiro para sempre em seus reinos.
-Durante dias esperei por vossa rendição. A vossa coragem foi superior, o que atraiu a minha admiração! Sei do vosso sonho de aqui edificardes uma cidade! Pois bem, eu vos permito a realização desse sonho, com uma condição: a de cá ficardes para sempre!
Enigmático, Ulisses sorriu-lhe, sem jamais lhe dar uma resposta com palavras, meneando a cabeça, como se concordasse. Com o consentimento da rainha das serpentes, Ulisses passou a edificar a sua cidade, erguendo-se jardins, casas e ruas. As serpentes já não atacavam os homens, que cada vez mais ali aportavam. Enquanto os homens trabalhavam, as mulheres serpentes cantavam para que a labuta lhes fosse mais suave.
Erguida a cidade de Ulisses, que passou a ser conhecidas como Olisipo, uma brisa suave inundou tão soberba obra. Mas o coração de Ulisses pertencia a Ítaca e a Penélope, a sua mulher, que há muitos anos esperava por sua volta. Assim, mesmo deslumbrado com a sua obra, o grego só pensava em partir, navegando até que aportasse na sua terra natal. Mas a paixão da rainha serpente impedia que Ulisses partisse, tornando-o prisioneiro da sua própria cidade.
Sabendo-se prisioneiro da rainha, Ulisses encheu-se dos mais falsos carinhos e de amor ardente e traiçoeiro, enquanto desenhava o seu plano de fuga. Por fim chegara a noite da tão esperada fuga. Combinara buscar a rainha para um passeio ao luar. Em vez de comparecer ao encontro, Ulisses enviou um dos seus homens, que tinha a mesma estatura do que ele e ao longe, poderia ser confundido com ele. Assim, enquanto Ulisses fugia navegando pelas águas do Tejo em direção ao Oceano, o seu fiel companheiro, muito bem disfarçado, foi buscar a rainha, levando-a para longe do rio.
Durante o passeio, só a rainha falava, mostrava para o companheiro o futuro da sua Ulisseia, ou Olisipo. De repente a mulher inquietou-se com o silêncio do amado. Ao olhar para aquele que estava ao seu lado, percebeu que os olhos eram outros. Ao perceber o engano, a rainha soltou um grito de indignação. Ao ver-se traída, furiosa, ela mordeu o impostor, envenenando-o com a sua peçonha. Antes de morrer, o infeliz murmurou que o seu amo já deveria ir longe, a navegar pelo grande Mar Oceano, rumo às terras gregas.
Desesperada, a rainha tentou ir além de todas as suas forças, estendendo-se sobre a cidade de Ulisses, na ânsia asfixiante de alcançar o mar. Foi tamanho o seu esforço de alcançar o amado, que onde ela estendeu o corpo de serpente, das suas contorções desenhou-se sete colinas sobre Olisipo. Mas Ulisses já estava longe, e a infeliz rainha não resistiu, morreu após tamanho esforço.
Sem a sua rainha, as serpentes fugiram da cidade. No antigo reino de veneno e morte, ficou edificada altaneira, a cidade de Ulisses, erguida sobre as suas sete colinas. Ulisses jamais retornou, mas Olisipo tornou-se a principal cidade às margens do Tejo. Muitos anos mais tarde a cidade de Ulisses passou a ser conhecida como Lisboa.

A Dama Pé de Cabra

Esta história é do tempo que os cristãos lutavam com os mouros pelo domínio do oeste da Ibéria e pela formação do reino cristão de Portugal. Dom Diogo era um bravo cristão que tinha como missão a expulsão dos mouros daqueles reinos. Destemido e arrojado, o fidalgo gostava de montar o seu cavalo branco e sair pelos bosques e montes a caçar veados, javalis, lobos e ursos. Fizesse sol ou chuva, fosse inverno ou verão, lá estava o inquieto fidalgo longe do seu castelo, em caças perigosas a animais silvestres ou aos mouros infiéis.
Foi a perseguir um javali em um monte agreste e coberto de silvas espinhentas, que o valente fidalgo um dia deparou-se com o mais belo canto que já ouvira. O canto ecoava pelo ar, fazendo que o javali ficasse manso e esperasse pela sua lança, como se encontrasse a redenção. Embriagado por tão bela e aguda voz, dom Diogo correu com os olhos em direção a um pedregulho que se lhe aparecia à frente, ao cimo encontrava-se, sentada, a mais formosa das mulheres. O coração do fidalgo disparou. Aproximou-se da mulher e perguntou:
-Quem sois vós, encantadora senhora? Quem sois vós que me cativou com o vosso belo canto?
Ela riu, do riso saltava-lhe a mais bela feição, rimando com o olhar vindo de duas contas cristalinas, seus cabelos dourados dobravam-se ao vento, sua face gentil reluzia o dia de sol, suas mãos brancas traziam uma pele macia como a neve.
-Sou uma dama tão nobre quanto sois vós.
Ao ouvir-lhe as palavras, dom Diogo não se conteve, aproximou-se com o coração a arfar-lhe cada mais, descompassado de amor.
-Formosa senhora, se casardes comigo, ofereço-vos as minhas terras e os meus castelos, além do meu coração que já vos pertence!
-Guarda as tuas terras que precisas para cavalgar a tua inquietude da alma.
-Que posso oferecer-te então para que sejas minha?
Numa malícia que se traduzia em constrangimento, a mulher baixou a cabeça, a demonstrar um fulgurante pudor. A olhar com um encanto de serpente para o homem, pronunciou as palavras com a mais doce das vozes:
-A única coisa que me interessa, não ma podes dar, porque foi um legado da tua mãe.
-E seu te amar mais do que à minha própria mãe?
-Então tens de jurar que não tornas a fazer o sinal da cruz que ela te ensinou quando eras pequeno.
Por alguns instantes, dom Diogo hesitou ante tão estranho pedido, que lhe pareceu coisa do diabo. Olhou-a com estranheza, mas ao deparar-se com tamanha beleza, com aquele sorriso tão puro, afastou as dúvidas e os pensamentos obscuros. Já se apaixonara irreversivelmente por ela. Questionou-se para que serviam as benzeduras? Chegou à conclusão que se deixasse de benzer, continuaria a ser o mais puro dos cristãos. Para compensar esta omissão, decidiu que mataria duzentos mouros e todos os pecados ser-lhe-iam perdoados.
-Que assim seja, minha amada!
Movido pela paixão, arrebatou-a nos braços, esporeou o cavalo e partiu a galope para o castelo. À noite, quando se deitaram, embriagados de amor, dom Diogo apercebeu-se que a dama tinha pés de cabra. Mas o seu coração apaixonado não deu importância àquele defeito, pois o corpo da amada era esbelto, esguio, os cabelos eram lisos e perfumados, a pele fina como a seda.
Durante alguns anos o casal viveu em paz, felizes e apaixonados. Da união nasceu um menino que chamaram Inigo, e uma menina que deram o nome de Sol. Assim correram os anos, Diogo continuou inquieto em suas caças, mas com a certeza que ao final delas, encontraria a paz que precisa nos braços da amada e no aconchego da família.
Numa noite, durante a ceia, Diogo reparou que o seu melhor cão de caça dormitava junto à lareira, enquanto que uma feroz cadela, pertencente à mulher, andava inquieta de um lado para o outro, com um rosnar estranho. Por algum motivo dom Diogo não gostava da cadela. Para afrontá-la, pegou um grande pedaço de osso, atirou-o para junto do focinho do cão que se encontrava próximo à lareira, e disse:
-Toma lá tu, Silvano, valente caçador, precisas te alimentar. À cachorra não dou nada, porque não pára quieta!
Satisfeito e agradecido, Silvano abocanhou tão generoso osso, mas não teve tempo de comê-lo, pois a fúria da cadela fez com que se atirasse ao cão, abocanhando-lhe mortalmente a garganta. Ao ver o seu cão preferido morto no chão, dom Diogo levantou-se furioso, entornando o vinho sobre as tábuas. Com a ponta da bota, virou o corpo do cão e viu a sua garganta dilacerada.
-Maldita cadela! Por minha fé cristã, jamais vi coisa assim! Por cá andam artes de Belzebu...
Ao dizer tais palavras, dom Diogo esqueceu-se do juramento que fizera à mulher alguns anos antes, benzendo-se repetidas vezes. Foi quanto bastou para que a mulher emitisse urros pavorosos. Aos olhos apavorados de dom Diogo, a mulher parecia desmanchar-se em outra, a pele branca e sedosa tornou-se áspera e negra, os olhos reviraram, a boca ficou torta. A mulher tornara-se um animal horrendo, que se erguia no ar, leve como uma pena. Debaixo do braço esquerdo levava a filha, dona Sol, o braço direito alongava-se para o filho.
-Santo Deus! Jesus Cristo! – Bradava o fidalgo. – A minha mulher é o diabo!
Antes que o braço direito da mulher alcançasse Inigo, o fidalgo agarrou o filho e fez vários sinais da cruz. A mulher soltou um último e horripilante grunhido, desaparecendo de vez por uma fresta próxima ao teto, levando consigo a menina. Desde àquela noite, ninguém no castelo tornou a pôr os olhos em cima da mãe, da filha e da cadela. Desapareceram entre as artes mágicas.
Mesmo a saber que a mulher talvez fosse o diabo, dom Diogo Lopes sofreu a dor da sua perda, vivendo muito tempo cabisbaixo, triste e aborrecido com a vida. Para esquecer a dor que sentia no coração, decidiu partir para a guerra. Entregou ao filho Inigo o governo dos castelos. Os servos desenferrujaram-lhe as armas, preparando-lhe o cavalo. Partiu assim, para lutar contra os mouros e ajudar na formação do reino cristão de Portugal.

O Galo de Barcelos

Há muitos anos, em tempos remotos, aconteceu em Portugal um crime de morte, que, por mais minuciosas investigações feitas, jamais se descobriu o assassino.
Tempos depois, quando tudo parecia já estar esquecido, surgiu na povoação de Barcelos um galego peregrino, que se dirigia para Santiago da Compostela. Diante da figura do romeiro, alguém levantou perante as autoridades uma questão, aquele homem era o autor do crime há tempos ali acontecido. Diante da acusação, houve quem garantisse que o romeiro estivera no local do crime no dia do assassínio. De frente com as evidências, as autoridades deram o caso como solucionado, aprisionado o romeiro.
Mesmo diante de grande tortura e suplício, o galego afirmou-se sempre inocente. Mas todas as evidências e coincidências apontavam o homem como o verdadeiro assassino. Sem provas que lhe garantissem a inocência, foi julgado e condenado à morte, através da forca.
Finalmente chegara o dia do suplício do pobre homem, que jamais deixou de jurar estar alheio e inocente ao crime. Tudo em vão! No meio do povoado erguera-se a forca. Como último desejo, o infeliz pediu que fosse levado à presença do juiz. O malogrado romeiro foi encontrar o juiz em uma grande ceia, ladeado de vários amigos e admiradores. Diante do juiz e de todos os presentes, o galego voltou a afirmar a sua inocência, pedindo pela fé cristã que dele tivessem misericórdia e que o não enforcassem. Mas o magistrado, homem que aprendera as leis em Salamanca, apesar de ficar confuso diante da veemência com que o infeliz proclamava-se inocente, nada pôde fazer, pois já acontecera o julgamento e a condenação à morte, portanto era preciso que se cumprisse a sentença.
Vendo que todos faziam escárnio das suas palavras, e continuavam a comer e a beber; o pobre galego, a olhar para um frango assado em cima da mesa do magistrado e dos seus amigos; clamou para São Tiago, o santo que iria visitar quando fora interrompido em sua romaria:
-Oh São Tiago, sabeis que estou tão inocente que, antes de morrer, esse galo que está em cima da mesa, morto e assado, cantará!
Todos riram das palavras de clamor do galego. O magistrado ordenou que o condenado fosse levado à forca e que se cumprisse à sentença. Assim foi feito. Passado o mal estar, todos continuaram a comer e a beber normalmente. Por uma estranha superstição, ninguém ousou a tocar no galo assado que indicara o sentenciado. Todos estavam ansiosos para que se desfechasse o suplício do galego, cumprindo-se finalmente, a justiça.
De repente, diante do espanto geral de todos os presentes, o galo assado passou a ter penas, transformando-se em uma bela ave, tão viva quanto eles, que passou a cantar alegremente!
O espanto foi geral. O juiz e os seus convidados correram ao local que se erguera a forca. Encontraram o galego suspenso no ar, com a corda no pescoço solta. Com grande espanto, descobriram que ele ainda estava vivo! Imediatamente libertaram o supliciado, deixando que ele seguisse viagem até Santiago da Compostela, para que cumprisse a sua promessa de romeiro.
Meses depois, o galego regressou da sua romaria, já com a promessa cumprida. Em sinal de agradecimento aos que atestaram a sua inocência, mandou que se erguesse um padrão, tendo de um dos lados São Paulo e a virgem, o sol, a lua e um dragão. Do outro lado o Cristo crucificado, um galo e São Tiago sustentando um enforcado! A justiça fora feita através do canto do galo ressuscitado, que se tornaria o símbolo de Barcelos.
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Quinta-feira, 25 de Junho de 2009

LENDAS INDÍGENAS 2

 

 

A necessidade do homem em explicar os mistérios da vida e da natureza que o cerca, gera, através dos séculos, as mais belas lendas. Quanto mais rica a cultura de um povo, maior o número de lendas inspiradoras que justificam os seus costumes e tradições milenares.
O folclore dos índios brasileiros perdeu, com a civilização cristã impostas a eles, muitos dos seus rituais e muitas das suas crenças, as suas lendas estão cada vez mais difundidas e mescladas com as lendas catequizadoras trazidas pelos homens brancos.
Aqui mais três lendas indígenas, duas delas (“Como Nasceram as Estrelas” e “A Criação do Homem”) vindas das terras do Mato Grosso, e uma terceira originada das tribos da região do mítico rio Amazonas (“A Vitória Régia”).
Como Nasceram as Estrelas é uma lenda extraída da tribo de índios do Mato Grosso conhecidos como Bororos. Forma poética e simples que a tribo encontrou para descrever o surgimento das estrelas no céu, tidas como vigilantes da dor e símbolos do castigo perene às crianças que desobedecem aos pais.
A Vitória Régia traz a lenda de uma das plantas mais exóticas do mundo. De uma beleza rara, esta planta tem as raízes submersas no rio, e quando adulta, surge no seu centro uma das mais belas flores da natureza. Nativa da região do Amazonas, a vitória-régia desperta com a sua beleza ímpar, o mais curioso dos homens. Tão singular planta, assim como as flores da mitologia grega, nasceu, como conta a lenda, da transformação de uma bela mulher, da metamorfose dos seus sonhos, que se deslumbram em cores e fantasias.
A Criação do Homem está ligada com o mito do herói Maivotsinim, figura criadora aclamada por várias tribos do Alto Xingu. Se na lenda dos índios Carajás, habitantes do norte de Goiás e do Tocantins, o índio já surge criado, habitando a escuridão do ventre da terra, de onde emerge e através da figura do urubu-rei vê a criação do mundo, aqui o mundo está criado, mas faltam os homens. Só Maivotsinim existe, e cabe a ele criar a humanidade. Esculpido numa madeira chamada cuarupe, o homem surge no seu esplendor, aos raios do sol. A lenda deu origem ao ritual do Alto Xingu, o Cuarupe, praticado até os dias de hoje.

Como Nasceram as Estrelas

A vida na tribo dos índios Bororo seguia os passos e os ensinamentos dos seus antepassados. No céu da aldeia a noite era escura, iluminada apenas pela imensa lua, que crescia ou diminuía de tamanho, conforme o ciclo dos dias. Quando a lua se escondia, um terrível breu fazia-se sobre as malocas.
Durante o dia os homens bororos iam caçar, enquanto que as mulheres cultivavam e coziam o milho e as crianças brincavam. Num dia normal na tribo, em que os homens embrenharam-se na mata para cassar, as mulheres foram colher o milho para preparar o alimento d e todos. Quando chegaram na roça de milho, com tristeza encontraram pouquíssimas espigas. Não percebiam o que tinha acontecido. Colheram desoladas, umas míseras espigas.
Horas antes das mulheres chegarem à roça de milho, as crianças, fugidas das mães, tinham colhido as espigas. Vestidas da malícia infantil de quem cometia uma desobediência, ali mesmo, na roça, elas socaram o milho, levando os grãos para a aldeia. Na maloca encontraram a mulher mais velha da tribo. Um dos meninos pediu à velha índia que preparasse um bolo para ele e para os amigos. A boa mulher, sem saber que as crianças colheram o milho sem a ordem das mães, com muito sacrifício fez o bolo que eles pediram. Já sem forças pela idade, a velhinha sentiu-se deveras cansada depois de todo o trabalho que tivera para fazer o bolo, retirando-se para a oca, repousando o corpo cansado sobre uma rede.
Os meninos deliciaram-se com o bolo. De repente o papagaio da aldeia, que tudo vira, ameaçou contar a verdade para as mães dos meninos, quando elas retornassem. Maldosamente os curumins cortaram a língua do papagaio, para que silenciasse o que eles fizeram.
Os pequenos bororos sentiam-se refestelados depois de comerem tanto bolo de milho. Mas ainda não estavam satisfeitos em desafiar o mundo. Olharam para as nuvens e a imensidão do céu, decidindo que para lá iriam subir. Embrenharam-se na mata e capturaram um beija-flor. Amarraram no bico da pequena ave a ponta de um cipó, ordenando-lhe que voasse para o mais alto infinito, e lá no céu, prendesse a ponta do cipó. O pequeno pássaro obedeceu às crianças, voando cada vez mais alto. Enquanto o beija-flor rumava para o céu, os pequenos bororos emendaram várias cordas ao cipó, agarrando-se a elas. Assim, levados pelo beija-flor, foram subindo, subindo... até o infinito do céu.
Quando as mulheres voltaram da roça, trazendo os grãos de milho que socaram das poucas espigas que encontraram, estranharam o silêncio dos filhos. Perguntaram por eles à velhinha, mas não tiveram resposta, posto que a pobre mulher dormia pesado de tão cansada que estava. Perguntaram ao papagaio guardião da aldeia, mas com a língua cortada, a pobre ave silenciou o que vira.
Desesperadas, as mulheres puseram-se à caça dos filhos. Foram encontrar no meio da mata, um cipó suspenso na direção do céu. Não se lhe via a ponta. Concluíram que as crianças subiram para o céu. Aos prantos, começaram a gritar para que as crianças voltassem. Lá do alto, mesmo a ver o choro das mães, os meninos bororos decidiram não voltar, seguindo sempre o beija-flor, que se distanciava da terra cada vez mais. Partiram rindo-se do choro das mães.
Já no alto do céu, quando tentaram voltar, os meninos não conseguiram, foram castigados pela desobediência e pela ingratidão às mães, condenados a viver lá em cima, e todas as noites, a olhar para a terra, para ver se suas mães ainda deles se lembravam e continuavam a prantear por eles. Para ver as mães, os olhos dos desobedientes meninos bororos transformaram-se em estrelas, iluminando todas as noites do mundo, mesmo quando a lua retirava-se do céu.

A Vitória Régia

O rio Amazonas abrigava às suas margens várias tribos de índios. Das águas do grande rio uma das tribos tirava o peixe para o seu sustento. Vários igarapés delimitavam as ilhas que se formavam ao redor do rio, e neles as moças da aldeia cantavam as mais belas canções, e sonhavam os mais belos sonhos. Dentre os sonhos das cunhãs, o de tocar a lua e as estrelas era o mais persistente.
Na aldeia as mães contavam para as filhas que quem tocasse a lua ou uma estrela, teria o brilho delas sobre o corpo, transformando-se em uma. Assim as jovens cunhãs sonhavam em tocar a lua. Suspiravam quando ela mostrava-se majestosa no céu, em sua fase plena.
De todas as cunhãs, Neca-Neca era a mais bela, a mais sensível e a mais sonhadora. Seus longos cabelos negros exalavam um perfume doce e embriagante. Os homens da aldeia sonhavam em conquistar o seu coração. Mas Neca-Neca só pensava em alcançar a lua e tocá-la, aprisioná-la entre os dedos e embriagar-se na sua luz redentora. A jovem índia sonhava em ser uma estrela, e poder iluminar todos os mistérios do mundo, tendo a lua como amiga.
Várias foram as tentativas de Neca-Neca de tocar a lua. Subiu na mais alta árvore da selva, mas a lua continuava distante. Ao lado de outras amigas, caminhou na direção do mais alto dos morros. Exausta, chegou ao topo da montanha e viu a lua ainda mais distante. Desolada, voltou para a aldeia acometida da mais profunda tristeza. Deitou-se na rede e embalou a amargura de não poder tocar a lua. Um dia ainda seria uma estrela, ou mesmo a própria lua. Adormeceu triste, mas sem deixar de perseguir o seu sonho pertinente.
Numa noite de lua cheia, Neca-Neca pôs-se às margens do grande Amazonas. Ao mirar as águas misteriosas do rio, viu que lá estava a lua, silenciosa, imóvel. A cunhã sorriu vitoriosa. O seu sonho estava próximo. Perseguira a lua nos lugares mais altos da mata, agora ela estava ali, mansa e à mão, a banhar-se nas águas do grande rio, pronta para satisfazer-lhe o sonho. Neca-Neca finalmente tocaria a lua. Sem pensar duas vezes, atirou-se às águas em busca da lua. Quanto mais tentava tocar o astro prateado, mais se afundava e encontrava apenas a escuridão do mundo. Mergulhada no seu sonho, Neca-Neca foi tragada pelo rio Amazonas.
Do alto do céu, a lua assistiu ao embuste que embriagara o sonho da jovem índia. Apiedada da tragédia de Neca-Neca, a lua prateada transformou-a em uma flor. Mas não em uma flor comum, e sim na maior e mais bela de todos as flores do mundo, a vitória-régia.
No meio do rio Amazona, Neca-Neca, transformada na vitória-régia, exala o mais delicado de todos os perfumes, inebriando os homens e os animais que assistem às suas pétalas estiradas à flor da água, pronta para receber os raios da lua. Nas noites de lua cheia, as cunhãs aparecem no meio da flor, dando-lhe um brilho eterno. Nessas noites, o brilho da lua forma um véu prateado a cobrir todas as flores do lago, que são mulheres transformadas em estrelas das águas, sob o feitiço e a piedade da lua, iluminando as noites tropicais.

A Criação do Homem

Maivotsinim corria livre pela mata. Caçava para comer, nadava, dormia, sonhava... Percorria todas as terras do Alto Xingu. Tinha a floresta e os animais como amigos e companheiros. Mas Maivotsinim começou a entristecer, a sentir-se solitário no mundo. Assim como todos os animais tinham uma companheira, também ele sonhava com o dia em que teria a sua.
Um dia Maivotsinim conversou com a onça, contando-lhe a amargura de estar só. A onça ouviu-lhe o lamento, prometendo-lhe contar o segredo de como poderia ter muitas mulheres. A grande onça soprou nos ouvidos do herói o segredo da criação dos homens.
Feliz com a revelação, Maivotsinim pôs em prática o que lhe dissera a onça. Foi até a mata, cortou umas tantas toras do pau vermelho de caniná. Socou os paus no pilão, passando-lhes pimenta, a seguir, quando anoiteceu, ergueu uma fogueira ao redor deles. Nada aconteceu, e ele chorou muito ao não ver o resultado da sua obra.
Mas Maivotsinim não desistiu. Talvez tivesse errado na madeira. Embrenhou-se novamente na mata, cortando toras de uma madeira que se chamava cuarupe. Mais uma vez socou as toras no pilão, passando-lhe pimenta e fincando-as no meio da aldeia. Tão logo anoiteceu, acendeu uma fogueira ao pé de cada tora. Mas a madeira não se transformou em gente. Maivotsinim mais uma vez chorou. Tamanho foi o seu pranto, que adormeceu profundamente.
No meio da aldeia, as toras do cuarupe continuavam fincadas no chão. Quando o sol despontou os primeiros raios, atingindo cada tronco de árvore fincado por Maivotsinim, estes se transformaram, um a um, em gente. Á luz do sol, os índios despertaram e viveram, pulsando-lhes para sempre o milagre da vida.
Tão belos eram os índios, que os peixes saíram das águas para reverenciá-los. Os animais da mata fizeram o mesmo. Maivotsinim viu com alegria o nascimento dos índios. Assistiu à luta dos peixes e das onças a homenagear a sua criação, a qual chamou de huca-hucá.
Ainda hoje, no Alto do Xingu, as tribos celebram o cuarupe (a madeira que deu vida aos homens), lutando a huca-hucá, reverenciando a obra de Maivotsinim e a criação do homem.

Ilustrações: José Lanzellotti
Adaptação livre de Jeocaz Lee-Meddi para textos de Brasil, Histórias, Costumes e Lendas

 
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Terça-feira, 19 de Maio de 2009

LENDAS DE PERSONAGENS POPULARES DA HISTÓRIA

 

 

Algumas personagens da história construíram à sua volta um misticismo desbravador e pioneiro, que geraram lendas e mitos que muitas vezes superaram os próprios fatos históricos.
Deixando a verdade histórica de cada personagem aqui citado, percorreremos a lenda, o imaginário popular, o fantástico e a veracidade criativa. Três lendas relacionadas com a nossa história, sejam elas às vezes trágicas, às vezes pungentes, mas sempre vistas com ludismo diante dos acontecimentos reais.
Os Pirilampos do Abaré-Bebê, lenda do litoral paulistano, propagada pelo homem caiçara, narra os milagres supostos do padre Leonardo Nunes, jesuíta português que esteve em trabalho missionário no Brasil quinhentista. Do padre muito que se disse, muito que se lhe atribuiu em forma de lenda, como a sua gagueira e a sua incomum agilidade e rapidez nos passos. Como cenário da lenda temos as ruínas do Convento, em Peruíbe, que hoje fazem parte do patrimônio histórico brasileiro.
Antonio Conselheiro Não Morreu, passamos aqui do Brasil quinhentista para o país da jovem República, que na sua inexperiência incipiente, massacrou o arraial de Canudos, em 1897. Canudos tornara-se terra de jagunços e pessoas desvalidas pela sociedade, que chefiados por Antonio Conselheiro, rebelaram-se contra a República e defenderam a monarquia extinta. Na sua confusão mística, Antonio Conselheiro pregava o messianismo do rei português, Dom Sebastião, morto no deserto da África em 1578, cujo corpo jamais foi encontrando, gerando a lenda de que ele não morreu, mas que voltaria a qualquer momento para restituir a glória portuguesa. O próprio Antonio Conselheiro virou uma lenda messiânica para os mais antigos da Canudos reconstruída, que juraram que o velho beato jamais havia morrido.
A Nuvem Branca do Jaraguá relata a saga dos bandeirantes paulistanos, desbravadores do Brasil que quebrou o Tratado de Tordesilhas, expandindo-se para dentro da selva impenetrável. A grande muralha formada pelo morro do Jaraguá era a última fronteira que cercava o Brasil desconhecido do Brasil litoral. Belíssima lenda da gloriosa história dos bandeirantes, amados ou odiados.

OS PIRILAMPOS DO ABARÉ-BEBÊ

O bom padre jesuíta Leonardo Nunes, lá por volta de 1549, deixou as terras lusitanas para vir catequizar os brasilíndios. Sua imensa fé converteu um vasto número daqueles habitantes pagãos. Tão bom e amado era o padre, que certos dons passaram a fazer parte da sua vida. Tornou-se o homem mais ligeiro do mundo. Os índios guaranis que habitavam entre Santos, São Vicente, São Paulo de Piratininga, Itanhaém e Peruíbe, desconfiavam que o padre voava, tamanha rapidez que se deslocava de um local para o outro, subindo e descendo as serras da região. Leonardo Nunes passou a ser chamado de Abaré-Bebê, que significava “padre voador”.
Em Peruíbe, Abaré-Bebê e outros jesuítas construíram no cimo do outeiro de São João Batista uma igreja que levou o mesmo nome. Na igreja eram batizados os índios convertidos. Também ali eram enterrados. As suas urnas eram cobertas por ostras, que com o tempo formaram belos sambaquis.
Um dia Abaré-Bebê foi chamado a Roma para dar conta ao Vaticano das missões no Brasil. Foi com grande tristeza que os índios se despediram do padre, que embarcou em um navio, em Santos. Tão logo partiu, uma grande tempestade abateu-se sobre a embarcação, afundando-a em alto mar. Muito empenho teve Abaré-Bebê em ajudar a salvar os náufragos, que acabou por ele mesmo perder a vida. Os que sobreviveram contam que após salvar várias pessoas, o padre rumou para o meio da tempestade com a finalidade de socorrer tantas outras, mas uma onda gigante elevou-se ao seu redor, uma nuvem de pirilampos cercou o corpo do padre, formando uma grande luz que brilhava intensamente no meio da escuridão da tempestade. Com o rosto iluminado pelos pirilampos, o bom padre desapareceu em alto mar, nunca mais sendo visto.
Em Peruíbe, o tempo passou. Um dia espalhou-se que na velha igreja no cimo do outeiro de São João Batista estava escondido um tesouro deixado pelos jesuítas. Uma debanda de caçadores de tesouros rumou para o sítio. Cavaram, derrubaram paredes, transformando a igreja nas Ruínas do Abaré-Bebê. Numa das procuras, um dos caçadores achou um velho baú. Na esperança de ter encontrado o cobiçado tesouro, abriu a arca e viu sair de dentro dela uma grande nuvem de vaga-lumes e pirilampos, que acenderam tanta luz, quase o cegando. Era o dia da data da morte de Abaré-Bebê. Entre a nuvem de pirilampos, as paredes da antiga igreja reergueram-se, no meio do altar surgiu o rosto sorridente do bom padre, que com o seu amor habitual pelos homens, rezou ali mesmo uma missa. Todos os caçadores de tesouro pararam para contemplar o milagre e ouvir a missa de Abaré-Bebê.
Ainda hoje, por volta da data da morte do padre jesuíta, em Peruíbe, quem olha para o outeiro de São João Batista, pode ver surgir milhares de pirilampos, trazendo uma resplandecente nuvem de luz, que ilumina as ruínas, fazendo o templo reerguer-se por inteiro, e no meio do altar, o padre Abaré-Bebê volta das profundezas do mar, a rezar uma missa quinhentista.

ANTONIO CONSELHEIRO NÃO MORREU

A rebelião de Canudos chegara ao fim. Os cinco mil soldados legalistas dão os últimos tiros contra a população do arraial. Entusiasmados, gritam a vitória, adentrado pela Canudos rebelde, tomando-a de vez. Já no centro do arraial, deparam-se com a igreja nova totalmente destruída, cravada de balas. Em pé só encontraram o cruzeiro de pau de aroeira, com os seus três metros de altura, rechaçado de balas, defronte dos escombros da igreja, pingando ainda o sangue quente dos mortos. Os soldados legalistas procuram pelos sobreviventes, para impor e comemorar ante eles a vitória. Após a busca, encontram os sobreviventes: dois homens magros e cansados, um velho avançado nos anos, quase moribundo e uma criança esquálida, com olhar de terror!
Deitado numa esteira, coberto por um lençol branco, com a sua batina azul, e o inseparável crucifixo sobre o peito, jazia Antonio Conselheiro, líder da rebelião, considerado santo e messiânico pelos rebeldes dizimados. Canudos tinha sido destruída finalmente. A criança foi levada pelos soldados. Ainda olhou uma última vez para trás, a despedir-se da desolação sanguinária do arraial. Viu de repente, em frente ao cruzeiro, o beato rebelde: Antonio Conselheiro, de braços abertos, acenava-lhe, mostrando que não morrera.
Muitos anos se passaram, uma nova Canudos foi construída, para lá foi removido o velho cruzeiro de madeira, posto em um lugar que não fosse atingido pelas cheias do rio Vaza-Barris. A criança sobrevivente da guerra cresceu, casou-se e teve filhos. Antes de morrer, ainda pôde ver o Conselheiro aparecer na lua cheia de setembro, a rezar defronte ao cruzeiro. Aos seus filhos foi dado o dom de poder ver a aparição milagrosa nas noites de luar pleno.
Mas o progresso bateu às portas da nova Canudos, que foi mais uma vez destruída, desta vez submersa pela construção do açude Cocorobó. Quando as águas do açude afundaram o lugar, os netos da criança sobrevivente ainda olharam para trás. Lá estava Antonio Conselheiro, de braços abertos, com o seu bastão nas mãos. Sempre a fazer uma oração, a clamar pelo cavalo de Dom Sebastião, que voltava com ele para proteger os oprimidos do sertão, aos poucos foi sucumbindo diante das águas do Cocorobó. Nunca mais se viu a figura de Antonio Conselheiro nas noites de lua cheia.
Na terceira Canudos, a seca era combatida pela fartura das águas do açude. Os seus habitantes jamais esqueceram o beato que se rebelara contra a opressão ao homem sertanejo e contra a própria instituição republicana. Mas um dia a seca voltou a Canudos. E das profundezas do açude, de repente a Canudos esquecida no tempo emergiu, vomitando todo o passado sangrento de outrora. E numa noite de lua cheia de um setembro seco, de repente uma velha senhora, neta da criança sobrevivente da guerra, ela própria a mulher mais velha do local, viu surgir das águas emergidas a igreja destruída. Na beleza da visão, viu o velho cruzeiro brilhar em cada buraco das balas que o perfurara. À sua frente, ajoelhado, a rezar, lá estava Antonio Conselheiro. Ao ver a mulher, o beato levantou-se, apoiando-se no seu bastão. A sua batina azul brilhava à luz do luar, seu rosto era iluminado pelas estrelas. De braços abertos, como se abençoasse a velha mulher, Antonio Conselheiro chamou por el rei Dom Sebastião, já pronto para montar no cavalo do rei menino, pronto para cavalgá-lo sobre as águas quase secas do açude. A velha mulher já poderia morrer aliviada, com a certeza que a morte brutal dos seus antepassados não fora em vão. Antonio Conselheiro, ao lado de Dom Sebastião, vagava pelos desertos secos do sertão do mundo. Se Canudos foi submersa pelo sangue dos seus mortos e pelas águas do Cocorobó, das suas entranhas emergia, seca, sem perdão, as suas ruínas, os clamores dos mortos, as vozes dos fantasmas que não se calaram, e, principalmente, emergia o beato... Antonio Conselheiro não morreu...

A NUVEM BRANCA DO JARAGUÁ

Quando os primeiros colonizadores chegaram à costa sul das terras brasileiras, despertou-lhes atenção especial uma imensa elevação chamada de "Senhor dos Vales”, que mais tarde ficou conhecido como morro do Jaraguá. Os primeiros habitantes da Serra do Mar, viam o Jaraguá de longe, recortando o horizonte azul, imponente e belo, um gigante no meio da selva hostil, ainda desconhecida. Várias eram as informações de que no vale havia grandes jazidas de ouro e pedras preciosas. Misterioso, o morro do Jaraguá era a última fronteira entre o litoral e o sertão desconhecido. O fascínio pela conquista além do morro era a obsessão dos bandeirantes.
Considerada região sagrada pelos índios, o vale era defendido por eles, que constantemente atacavam os moradores de Piratininga. Para penetrar o sertão desconhecido, além da muralha do morro do Jaraguá, foi convocada uma força comandada por Antonio Sardinha, o mais temido inimigo dos silvícolas. Assim, tomando o morro como bússola, começou a penetração do desconhecido sertão. A partir de Antonio Sardinha, várias bandeiras foram organizadas para pear índios, conquistar o sertão e chegar ao interior da colônia, repleto de lendas atemorizantes, que assustavam até mesmo os indígenas nativos da região e suas circunvizinhas.
Outros bandeirantes seguiram, outras bandeiras... outros desbravadores paulistas... Manuel Preto, Belchior Dias Carneiro, Antonio Raposo Tavares, Fernão Dias Pais, Bartolomeu Paes de Abreu... Todos eles partiram em busca do ouro, das pedras preciosas, dos índios, do domínio do interior da colônia. Seguiam a partir do Jaraguá. Podiam avistar o morro por três dias de caminhada, sabendo que por lá deixavam a família, a única certeza da volta era acalentada pelo sonho de enriquecer. Sonho muitas vezes terminado pelas febres da selva, pelo combate com os índios, pela fome do sertão agreste e inóspito.
Cada vez que partiam, os bandeirantes deixavam as mães, as mulheres, os filhos, todos presos à saudade e à ilusão de uma volta que, em muitos casos, jamais aconteceria. Para dar adeus aos maridos e aos filhos que partiam, as mulheres subiam ao pico do Jaraguá, empunhavam lenços e lençóis brancos, amarrados a um mastro, que ao vento, formavam as flâmulas brancas do adeus. Assim, paradas, solitárias, tristes, ficavam a acenar para os seus homens que se distanciavam para dentro da mata desconhecida. Por lá ficavam até a certeza, três dias depois da partida, de que os seus entes queridos já não poderiam vê-las. Era o adeus, o último olhar, a última lágrima, o último momento de proximidade simbólica àqueles que jamais retornariam.
Desesperadas pela espera, muitas lágrimas derramaram aquelas mulheres no pico do Jaraguá. Lágrimas eternas, de olhos que jamais voltariam a ver os seus destemidos e desbravadores homens. A saudade e a tristeza da espera sem fim, faziam com que tão sofridas mulheres definhassem para sempre.
Milhares de bandeiras partiram... Poucas voltaram. Milhares de mulheres subiram o pico do Jaraguá para a cerimônia do adeus. Suas lágrimas foram tantas, que correram pelo morro, evaporadas pelo sol. Das lágrimas, uma densa nuvem branca formou-se sobre o morro. Nuvem construída pela dor do adeus, da esperança e da saudade. Cada gota de lágrima representava um bandeirante que partira. Cada lágrima juntou-se à nuvem branca do adeus, que permaneceria para sempre no topo do pico do Jaraguá.
Mesmo hoje em dia, já distante o tempo das bandeiras, quando chega o mês de maio, época que no passado servia como marco da partida dos bandeirantes, esteja o tempo nublado ou o céu límpido, quem olhar para o morro do Jaraguá, verá em seu topo a nuvem branca formada das lágrimas da tristeza das mulheres dos gloriosos bandeirantes paulistas, desbravadores dos sertões brasileiros. A nuvem branca ainda persiste no céu do Jaraguá, como prova de uma época construída pela dor e pela coragem.

Ilustrações: José Lanzellotti
Adaptação livre de Jeocaz Lee-Meddi para textos de Brasil, Histórias, Costumes e Lendas
 
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Terça-feira, 31 de Março de 2009

LENDAS SERTANEJAS

 

 

Quando os portugueses colonizaram o Brasil, encontraram um imenso território para ser desbravado. Adentraram no interior, penetrando o sertão agreste e selvagem. Longe do litoral, a população sertaneja dependia da mata, do rio que corria pelas terras secas. Nos povoados que se formaram, várias lendas ibéricas foram adaptadas pelo sertanejo, tomando a forma e o conteúdo da realidade do imenso sertão brasileiro.
Um país rico em diversidades culturais, também é rico em lendas. As lendas sertanejas buscaram inspiração não só nas tradições orais dos colonizadores europeus, como assimilaram lendas trazidas da África pelos negros e as contadas pelos índios.
Aqui serão contadas três lendas sertanejas:
Caipora, uma espécie de duende tropical, protetor dos animais silvestres, que toma a forma de um menino negro e peludo, atravessa as matas nu, a montar em um porco selvagem, empunhando um ferrão. Também chamado de Caapora, ele assume várias formas em diferentes regiões do Brasil, como a de um homem ou a de uma velha.
Famaliá é uma lenda portuguesa, nas crônicas de São Cipriano ele surgia do ovo de uma galinha preta, e de umas palavras dirigidas a Lúcifer. No sertão mineiro e da Bahia, ele surge do ovo de um galo. Desde o século XVI que a lenda foi transportada para o Brasil. Com o passar dos anos, ele deixou de ser o Familiar das crônicas ibéricas, para ser o Famaliá do caboclo sertanejo.
O Sono do Rio vem das crenças dos barqueiros das regiões ribeirinhas do São Francisco. Se na Europa existe a lenda da Hora Azul, um momento de transição entre o dia e a noite, que dura um segundo, e que há um silêncio entre os seres do dia e os seres da noite, o sono do rio dá-se também, em um único segundo, à meia-noite. Durante o segundo, o mar, o rio e todas as águas adormecem, para um breve descanso. Não se pode acordar o ressonar das águas, para que não insultemos a natureza.
Três belas lendas que trazem um retrato de um Brasil cada vez mais distante no mundo virtual e conectado pela tecnologia. Um Brasil rico em narrativas e imaginação, formando um povo ímpar, de uma cultura plural e inesgotável.

Caipora

Pelas caatingas, pelas matas do sertão, a vida corre solta para os animais silvestres, que diante da maldade dos homens, conta com o espírito indomável do Caipora, sempre atento aos caçadores. O Caipora caça as galinhas nas capoeiras, assusta os cães e os cavalos domésticos, sempre protegendo os animais selvagens.
João sempre ouvira falar do Caipora, mas nunca acreditou que ele existisse. Tornara-se um exímio caçador de porco do mato. O destemido João decidiu, numa sexta-feira, caçar alguns porcos selvagens para salgar a carne e abastecer a sua dispensa. Tomou da sua espingarda e, à tardinha, quando o sol começava a cair no crepúsculo, pôs-se de tocaia atrás de uma pedra na beira do rio. Atento aos movimentos, João ouviu quando uma vara de queixadas aproximava-se. Quando as queixadas puseram-se a beber água, mais do que depressa João deu três tiros certeiros. Viu cair um a um os porcos do mato que caçara, enquanto os outros fugiam assustados. João estava satisfeito. Aqueles animais eram-lhe suficientes. Orgulhou-se de como estava com uma pontaria cada vez mais precisa, sem errar um tiro.
O João já se preparava para retalhar a carne das caças, deixando-lhes só as carcaças, quando se formou um grande remoinho de poeira à sua volta, que lhe cobriu os olhos de terra. No meio do remoinho, o caçador ouviu um barulho de animal a cavalgar. Ouviu gritos e palavras em uma língua estranha. João limpou os olhos, podendo ver que do centro do remoinho surgia um moleque peludo, totalmente nu, sentado em cima de um gigante porco do mato. O moleque trazia uma lança com um grande ferrão na ponta. João ficou quedo, sem poder mover as pernas, paralisadas pelo medo. Aquele estranho moleque só poderia ser o Caipora.
O caçador não ousou a olhar de frente tão temida criatura. O Caipora, ao ver os animais mortos, deu um grito ensurdecedor, lançando na mata toda a sua ira. Em seguida tocou com o ferrão uma das queixadas mortas, dizendo-lhe:
– Levante! Embrenhe-se na mata!
O animal levantou-se e saiu correndo. Repetiu o gesto com outro animal, sucedendo-lhe o mesmo. No terceiro e último porco do mato morto, o Caipora tocou com tanta força o seu ferrão, que este quebrou. A queixada saiu correndo. Irritado, o Caipora olhou para o caçador, dizendo-lhe:
– Por sua causa quebrei o ferrão da minha lança. Sorte a sua, pois o próximo que iria tocar com a lança era você, e ao contrário das queixadas, você nunca mais se iria levantar do chão, cairia morto na mata! Não queira estar aqui quando eu consertar o ferrão!
Dizendo isto, ele deu um imenso grito, fazendo com que disparasse o porco do mato que ele montava, seguido de outros tantos, por fim, desapareceu dentro da mata. João respirou aliviado. Pegou sua espingarda e partiu.
No dia seguinte, João foi visitar o ferreiro do lugar. Antes de começar a relatar a sua história ao amigo, ambos foram surpreendidos por um estranho caboclo, de olhar esgueiro, que despertava pouca confiança. O caboclo dirigiu-se ao ferreiro:
– Preciso que conserte este ferrão. – Ordenou. – Tenho muita pressa.
João olhou para o ferreiro, como se perguntasse quem era o caboclo. Ao olhar para o ferrão, reconheceu que era o mesmo que o Caipora empunhava na mata. O caboclo era o próprio Caipora, que desencantara. João fez um gesto para ajudar o ferreiro a acender a forja e consertar o ferrão. Então ouviu a voz áspera e irritada do estranho caboclo, que lhe disse:
-Não toque no ferrão! Não se esqueça que quando ele estiver consertado, irá disparar sobre aquele que não disparou antes. Quer esperar para ver o ferrão consertado? Então vá embora e nunca mais mate um porco do mato. E nunca conte para ninguém o que você viu!
João largou o ferrão quebrado. Não esperou segunda ordem, fugiu dali antes que o caboclo voltasse a ser o Caipora. Desde então, João nunca mais se embrenhou na mata sertaneja atrás das queixadas.

Famaliá

Com muita tristeza, o fazendeiro enterrou a sua mulher. Após beber a morta com os vizinhos, o infeliz homem voltou para a sua fazenda. Sentou-se em uma cadeira no meio da sala, de frente para o oratório. Ali, dentro do oratório, ele guardava a sua relíquia mais preciosa, dona do seu segredo.
A sala da casa parecia enorme. Dono da maior fazenda do sertão mineiro, o fazendeiro sentia-se sozinho, velho e infeliz. Os filhos migraram para as grandes cidades. Morrera-lhe a mulher. Com os olhos marejados, o fazendeiro repassou a sua vida, impregnada de memórias em cada canto daquela sala. Na distância do tempo, ele encontrou o rapaz pobre e humilde que um dia tinha sido. Na juventude fora um capataz dedicado da fazenda do Mané Lourenço. O patrão, avançado na idade, grato pela dedicação do capataz, no leito de morte revelou a ele o segredo da sua imensa fortuna: era por causa do Famaliá. Mané Lourenço contou ao jovem capataz como conseguir o seu Famaliá.
Tão logo o Mané Lourenço foi enterrado, o capataz foi até o seu galinheiro atrás de um ovo de galo. Procurou, procurou, e não achou a preciosidade. Mas o capataz não desistiu. Todos os dias, durante meses, ele ia ao galinheiro do finado Mané Lourenço atrás do ovo de galo. Já começava a pensar que o patrão zombara da sua fé e ambição. Um dia, lá encontrou um ovo pequenino, do tamanho do ovo de uma pomba. Sorriu vitorioso. Finalmente encontrara um ovo de galo. Pegou o tão precioso ovo e o levou para casa. Seguindo o que lhe ensinara o Mané Lourenço, esperou até a quaresma. Na noite alta da primeira sexta-feira da quaresma, levou o ovo até uma encruzilhada escura, esperou pela viração das horas, pôs o ovo debaixo do braço esquerdo, na axila, pronunciou as palavras secretas que lhe revelara o patrão morto. Assim, com o ovo debaixo do braço, voltou para casa. Estava consumado!
O jovem capataz foi acometido de uma imensa febre, que o fez prostrar-se na cama, ali permanecendo por quarenta dias. A febre parecia queimar o seu corpo. Ao final daqueles dias, sentiu quando o ovo começou a eclodir. De dentro dele surgiu um diabinho de um palmo de tamanho. O jovem pegou o diabinho e o meteu em uma garrafa preta, arrolhou-a com cuidado, guardando-a em segredo, em um velho oratório que recebera de herança da avó.
Com o seu Famaliá na palma da mão, o jovem pediu-lhe riquezas, poder e sedução sobre as pessoas. Não tardou a ser atendido, pois tudo que se lhe tocava, tornava-se próspero. O ex-capataz tornou-se um grande fazendeiro, ainda mais rico e mais importante do que fora o Mané Lourenço. Casou-se, teve filhos, dinheiro, poder, fama, mas nunca a felicidade.
Velho, viúvo e sozinho, o fazendeiro olhava para o oratório. Caminhou até ele, abriu-o. Lá estava o seu segredo. O Famaliá. Nunca ninguém mexera naquela garrafa a não ser ele. Era o seu grande segredo. Pegou a garrafa na palma da mão. Angustiado e triste, olhou para o Famaliá e perguntou-lhe:
– Você me deu tudo, falta a felicidade. Onde está?
– Dei o que você me pediu. Dinheiro, riqueza, poder, êxito. Tudo isto não traz felicidade?
– Não, não traz.
– E o que você queria? Para se ter um Famaliá você fez um pacto com o diabo, não com os santos. Você ganhou, mas o diabo foi o vencedor.
Amargurado, o fazendeiro pôs o Famaliá dentro do oratório. Por quê Mané Lourenço não o advertira sobre a felicidade? Saiu da sala, cabisbaixo, triste e infeliz. Já nenhum poder ou riqueza varria a solidão do seu coração. Guardou o oratório em um porão. Nunca mais o abriu.

O Sono do Rio

Numa noite estrelada, Serafim deslizava o seu barco pelas águas do rio São Francisco. Exibia orgulhosamente a sua nova carranca. Serafim afastara-se dos outros barqueiros. Através das águas do velho Chico adentrava o sertão. Guiava-se pelas estrelas, que lhe revelavam as horas. O silêncio da noite era cortado pelo barulho, ao longe, da cachoeira que estava próxima. Cada estrela iluminava o rosto do barqueiro, tornando-o luminoso.
Já quase próximo da meia-noite, Serafim foi, de repente, acometido por um cansaço extenuante, que trazia uma lassidão ao seu corpo, quase que em forma de encantamento. Vendo as forças a faltar-lhe, o barqueiro deitou-se na barca. Sentiu que uma força magnética conduzia-o pelo rio. Cada vez mais sentia o barulho da cachoeira aproximar-se. Imóvel, viu a barca parar. No céu a estrela guia indicava-lhe que era meia-noite. Quanto mais brilhava a estrela, mais claras ficavam as águas do rio São Francisco.
Serafim continuava imóvel, deitado sobre a barca. Então um silêncio absoluto reinou ao seu redor. A cachoeira cessou o barulho das suas águas. Diante da calmaria silenciosa, o barqueiro lembrou-se que aquele era o dia do Sono do Rio, e que nenhum movimento poderia interromper o momento único, pois ele se dava apenas uma vez no ano. Bem devagar, para não perturbar o Sono do Rio, Serafim tirou dos bolsos um pedaço de fumo cortado. Estendeu as mãos e o pôs sobre a popa. Continuou imóvel. Foi quando viu a imensa mão do Negro d’Água fazer uma grande sombra sobre a barca. Ao ver o fumo cortado sobre a popa, o estranho visitante desistiu de atacar Serafim, apossou-se do fumo e partiu.
O São Francisco continuava a dormir. Serafim permanecia em silêncio, olhando fixamente para o céu estrelado. De repente surgiu a Mãe d’Água, metade peixe, metade mulher. Sentou-se sobre a proa da barca, a pentear os belos e longos cabelos verdes, como se fizesse uma oração ao Sono do Rio.
Serafim sabia que o Sono do Rio durava apenas um segundo, mas tudo parecia eterno durante aquele segundo. As cobras perdiam a sua peçonha, os peixes ficavam imóveis no fundo do rio. De repente o belo canto da Mãe d’Água ecoou, como se velasse o Sono do Rio. Diante do seu canto, o São Francisco abriu o seu abismo hiante, devolvendo todos os homens que em suas águas morreram afogados. Serafim viu os mortos retomando a forma dos seus corpos, flutuando no ar, indo para o céu, guiados pelo clarão das estrelas.
Quando o último homem desapareceu no céu, também a Mãe d’Água sumiu. A cachoeira voltou a correr normalmente. Serafim apercebeu-se que a beleza que vira há pouco tinha findado. Sentiu-se o mais feliz dos sertanejos. As forças voltaram ao seu corpo. Pensou em levantar-se, mas continuou inerte, deitado sobre a barca por mais um minuto, para ter a certeza de que não iria atrapalhar o Sono do Rio.

Ilustrações: José Lanzellotti
Adaptação livre de Jeocaz Lee-Meddi para textos de Brasil, Histórias, Costumes e Lendas
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Sábado, 28 de Fevereiro de 2009

REIS MAGOS, DO EVANGELHO À LENDA

 


A comemoração do dia de reis tornou-se uma tradição secular cristã que chegou aos dias atuais. É atribuída aos reis magos a tradição da troca de presentes no natal. Construída durante os últimos séculos, a história dos magos termina com a reverência aos seus corpos, guardados como relíquias na catedral de Colônia, Alemanha. Melchior, Gaspar e Baltazar teriam visitado o Jesus recém-nascido, encontrando-o ainda na manjedoura, reverenciaram o rei dos reis. Este relato cristão originou a lenda dos três reis magos. Lenda porque ela nunca aconteceu, não da forma que se relata e das personagens que dela participam. Os magos, provavelmente astrólogos, descritos unicamente no Evangelho de Mateus, estão longe da imagem dos três reis magos que nos chegou. A começar pelo título de rei. Em nenhum momento Mateus os descreveu como reis, não lhes foi atribuído um número exato, muito menos os nomes.
Mas de onde surgiu a lenda de Melchior, Baltazar e Gaspar? E se não passam de uma lenda cristã, a quem pertence os corpos das relíquias da catedral de Colônia? É a estas questões que se tentará responder aqui, distanciando-se das tradições religiosas, apegando-se às evidências dos documentos históricos.

Os Magos no Evangelho de Mateus

As bases da lenda dos três reis magos remontam das histórias ao redor do nascimento de Cristo, ou seja, de uma narrativa de um dos evangelhos cristãos, o de Mateus. Dos quatro evangelhos – Mateus, Lucas, Marcos e João – só os de Mateus e Lucas relatam o nascimento de Jesus Cristo. Os evangelhos de Marcos e João relatam a vida do messias a partir do seu batismo feito por João Batista. Lucas e Mateus contam, de forma diferente, o nascimento de Cristo. Lucas conta que os pastores são avisados por um anjo do nascimento do ungido, são eles que encontram Maria e José na estrebaria, embalando uma criança na manjedoura. Mateus fala de magos (astrólogos) que visitam o recém nascido. É desta narrativa única nos evangelhos que surge o desenho do que seria a lenda dos reis magos:

“Depois de Jesus ter nascido em Belém da Judéia, nos dias de Herodes, o rei, eis que vieram magos (astrólogos) das regiões orientais a Jerusalém, dizendo: “Onde está aquele que nasceu rei dos judeus? Pois vimos a sua estrela quando no Oriente e viemos prestar-lhe homenagem.” O rei Herodes, ouvindo isso, ficou agitado, e, junto com ele, toda Jerusalém; e, convocando todos os principais sacerdotes e escribas do povo, começou a indagar deles onde havia de nascer o Messias. Disseram-lhe: “Em Belém da Judéia; pois é assim que se escreveu por intermédio do profeta: ‘E tu, ó Belém da terra de Judá, de nenhum modo és a mais insignificante entre os governadores de Judá; pois de ti sairá um governante que há de pastorear o meu povo, Israel.’”
Herodes convocou, então, secretamente os magos e averiguou deles cuidadosamente o tempo do aparecimento da estrela; e, ao enviá-los a Belém, ele disse: “Ide e procurai cuidadosamente a criancinha, e quando a tiverdes achado, avisai-me, para que eu também possa ir e prestar-lhe homenagem.” Tendo ouvido o rei, partiram; e eis que a estrela que tinham visto quando [estavam] no Oriente ia adiante deles, até que se deteve por cima do lugar onde estava criancinha. Ao verem a estrela, alegraram-se muitíssimo. E ao entrarem na casa, viram a criancinha com Maria, sua mãe, e, prostrando-se, prestaram-lhe homenagem. Abriram também seus tesouros e presentearam-na com dádivas: ouro, olíbano e mirra. No entanto, por terem recebido em sonho um aviso divino para não voltarem a Herodes, retiraram-se para o seu país por outro caminho.
” (Mateus 2:1,12)

Da Pérsia ou da Babilônia, de Onde Vieram os Magos?

Na narrativa de Mateus não é especificado o número dos magos. Conclui-se que é mais de um porque a narrativa está no plural. O livro diz-nos que são magos ou astrólogos, vindos do oriente, não nos informa que são reis. Os magos seriam uma casta de sacerdotes eruditos, astrólogos e astrônomos, que viviam na região da Média, na Pérsia. Estudavam os livros sagrados e seguiam os ensinamentos do profeta persa Zaratustra. A religião zoroastriana era monoteísta, com concepções de paraíso e de messianismo, que segundo alguns historiadores, influenciariam o judaísmo.
Outras versões apontam os magos descritos por Mateus como de origem da Babilônia. É comprovada a grande tradição dos babilônios nos estudos de astronomia. A descrição da estrela de Belém que guiou os magos, o estudo exato feito por eles do local onde ela brilharia, revela que pode ter sido um fenômeno astronômico possível de se prever, o que dá consistência à hipótese de serem astrônomos vindos da Babilônia.
Persas ou babilônios, é indiscutível que Mateus fala de magos, e não de reis, a visitar o messias recém-nascido. O título de reis viria apenas no século III, quando os cristãos primitivos, já sob influência do helenismo e, futuramente, da romanização da fé, tentam evidenciar a profecia do Salmo 72:11, de que diante do rei dos judeus prostrar-se-iam todos os reis. Teria sido Tertuliano de Cartago quem no início do século III, escreveria que os magos do oriente eram reis.

Surgem Melchior, Gaspar e Baltazar

Como Mateus não precisou o número exato dos magos, no início da veneração a eles, várias foram as interpretações de quantos seriam. Nos primeiros tempos do cristianismo chegaram a ser representados em doze. Há imagens medievais que mostram apenas dois. Na catacumba de Santa Domitilla, em Roma, aparecem quatro magos representados. Naturalmente chegou-se ao número de três reis magos devido às prendas oferecidas: ouro, olíbano e mirra.
Também a cor da pele de cada um não é mencionada no evangelho. Com o tempo, as crenças populares moldaram a fisionomia de cada um dos magos, dando-lhes idade, cor e nacionalidades diferentes. Por fim, receberam nomes: Melchior, Gaspar e Baltazar.
As identidades dos três reis magos, como nome, nacionalidade, idade e cor, só foram dadas cerca de 800 anos após o nascimento de Cristo. Os nomes de Gaspar, Melchior e Baltazar aparecem pela primeira vez, nos mosaicos da Basílica de San Apollinare Nuovo, em Ravena. Começam a ser referidos numa série de fontes a partir do século VII ou VIII.
Melchior (do hebreu Melichior, que significa o “rei da luz”), rei da Pérsia. Foi descrito por São Beda, o Venerável, como um velho de 70 anos, de cabelos e barbas brancas. Partiu de Ur, terra de Abraão, na Caldeia, rumo a Jerusalém, para reverenciar o messias.
Gaspar (do hebreu Gathaspa, “o branco”), rei da Índia. Na versão de São Beda era jovem de 20 anos, robusto, partira de uma distante região montanhosa, perto do Mar Cáspio.
Baltazar (do hebreu Bithisarea, “senhor do tesouro”), rei da Arábia. Segundo São Beda, era mouro, de barba cerrada, tinha 40 anos, partira do Golfo Pérsico, na Arábia Feliz.

Relíquias Sepultadas em Colônia

A adoração Medieval aos então recriados magos, gerou a lenda de que após 50 anos do nascimento de Cristo, eles voltaram a reencontrar-se. Desta vez não em Jerusalém, mas em Sewa, uma cidade da atual Turquia, fazendo parte dos primeiros cristãos que evangelizavam a fé na Ásia Menor. Melchior, Baltazar e Gaspar teriam falecido em Sewa, onde foram sepultados.
Foi na Idade Média que abundaram a procura e o encontro das relíquias religiosas vindas da Terra Santa. Reza a tradição que pedaços da cruz de Cristo chegaram em forma de relíquias às mãos de quase todos os cristãos ricos europeus, era tamanha a quantidade que se juntos fossem os pedaços, dariam centenas de cruzes. No meio das mais exóticas e imprevisíveis relíquias, teriam surgido os corpos do três reis magos. De Sewa foram transladados para Constantinopla, e dali para Milão. Quando Milão foi dominada pelo imperador germânico Frederico, as urnas mortuárias com as relíquias dos supostos reis magos, teriam sido novamente transladadas, por volta de 1164, desta vez para Colônia. Desde então, há uma crença que uma urna dourada, situada no altar-mor da catedral de Colônia, seja dos homens que viram o Cristo recém-nascido na manjedoura. Esta relíquia pode ser vista por quem visita a catedral.
Não se sabe a quem pertence os corpos de Colônia, a única certeza é de que não são dos magos que um dia, trouxeram os primeiros presentes ao menino que se tornaria o profeta do cristianismo.
Na figura dos magos, Mateus soube filtrar as interpretações das escrituras que apontavam o messias, fazendo da reverência e dos presentes desses homens, uma simbologia precisa de quem era o menino que viera ao mundo para cumprir a promessa de redimir a humanidade. A ele foi dado o ouro, que era na antiguidade, um presente para um rei; o olíbano (incenso), um presente para um sacerdote e a mirra, presente para um profeta, pois ela era usada para embalsamar corpos, representando a mortalidade do corpo e imortalidade da alma. Originados do relato dos magos de Mateus, os três reis magos permanecem como uma das belas lendas do cristianismo.
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Quarta-feira, 14 de Janeiro de 2009

LENDAS INDÍGENAS

 

 


Todas as civilizações que se espalharam pela Terra, fossem elas mais avançadas ou primitivas, tinham a necessidade de explicar as suas origens, explicar os ciclos da vida do homem, como o nascimento, o viver e a morte. Através das religiões, os homens encontravam sentido na natureza e nos seus fenômenos, associando-as às suas necessidades. Misticamente podiam explicar as estrelas no céu, as árvores, os bichos, os alimentos. Quanto mais primitiva a civilização, mais frágil era a sua sobrevivência, os seus costumes, as suas religiões.
Nas terras novas descobertas pelos europeus, que formavam o imenso continente americano, várias foram as civilizações indígenas encontradas por eles. Civilizações de religiões primitivas, que através da força bruta e da catequização européia, viram as suas crenças perseguidas, dilaceradas e transformadas em lendas.
Das antigas civilizações indígenas brasileiras, várias tradições traduziram-se em belíssimas lendas que nos ficaram. Três dessas lendas serão contadas aqui:
Cobra Norato”, vinda dos povos catequizados das margens do grande rio Amazonas, já é uma lenda do caboclo filho do índio. Os jesuítas, na tentativa de alertar os índios sobre os pecados do cristianismo, incutiam-lhes os medos medievais, como a cobra que engolia os índios, e o perigo dos filhos do pecado das mulheres, que se deitavam com homens e com eles não eram casadas, os seus filhos seriam amaldiçoados e transformados em cobras.
A Criação do Mundo”, uma lenda que é o gênesis dos índios Carajás, habitantes do centro-oeste do Brasil. Nesta lenda temos a origem do dia sobre a noite eterna.
A Gruta dos Amores”, velha lenda dos índios Tamoios, habitantes das ilhas da Baía de Guanabara, índios que durante a colonização européia, chegaram a apoiar os franceses e a lutar contra os portugueses. É deles a lenda da gruta dos amores, em Paquetá.
Tão belas quanto as lendas européias, as lendas indígenas trazem uma epopéia singela dos primeiros habitantes das terras brasileiras.

A Criação do Mundo

Os índios Carajás, no princípio do mundo, viviam dentro do furo das pedras. Não conheciam a Terra. Eram felizes e tinham a eternidade, vivendo até avançada velhice, só morrendo quando ficavam cansados de viver.
Um dia, os Carajás decidiram abandonar o furo das pedras, na esperança de descobrir os mistérios da Terra. Apenas um deles, por ser muito gordo, não conseguiu passar pelo furo da pedra, ficando nele entalado.
Na Terra, que trazia uma escuridão sem fim, os índios percorreram todos os lugares. Descobriram frutos e comidas. Compadecidos do companheiro que ficara entalado no furo da pedra, levaram-lhe os mais saborosos frutos e um galho seco. Ao ver aquele galho seco, o índio entalado observou:
O lugar por onde vocês andam não é bom. As coisas envelhecem e morrem. Veja este galho, envelheceu. Não quero ir para um lugar onde tudo envelhece. Vou voltar. E vocês deviam fazer o mesmo!
E robusto carajá voltou para dentro da pedra. Os outros continuaram a percorrer a Terra, que se encontrava nas trevas. Um menino carajá, junto com a amada, percorria a Terra em busca de alimentos. Como não havia luz, a amada sangrou as mãos nos espinhos, quando colhia frutos. O menino, na escuridão, comeu mandioca brava. Envenenado pela raiz, o menino carajá deitou-se de costas, a passar mal. Vários urubus começaram a andar em volta do seu corpo. Um dos urubus disse:
“Ele não está morto, ainda move o corpo.”
Outro urubu replicou:
Não, ele está morto.”
Todos os urubus opinavam, uns achavam que o menino estava morto, outros achavam que não. Para que a dúvida fosse esclarecida, foi chamado o urubu-rei, com o seu bico vermelho e penugem rala na cabeça. Considerado o mais sábio dos urubus, a ave imponente declarou:
Ele está morto.”
E foi pousar na barriga do menino. Inesperadamente, o menino carajá, que se fingia de morto, pegou o urubu-rei pelas pernas e o prendeu nas mãos. A ave esperneou, debateu-se, mas não se libertou das mãos do menino.
Quero os mais belos enfeites.” Disse o menino ao urubu-rei.
A ave, para ser libertada, trouxe as estrelas no céu como enfeites aos olhos do menino. As estrelas eram belas, mas o mundo continuava escuro.
Quero outro enfeite.
O urubu-rei trouxe a lua. E a Terra continuava escura.
Ainda é noite. Quero outro enfeite, este também não serve.”
Então o urubu-rei trouxe o sol. E o mundo ficou cheio de luz.
O urubu-rei ensinou ao pequeno índio a utilidade de todas as coisas do mundo. Feliz, o menino soltou a sábia ave. Só então o carajá se lembrou de perguntar ao urubu-rei o segredo da juventude eterna. No alto do céu, a ave contou-lhe aquele segredo, mas voava tão alto, que todos ouviram a resposta, as árvores, os animais, menos o menino. E por não ter ouvido o urubu-rei, todos os homens envelhecem e morrem.

Cobra Norato

A bela e fogosa cabocla, escondera por nove meses, o resultado do mau passo que dera durante as festas de Santo Antônio, ao pular a fogueira ao lado de um caboclo viril. Nove meses depois, acompanhada pela mãe índia, indo beber água no rio Amazonas, a cabocla sentiu fortes dores no ventre. Minutos depois, deu à luz a um casal de gêmeos. Tão logo os gêmeos choraram, a cabocla viu a prole transformar-se em duas cobras. Era o preço do seu pecado, gerar dois filhos encantados.
Arrependida do mau passo, a cabocla entregou os filhos à velha índia, que por sua vez, os foi entregar ao pajé, para que os matasse. O pajé sabia do encantamento dos filhos da cabocla. Não os matou, jogou as duas cobras nas águas do Amazonas, para que o grande rio os criasse.
No rio, Honorato e Maria Canina foram criados. Nas noites de luar pleno, os irmãos deixavam a pele de cobra e percorriam as festas dos homens, transformados ele em um belo homem, ela numa mulher feia e má. Honorato era de boa índole, Maria Caninana lançava a discórdia e o veneno aos homens. De tão má, um dia foi morta por pescadores, fazendo da sua pele de cobra belos cintos.
Nos bailes, Honorato roubava o coração das mulheres, tamanha a sua formosura e carisma de sedutor. Antes de o sol raiar, voltava para o rio, transformando-se na tal terrível cobra Norato.
Ao ver o sofrimento de Honorato, um dia o pajé revelou-lhe o segredo do seu desencantamento: somente um homem de coragem arrojada poderia fazê-lo, lançando gotas de leite na boca da cobra, dando-lhe, a seguir, um corte na cauda, para que o sangue amaldiçoado escorresse e o encantamento fosse desfeito.
Diante de tão horrendo e gigantesco monstro, não havia um homem à beira do Amazonas que ousasse desencantar Honorato.
Uma noite, o jovem encantando falou da sua desgraça a um valente soldado. Enternecido pela triste sina do jovem, o soldado prometeu livrar-lhe para sempre da maldição. Esteve com ele até o sol nascer, quando o viu transformar-se no mais feio e terrível monstro. O soldado encheu-se de coragem, abriu a boca da imensa cobra, que, já pronta para devorá-lo, sentiu as gotas de leite por ele lançadas em sua garganta. Antes que o animal cuspisse o leite, o soldado, empunhado de um sabre, abriu-lhe um corte na cauda. Tão logo o sangue molhou as águas do rio Amazonas, da pele fria da cobra, surgiu o belo e jovial Honorato.
Findava-se a Cobra Norato, que tanto causara medo e terror aos índios e caboclos que viviam às margens do grande rio Amazonas. Seguiu Honorato, belo e encantador, eternamente grato à coragem do soldado que o libertara. Desencantando para sempre.

A Gruta dos Amores

Itanhantã era um belo e forte índio tamoio, que provia o seu povo com a caça e a pesca que trazia para ele. Itanhantã remava, todos os dias, a sua canoa rumo à ilha de Paquetá. Na ilha caçava os mais perigosos animais, que tombavam diante das suas flechas certeiras.
Em Paquetá vivia Poranga, uma bela índia, que no esplendor dos seus quinze anos, encheu-se de amor pelo viril caçador. Apaixonada, a índia ajudava o amado, indo buscar-lhe a caça abatida. Olhava-o com ternura, falava-lhe com doçura, mas o valente caçador não lhe via os sentimentos, não se comovia com o amor e dedicação da índia.
Todos os dias, depois de caçar intensamente, Itanhantã repousava o corpo na sombra de uma gruta, adormecendo, até recuperar as forças. A pobre índia apaixonada, velava do alto da pedra que formava a gruta, o sono repousante do amado. Chorava as mais tristes lágrimas do amor não correspondido, que corriam pela pedra. Enquanto chorava, ou esperava pela vinda do amado, Poranga entoava o mais belo canto de amor, que ecoava por toda Paquetá.
O tempo passou, as lágrimas e o canto da bela índia não enterneceram o coração de Itanhantã, que continuava a caçar e repousar em Paquetá. Tantas foram as lágrimas de Poranga, que elas abriram a pedra da gruta, transpassando-a, vindo um dia, a cair sobre o rosto do tamoio. Assustado com aquela água que lhe molhou os olhos, Itanhantã fugiu da gruta, vindo a encontrar Poranga no caminho. Diante dos olhos lavados pela água da gruta, Itanhantã descobriu no rosto da índia a mais perene beleza, e no seu olhar, o amor eterno. Apaixonado, Itanhantã tomou Poranga nos seus braços e a beijou. Depois levou a índia na sua canoa, tomando-a como esposa, sendo felizes para sempre.
As lágrimas de Poranga transformaram-se na fonte da água que existe na Gruta dos Amores, em Paquetá. Até os dias de hoje, em Paquetá, quem beber da água da Gruta dos Amores ao lado da pessoa amada, terá o seu amor para sempre.


Ilustrações: José Lanzellotti
Adaptação livre de Jeocaz Lee-Meddi para textos de Brasil, Histórias, Costumes e Lendas
publicado por virtualia às 01:42
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Quinta-feira, 14 de Agosto de 2008

LILITH - A PRIMEIRA MULHER DO MUNDO

 

 

A natureza mística do homem, a sua condição mortal diante da vida, leva-o a acreditar nas mais diversas religiões, a moldá-las diante das necessidades que a evolução cientifica e cultural assim os obriga. A própria razão científica dada às crenças e às suas interpretações, determinou a extinção das mais primitivas religiões, rebaixando os seus deuses à condição de mitos, como foi o caso da religião da Grécia e da Roma antigas. Antes de Apolo ser transformado no mito protetor das artes e da poesia, o seu famoso templo, o oráculo de Delfos, foi palco de uma adoração absoluta, sendo várias vidas sacrificadas em seus altares em nome do deus.
Lilith é hoje um dos mitos mais conhecidos da cultura judaica. Segundo o Talmude (obra que compila discussões rabínicas sobre leis judaicas, tradições, costumes, lendas e histórias), ela é a primeira mulher de Adão. Anterior a Eva, Lilith é a personificação da justificativa do matriarcado ser preterido a favor do patriarcado na cultura judaico-cristã.
 

Lilith, a Mulher Feita do Pó

 
Segundo o Zohar, livro cabalístico criado no século XIII, quando Deus fez o homem, criou-o macho e fêmea, depois o dividiu ao meio e separou as suas almas, lançando-as no universo, para que assim, as almas gêmeas se encontrassem.
Lilith surge como a parte feminina separada de Adão, e é dada a ele como esposa. Assim como o homem, a mulher aqui é criada da mesma essência, do barro. Não é uma coadjuvante do homem, mas igual a ele. Se Deus fez do homem a sua imagem, a mulher reflete esta imagem, já que faz parte da mesma criação dividida. A natureza de Lilith é de rebeldia e de insatisfação. Ao fazer sexo com Adão, questionava-lhe o porque de ter que ficar sempre por baixo, a suportar-lhe o peso, se também ela era feita do pó, por que tinha de lhe ser submissa? Para manter o equilíbrio já estabelecido, Adão recusava-se a inverter as posições (versões aramaica e hebraica do Alfabeto de Ben Sirá, século VI ou VII).
Diante da intransigência do marido, Lilith rebela-se e pronuncia inadequadamente o nome de Deus. Vitupera Adão e o abandona quando o sol se põe, à noite, na mesma hora que Deus fizera vir os demônios ao mundo. Lilith parte para o Mar Vermelho, onde habitam os demônios e espíritos malignos, tornando-se ela mesma um demônio, longe do Éden.
Deus ordena que Lilith retorne. Diante da recusa, envia uma guarnição de três anjos, Sanvi, Sansavi e Samangelaf, para tentar convencê-la. Mas com grande fúria, ela se recusa a voltar.
Abandonado, Adão sente o peso da perda e da solidão. Diante da sua tristeza, Deus faz com que ele adormeça, retira uma das suas costelas e cria Eva, mulher ideal, feita não do pó como o homem, mas da sua carne, do seu sangue e das suas necessidades diante de uma sociedade patriarcal. Ao contrário de Lilith, Eva é submissa e dócil. É o equilíbrio do homem diante do mundo e de Deus.
Lilith torna-se a noiva de Samael, o senhor das forças do mal do SITRA ACHRA (aramaico, significa "outro lado"). Dessa união gera cem demônios por dia, que são destruídos pelos três anjos. Enfurecida, Lilith tenta se vingar na prole de Adão e Eva, jura matar todo filho recém-nascido de Adão e de sua descendência.

Superstições Ligadas ao Mito

 
Antes de ser levada à categoria de mito e fazer parte do folclore judaico, Lilith aparece em relatos da Torah assírio-babilônica e hebraica entre outros textos apócrifos. Durante séculos Lilith foi vista pela comunidade judaica como um temível demônio, principalmente na Idade Média. O parto era feito obedecendo a vários rituais para proteger a mãe e o filho das forças demoníacas de Lilith, que inveja a alegria da maternidade. Ela é uma ameaça ao embrião. Sussurravam sortilégios no ouvido das mulheres para facilitar o trabalho de parto. A porta do quarto das crianças tinha os nomes dos três anjos escritos sobre ela, e cercava-se o quarto com um círculo de carvões ardentes. Ainda hoje há versões modernas de como proteger os partos de Lilith em algumas comunidades judaicas do norte da África.
Lilith muitas vezes é descrita como a Lua Negra, outras vezes como uma vampira, que nos dias de solstício e equinócios lança seu líquido menstrual nas águas, contaminando a todos que bebem o líquido nesses dias. Também o homem perde a razão quando enfeitiçado por seus sortilégios e apaixona-se pelo seu corpo. Também o bebê quando sorri sozinho, está a brincar com Lilith.
Ironicamente o mito de Lilith, antes visto como um demônio, hoje é símbolo das lutas femininas. De acordo com alguns astrólogos, de 1914 a 1938, quando Lilith sofreu influência de Plutão, que fez uma longa volta à sua órbita, as filhas de Eva iniciaram os movimentos de libertação e direitos diante dos homens.
Os questionamentos de Lilith à igualdade por ter sido gerada do pó, assim como Adão, perdem o sentido contestatório quando da explicação de que a parte que lhe coubera do barro era de pó negro, lodo e excrementos, inferior à essência geratriz de Adão, segunda a versão jeovística para o Gênesis, contada no Talmude e oralmente pelos rabinos. Adão tem a sua androgenia sagrada, pois foi criado à imagem de Deus. Lilith ao contestar e reinvidicar para si os mesmos direitos, desequilibra a harmonia do Éden, origina um afastamento do homem e do Criador.
Assim, destituído da primeira mulher, Adão se uniu a Eva, parte da sua carne, feita sob medida para ele e para ser a mãe da humanidade.
 
publicado por virtualia às 04:35
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