“E Deus prosseguiu dizendo:
‘Façamos homem à nossa imagem, segundo a nossa semelhança,
e tenham eles em sujeição os peixes do mar,
e os animais domésticos, e toda a terra,
e todo animal movente que se move sobre a terra.’
E Deus passou a criar o homem à sua imagem,
a imagem de Deus o criou;
macho e fêmea os criou.”
(Gênesis 1:26-27)
Quando a canção dos ventos faz dos mil dias os mil anos, dos mil anos o princípio do passado, onde a confusão do futuro continua a arremessar o nosso ser nas incertezas de Deus. Assim a noite torna-se a máquina do tempo, e o corpo as moléculas das ideologias.
Nas incertezas da minha mente, fugir para os jardins públicos nunca arrebatou os meus desejos. Naquela noite de estrelas e de galáxias sobre as cabeças, entrei pelo Jardim do Trianon. Tudo era escuro, e um cheiro nauseante de flores confundia a primavera. Sempre tive medo de atravessar o coração do jardim. Medo das surpresas, ali assaltantes, drogados e bichas dançavam um tango perigoso com cheiro de sangue e esperma. Não resisti ao cheiro das flores, teria que vomitar. Talvez fosse do absinto, mas preferia acreditar que era das flores, intelectualizava melhor os vícios. Entrei no coração do jardim para vomitar. Poderia tê-lo feito nos urinóis dos cães por ali espalhado, mas a minha condição de cão sem dono não me deixou fazer isto.
Quanto mais penetrava no interior do jardim, mais a noite corria, as nuvens no céu passavam por mim em grande velocidade. As estrelas davam passagem ao Sol, que por sua vez brilhava de um tom pastel, dando à paisagem cores tranqüilas, cromaticamente perfeitas. O jardim foi ampliando-se, tornara-se infinito, já não conseguia ver os prédios. Na minha boca o gosto do absinto dava passagem a um bem-estar quase bucólico. Já não tinha coragem de vomitar.
Caminhei pelo imenso jardim. Por mim passaram plantas, árvores, pássaros, formas da natureza que jamais tinha visto. Quanto mais caminhava, mais me perdia dentro do jardim. Andei alguns minutos, quando vi ao longe um lago. Parecia calmo, convidativo para beber água. Caminhei até o lago, na certeza de querer ver a minha imagem nele refletida. Debrucei-me sobre as margens. Bebi um pouco da água, era saborosa, fresca, pura. Molhei com as minhas mãos o meu rosto. Olhava-me no espelho das águas, quando uma outra imagem formou-se no reflexo das mesmas. A imagem tremia com o movimento das águas. Mas podia ver o corpo de um homem, um rosto a olhar-me. Uma beleza que jamais vi em revistas ou filmes. Levantei-me, vi atrás de mim o homem da imagem nas águas. Sorria-me com um sorriso quase ingênuo, talvez puro. Olhei para o seu corpo, estava nu, completamente nu. Um corpo perfeito, de uma beleza que jamais encontrei nos ginásios de atletas. Trazia músculos exatos, sem nunca ter recorrido aos alteres. Levantei-me, se aquele homem não era uma miragem, com certeza que atenderia a todos os engates de jardins, sem jamais sair dali. Toquei-lhe no ombro. A pele era perfeita, passei-lhe a mão pelo peito. Olhei para ele. Era real.
-Quem és tu, um anjo? - Perguntou-me.
Um anjo? Eu, um anjo? Sim, anjo, querubim, serafim, arcanjo, o que ele quisesse. Para quê dar títulos às coisas? Eu era a ilusão que me quisessem dar, seria difícil de explicar isto?
-Porque me fazes esta pergunta?
-És um anjo? Trazes vestes, deves ser um anjo de Deus.
-Um anjo de Deus? E tu quem és?
-Não sou nada, sou apenas a imagem da obra de Deus. Mas deves saber quem sou. Não fazes parte do jardim, fazes parte do conhecimento que eu ainda não tive, mas que procuro. Fazes parte dos anjos.
-Como te chamas?
-Não sabes? Todos os anjos sabem. Todos me chamam Adão, e não sei porque, todos eles, filhos de Deus, como eu, mas mais poderosos, invejam-me como criação perfeita. Acho que a inveja deles trará um dia o meu fim.
Adão. O jardim não era o Trianon? Olhei à minha volta. Tudo era perfeito, a harmonia da paisagem confundia-se com os animais que passeavam mansamente pelo jardim. Não, definitivamente aquele homem era por demais perfeito para ser um de nós. O seu corpo trazia a beleza divina, sim, agora percebia a inveja dos anjos que queriam ser como Adão. A beleza da criação de Deus ainda perfeita. O corpo como símbolo de beleza, não de desejo. De repente senti-me envergonhado por trazer roupas. As roupas traziam-me o pecado, trazia-me a traição àquela perfeição da obra de Deus.
-Sim, em parte tens razão, não sou um anjo, mas sou o resultado da luta dos anjos com Deus. Um anjo caído, porque sou o teu espelho desfocado, o teu filho mais distante, sem a importância que
tens, sem a grandiosidade de ti. Olha o meu corpo. Traz marcas, é imperfeito, perecível, quase um monstro perto do teu. Olha bem o meu corpo, és tu futuramente, sou o que fizeste, sou a tua escolha. A tua liberdade diante da escolha. Mais do que tu, sou pó, porque assim mo fizeste.
Ele olhou-me. Tocou-me. Parecia sentir uma certa repugnância. Repugnância nas imperfeições dos corpos. Por mais que tentasse, não conseguia ver-se assim. Era uma visão hecatômbica diante da criação. Mas comoveu-se com a minha imperfeição. Reconhecia em mim o filho bastardo, mesmo a julgar-me indigno do seu Éden. Sorriu-me, estendeu-me a mão.
-Queres visitar o meu jardim?
-Sim, acho que é o sonho de todos nós, imperfeitos, mas filhos de uma obra perfeita.
Caminhamos pelos jardins. Mostrou-me todas as plantas, todos os animais. Disse-me dos anos de solidão que ali esteve a aprender, a fazer conhecimento com a natureza, com tudo o que estava à sua volta. Falou-me dos anos que passou a dar nome às coisas. A tudo dera um nome e um significado. Contou-me da companheira que agora habitava o seu mundo, da felicidade de ser a mais bela obra de Deus, sem talvez, aperceber-se da responsabilidade. Caminhamos até uma árvore. Ali encontramos um pássaro morto. Um melro. Ele debruçou-se sobre o cadáver do pássaro, apanhou-o nas mãos. Dedos longos, elegantes, onde o cadáver da ave quase desaparecia entre as linhas das mãos. Depois enterrou o corpo da ave ali, perto da árvore.
-Viste aquela ave?
-Sim, era bela. Gosto das aves.
-Nela já não havia o sopro de vida, a sua alma estava morta. É assim que acontece com todos os animais. Vês a árvore onde a enterrei?
-Sim.
-É a árvore da vida. Sou imortal, por este motivo sou diferente de todas as almas viventes. Aos animais não foi concedida a imortalidade. Se comer do fruto da árvore da vida, também eu morrerei, serei igual aos outros animais.
-Então tens conhecimento do que é a morte?
-Sim, vejo a morte todos os dias a abraçar os animais que ladeiam o Éden.
-Gostas de viver?
-Gosto, sou feliz, viver é ser feliz. Para que morrer se os sopros de todas as promessas percorrem os meus sentidos? Aprendo a sabedoria todos os dias. Às vezes tenho pressa, mas se tenho a eternidade, para que a pressa? Dizem que se comer da árvore da vida morro, mas dizem-me também, que saberei todos os segredos do mundo. Às vezes tenho fome do saber, por isto tenho medo da minha curiosidade ante ao que me é oculto.
-Não te preocupes, ainda somos assim, cheios de pressa, talvez por não termos a eternidade como a tens tu, para nós ela é apenas uma promessa. Mas somos tão imperfeitos que não acreditamos nas promessas, temos pressa de sabermos dela, mas, quanto mais pressa nós temos, mais próximos do fim caminhamos. Se tu que és perfeito tens pressa em abraçar a imperfeição, que posso fazer se não esperar pela eternidade de Deus?
Caminhamos por várias horas. Por fim o meu corpo cansou-se. Encostei-me a uma árvore e dormi. Não sei quanto tempo, quantas horas, só sei que dormi. Dormi no Éden, como um errante cuco, a invadir ninhos que não são seus. Acordei com alguém a me sacudir os ombros. Era Adão. Trazia no rosto um ar pesado. Olhei
para ele e já não vi o seu sexo. Estava escondido, fazendo dele não um símbolo de beleza, mas um símbolo de desejo. Agora que não via o seu sexo, em mim um desejo louco ardia, queria vê-lo. Então me apercebi que ele já não era perfeito, já era como eu. Trazia o pecado no sexo, ladeado pela serpente, não pela pureza.
-O que aconteceu? - Perguntei-lhe.
-Temos que partir, fomos expulsos do jardim. A minha sede de conhecimento levou-me a ter pressa. Comi do fruto da árvore da vida. Agora fui amaldiçoado. Traí toda a obra do Criador. A sua obra era perfeita, mas eu a fiz imperfeita. Tornei-me apenas uma peça no jogo de Deus e de Satanás. Tenho pena de deixar o jardim, mas não posso aqui ficar. O meu sangue já traz a morte como herança. Manchei o meu sangue, está contaminado pela mortalidade dos sonhos. Perdi a eternidade para mim e para os meus descendentes. Nada deixarei de mais marcante aos meus herdeiros do que a morte. Eu fui perfeito porque fui gerado do pó, não do ventre que traz os genes da morte. Vou-me embora, para longe do jardim.
-E agora?
-Agora? Terás que esperar outro homem perfeito. A lei é sangue por sangue. Enquanto não for derramado o sangue do homem perfeito, teremos que expiar o pecado através de oferendas do sangue dos animais. Mas o sangue de um animal não é perfeito. Não basta, acalma a ira de Deus, mas não basta na lógica exata da sua lei, do seu senso de justiça. Agora somos apenas dignos da sua piedade, portanto quem é digno de piedade contenta-se com as sobras que lhe são oferecidas. Agora teremos que nos contentar com as sobras de Deus, somos apenas pobres mortais a não adorá-lo, mas a clamar pela sua misericórdia. Deus foi feito para ser amado, porque é amor, não para ser incomodado com lamúrias de alguém digno de piedade. O que fiz da curiosidade de obter sabedoria? Já não me achas belo, pois não?
-Ainda és o mais belo de todos. Mas já não és o que eu vi há pouco. Não, mudaste, tornaste-te mais um, causas-me desejo, não admiração. És como eu, agora és como eu.Assim partimos, ele seguiu uma direção e eu outra. Não sei onde foi dar o seu caminho, mas já sabia do resultado. Caminhei um pouco e fui sentar em um banco do jardim que já era o Trianon. Pessoas passavam por mim, com perfumes suaves, um cheiro atraente, o sexo escondido entre roupas que contornavam a promessa do corpo. Sim, por mim passavam os filhos de Adão. Tão obcecados pela perfeição dos corpos, pela pressa do conhecimento das verdades, pelo desajuste do desejo. Mas os que estavam escritos na eternidade de Deus, só Ele sabia. Nós, tal qual Adão, desfilávamos nossos corpos sem a grandiosidade de Deus.
Conto:
Jeocaz Lee- MeddiFotografias:
Paulo César (1 -
One of the Angels, 2 -
Orion e as Saudades, 3 -
Alma por Inteiro, 5 -
Life Can Be Strange);
Guilherme Santos (4 -
Os Homens Morrem no Chão),
Nuno Manuel Baptista (6 -
S/T) e
DDiArte (7 -
Laocoonte)