Quarta-feira, 20 de Agosto de 2008

CONSTRUÇÃO - ÁLBUM DE UM GRITO SUSSURRADO

 


 
Chico Buarque é um dos maiores compositores da música popular brasileira. De uma obra extensa e fundamental, é quase que impossível resumi-la. Desde o lançamento do seu primeiro álbum em 1966, que a MPB foi presenteada com uma das carreiras mais ímpares, densas e brilhantes da sua história.
Tendo como mestre Noel Rosa, o início da obra de Chico Buarque reflete os sambas tradicionais, repletos de um lirismo nostálgico. Um estilo que seria muito criticado pelos tropicalistas na fase de rupturas estéticas do movimento. Esta primeira fase acontece nos três primeiros álbuns de carreira: Chico Buarque de Hollanda (1966), Chico Buarque de Hollanda Vol. 2 e Chico Buarque de Hollanda Vol. 3. Uma fase amena, mas que nos deixa clássicos definitivos como “A Rita”, “Pedro Pedreiro”, “Morena dos Olhos D’Água”, “Roda Viva”, “Carolina”, “Quem te Viu, Quem te Vê” e “A Banda”.
Com o endurecimento do regime militar após a promulgação do AI-5 em dezembro de 1968, Chico Buarque exilado-se em Roma com a mulher, a atriz Marieta Severo, em 1969. Um exílio que duraria pouco mais de um ano e meio, mas que refletiria para sempre na sua obra e nos caminhos que ela iria traçar a partir de então. Na Itália grava para a Philips o seu quarto disco Chico Buarque de Hollanda No. 4, álbum de transição, onde já se observa uma nova fase da sua carreira, mais madura e com traços do que seria futuramente.
Mas é em Construção, álbum de 1971 que vamos encontrar um Chico Buarque mais maduro e já com as características de compositor que o acompanharia por toda a carreira. É justamente o álbum Construção que aqui será falado.
Construção é o álbum pós-exílio na Itália. Nessa fase em Roma, também lá estava o compositor e cantor Toquinho. A presença dos dois não passou despercebida pelos italianos, que os receberam com ótima receptividade. Quando Chico Buarque retornou ao Brasil, foi aconselhado por Vinícius de Moraes a voltar sob os holofotes, em meio a uma grande recepção com bastante aparato na sua chegada, convocando imprensa, amigos, promovendo um show na boate Sucata, para o lançamento do seu quarto disco, tudo isto para evitar que o cantor e compositor fosse preso pela ditadura militar tão logo desembarcasse no aeroporto.
Construção reflete uma fase de intensa parceria entre Chico Buarque e Vinícius de Moraes. O Poetinha aparece no álbum em quatro composições em parceria com Chico Buarque, Toquinho e Tom Jobim: “Desalento” (Chico Buarque – Vinícius de Moraes), “Olha Maria” (Tom Jobim – Vinícius de Moraes - Chico Buarque), “Valsinha” (Vinícius de Moraes – Chico Buarque) e “Samba de Orly” (Vinícius de Moraes – Toquinho – Chico Buarque). Nestas quatro canções a influência poética e lírica de Vinícius é latente.

 

Samba de Orly” era a música do exílio, de quando uns voltavam e outros ainda ficavam. Aqui a referência do título ao Aeroporto de Orly, aeroporto a catorze quilômetros ao sul de Paris.

 

 

 
Samba de Orly
(Vinícius de Moraes – Toquinho – Chico Buarque)

Vai meu irmão
Pega esse avião
Você tem razão
De correr assim
Desse frio
Mas beija
O meu Rio de Janeiro
Antes que um aventureiro
Lance mão
Pede perdão
Pela duração (Pela omissão)*
Dessa temporada (Um tanto forçada)*
Mas não diga nada
Que me viu chorando
E pros da pesada
Diz que eu vou levando
Vê como é que anda
Aquela vida à toa
E se puder me manda
Uma notícia boa

 


*Os dois versos originais foram vetados pela censura.

Valsinha” é de um lirismo-romântico na combinação de dois poetas de estilos tão distintos, deixando-nos esta obra-prima sublime da MPB. A canção é de um lirismo não nostálgico, mas de um convite ao amor sublime do momento, a surpreender os amantes em seus atos espontâneos de amor.

Valsinha
(Vinícius de Moraes – Chico Buarque)

Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a dum jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto convidou-a pra rodar
Então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar
E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda a cidade enfim se iluminou
E foram tantos beijos loucos
Tantos gritos roucos como não se ouvia mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu
Em paz

Olha Maria” é de um arroubo doce e melancólico, quase sussurrada. Nota-se não só um Vinícius de Moraes, mas o maestro soberano a conduzir o sussurro, como é todo o grito de Chico Buarque nesta época de censura.

 

Olha Maria
(Tom Jobim – Vinícius de Moraes - Chico Buarque)

Olha, Maria
Eu bem te queria
Fazer uma presa
Da minha poesia
Mas hoje, Maria

Pra minha surpresa
Pra minha tristeza
Precisas partir
Parte, Maria
Que estás tão bonita
Que estás tão aflita
Pra me abandonar
Sinto, Maria
Que estás de visita
Teu corpo se agita
Querendo dançar
Parte, Maria
Que estás toda nua
Que a lua te chama
Que estás tão mulher
Arde, Maria
Na chama da lua
Maria cigana
Maria maré
Parte cantando
Maria fugindo
Contra a ventania
Brincando, dormindo
Num colo de serra
Num campo vazio
Num leito de rio
Nos braços do mar
Vai, alegria
Que a vida, Maria
Não passa de um dia
Não vou te prender
Corre, Maria
Que a vida não espera
É uma primavera
Não podes perder
Anda, Maria
Pois eu só teria
A minha agonia
Pra te oferecer

Desalento” é aquela canção que traz o famoso lirismo nostálgico que tanto fez parte da obra de Chico Buarque, e que felizmente Chico não deixou de fazer quando criticado, aqui suavizado, mas pouco influenciado pela bossa nova de Vinícius de Moraes. É um regresso ao samba-canção no mais doce estilo Ismael Silva – Noel Rosa.
 

Desalento
(Chico Buarque – Vinícius de Moraes)

Sim, vai e diz
Diz assim
Que eu chorei
Que eu morri
De arrependimento
Que o meu desalento
Já não tem mais fim
Vai e diz
Diz assim
Como sou
Infeliz
No meu descaminho
Diz que estou sozinho
E sem saber de mim
Diz que eu estive por pouco
Diz a ela que estou louco
Pra perdoar
Que seja lá como for
Por amor
Por favor
É pra ela voltar
Sim, vai e diz
Diz assim
Que eu rodei
Que eu bebi
Que eu caí
Que eu não sei
Que eu só sei
Que cansei, enfim
Dos meus desencontros
Corre e diz a ela
Que eu entrego os pontos

 


Deixando a poesia de Vinícius, vamos encontrar um Chico Buarque na mais perfeita rima da contestação de sua obra: “Deus lhe Pague” e “Construção”. Chico já vinha da composição de protesto “Apesar de Você”, de 1970, lançada em um compacto que venderia 100 mil cópias e em seguida censurada e retirada do mercado. “Apesar de Você” tornar-se-á o hino contra a repressão durante a ditadura militar.
Deus lhe Pague” abre o álbum. Rasante, desconcertante, pungente, a música mostra a verve dilacerada da alma humana em sua mais tocante essência. A participação do MPB-4 na faixa dá um toque menos claustrofóbico à canção.

Deus lhe Pague
(Chico Buarque)

Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer, e a concessão pra sorrir

Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague
Pelo prazer de chorar e pelo "estamos aí"
Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir
Um crime pra comentar e um samba pra distrair
Deus lhe pague
Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui
O amor malfeito depressa, fazer a barba e partir
Pelo domingo que é lindo, novela, missa e gibi
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair
Deus lhe pague
Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir
Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir
E pelo grito demente que nos ajuda a fugir
Deus lhe pague
Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague

Construção” é de um brilhantismo no jogo de palavras e na estruturação e composição dos versos, de uma vertente social crua, embebedada pelo jogo das palavras, a refletir uma época em que o Brasil verticalizava as suas metrópoles, os arranha-céus subiam e geravam os mártires que os construíam, pois não havia uma legislação trabalhista que protegesse os trabalhadores da construção civil contra acidentes de trabalho. Muitos foram os operários que sucumbiram nas grandes construções do Brasil megalômano dos militares (mortos nas construções da Ponte Rio Niterói, da Transamazônica e tantas outras). Chico mostra em “Construção” essa triste realidade de desproteção social do cidadão trabalhador brasileiro.

 
Construção
(Chico Buarque)

Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado

 


 
E a temática social sai das construções e do trabalho e volta para o lar em “Cotidiano”. Aqui o homem em luta com o seu marasmo entre o trabalho e o casamento, entre a vontade de contestar e a realidade de ter que se calar, seguir a vida banal, monótona, cotidiana... A canção seria até tema de abertura de novela (Como Salvar Meu Casamento – Rede Tupi – 1979).

 
 
 


Cotidiano
(Chico Buarque)

Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã
Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar
E essas coisas que diz toda mulher
Diz que está me esperando pro jantar
E me beija com a boca de café
Todo dia eu só penso em poder parar
Meio dia eu só penso em dizer não
Depois penso na vida pra levar
E me calo com a boca de feijão
Seis da tarde como era de se esperar
Ela pega e me espera no portão
Diz que está muito louca pra beijar
E me beija com a boca de paixão
Toda noite ela diz pra eu não me afastar
Meia-noite ela jura eterno amor
E me aperta pra eu quase sufocar
E me morde com a boca de pavor
Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã


Ainda há tempo para um grito sufocado em “Cordão”, um reflexo dos temores aos tentáculos da ditadura e os resquícios de ter que se exilar. Aqui novamente o grito quase que contido de uma época que a repressão se fazia presente na arte, na cultura e na vida do brasileiro.

 

Cordão
(Chico Buarque)

Ninguém
Ninguém vai me segurar
Ninguém há de me fechar
As portas do coração
Ninguém
Ninguém vai me sujeitar
A trancar no peito a minha paixão
Eu não
Eu não vou desesperar
Eu não vou renunciar
Fugir
Ninguém
Ninguém vai me acorrentar
Enquanto eu puder cantar
Enquanto eu puder sorrir
Ninguém
Ninguém vai me ver sofrer
Ninguém vai me surpreender
Na noite da solidão
Pois quem
Tiver nada pra perder
Vai formar comigo o imenso cordão
E então
Quero ver o vendaval
Quero ver o carnaval
Sair
Ninguém
Ninguém vai me acorrentar
Enquanto eu puder cantar
Enquanto eu puder sorrir
Enquanto eu puder cantar
Alguém vai ter que me ouvir
Enquanto eu puder cantar
Enquanto eu puder seguir
Enquanto eu puder cantar
Enquanto eu puder sorrir


Para fechar a sua fase italiana de exílio, Chico traz daquele país a marginal-lírica Gesùbambino (Dalla – Palottino), canção da qual ele faz uma belíssima versão rebatizada de “Minha História”. A história do marginal dos cabarés, dos bares, da vida, que se chama ironicamente Menino Jesus. A contestação segue solta. E a música é anexada à nossa MPB como tantas outras versões de sucesso, como se nos pertencesse. Esta música teve problemas com a censura, principalmente da igreja, que a achava ofensiva.
 


Minha História (Gesùbambino)
(Dalla – Palottino – Versão Chico Buarque)

Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar
Eu só sei que falava e cheirava e gostava de mar
Sei que tinha tatuagem no braço e dourado no dente
E minha mãe se entregou a esse homem perdidamente
Ele assim como veio partiu não se sabe pra onde
E deixou minha mãe com o olhar cada dia mais longe
Esperando, parada, pregada na pedra do porto
Com seu único velho vestido cada dia mais curto
Quando enfim eu nasci minha mãe embrulhou-me num manto
Me vestiu como se eu fosse assim uma espécie de santo
Mas por não se lembrar de acalantos, a pobre mulher
Me ninava cantando cantigas de cabaré
Minha mãe não tardou a alertar toda a vizinhança
A mostrar que ali estava bem mais que uma simples criança
E não sei bem se por ironia ou se por amor
Resolveu me chamar com o nome do Nosso Senhor
Minha história é esse nome que ainda hoje carrego comigo
Quando vou bar em bar, viro a mesa, berro, bebo e brigo
Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz
Me conhecem só pelo meu nome de Menino Jesus


O álbum poderia ter sido encerrado aqui, mas há espaço para encerrá-lo com os versos de ninar de “Acalanto”. Chico tinha se tornado pai recentemente, sua filha Silvia Buarque nascera durante o exílio na Itália. É natural que às sombras da perseguição reflitam nesta pequena canção.
 


Acalanto
(Chico Buarque)

Dorme minha pequena
Não vale a pena despertar
Eu vou sair
Por aí afora
Atrás da aurora
Mais serena


Construção é lançado em um dos períodos mais negro da ditadura militar, o governo do general Emílio Garrastazu Médici. Quase um grito contido e dilacerado de um tempo que parecia cada vez mais distante a volta da democracia. Um tempo que gente era torturada e desaparecia nos porões obscuros do regime militar. Um grito de coragem em canções que transitavam entre o protesto social, a angústia existencialista e o lirismo romântico. Trazia um Chico Buarque mais maduro e definitivo, numa época dura e transitória.




Ficha Técnica:

Construção – 1971

Direção de Produção: Roberto Menescal
Direção de Estúdio: Roberto Menescal
Técnicos de gravação: Toninho e Mazola
Estúdio: Phonogram
Direção Musical: Magro
Participação especial: Tom Jobim, Paulinho Jobim e MPB4
Foto: Carlos Leonam
Capa: Aldo Luz

publicado por virtualia às 21:35
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