Depois de excursionar pela música intrínseca de Dorival Caymmi no incomparável “
Gal Canta Caymmi” (1976), Gal Costa dá, definitivamente, adeus ao título de cantora de vanguarda e musa do desbunde, ao lançar “
Água Viva” (1978), confirmando as rupturas anunciadas em “
Cantar” (1974) e adiadas em “
Caras e Bocas” (1977), transformando-se em uma intérprete genuína de todas as fases da MPB, desvinculando-se do estigma de musa do Tropicalismo, sem perder as suas raízes.
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Água Viva" foi produzido por Perinho de Albuquerque, contando com a participação de grandes músicos como Wagner Tiso, Toninho Horta e Sivuca. A capa do álbum traz Gal Costa imersa na água, como se renascesse através dela, limpando o seu canto, transformando-o em cristalino e definitivo. São belas e originais fotografias de Marisa Álvares Lima.
No ano de 1978 a abertura política do regime militar, começava a ser efetuada, ainda que de forma tímida, mas definitiva. O Ato Institucional Nº 5 (AI-5) foi finalmente extinto, passando a não mais vigorar no primeiro dia de 1979. Esta mudança refletiu na música, que teve várias canções outrora censuradas e proibidas, finalmente liberadas. 1978 trazia também, novidades nas vendagens e preferências do público brasileiro pela MPB. Até então, só Roberto Carlos alcançava e ultrapassava a 500 mil cópias vendidas. Maria Bethânia com “
Álibi” (1978), alcançava esta marca. “
Água Viva” acompanhou a tendência de mudanças, alcançado um grande público, sendo disco de ouro, fato alcançado pela primeira vez na carreira de Gal Costa.
Do Repertório de Dalva de Oliveira a Chico BuarqueQuem viu Gal Costa em 1977, no show “
Com a Boca no Mundo”, um flower power tardio, não imaginava que aconteceria no ano seguinte uma mudança tão substancial e indelével na sua carreira e imagem. As mudanças acontecem na primeira faixa do álbum, “
Olhos Verdes” (Vicente Paiva), um antigo samba-exaltação sucesso de Dalva de Oliveira, que lhe renderia um clipe no pograma “
Fantástico”, da TV Globo. Até então Maria Bethânia era a única que tinha aprovação da crítica para visitar o repertório da intocável Dalva de Oliveira. A música cai com perfeição à voz de Gal Costa e volta às paradas de sucesso. Nos florões da canção, a baiana faz uma homenagem à Dalva de Oliveira, ressuscitando a essência da cantora, lembrando-nos dos seus agudos inesquecíveis e fulminantes. Com esta canção, Gal Costa traz de volta a fase do samba-exaltação, assim como as velhas marchinhas carnavalescas, que foram essenciais para a formação da nossa MPB. Transforma-se na herdeira de Dalva de Oliveira, título até então pertencente à Ângela Maria.
Gal Costa excursiona pela primeira vez no universo de alguns grandes compositores, entre eles Chico Buarque. Sua estréia em disco no peculiar mundo feminino buarqueano é feita magistralmente com “
Folhetim” (Chico Buarque), música tema de uma prostituta da peça “
A Ópera do Malandro”. Gal Costa, então com 33 anos, estava no auge da sua sensualidade, rompendo de vez com a imagem agressiva do tropicalismo, trazendo um canto límpido. “
Folhetim” encontra na interpretação da cantora toda a voluptuosidade necessária àquela que se entrega apenas por um bombom Sonho de Valsa. A canção jamais se desvinculou de Gal Costa, apesar de ter sido interpretada por vários ícones femininos da MPB.
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De Onde Vem o Baião” (Gilberto Gil), dá os toques alegre e nordestino, típicos de Gilberto Gil, que mistura um baião intelectualizado com as velhas tradições populares de um mundo às vezes perdido, mas jamais esquecido. A canção parece complementar “
Olhos Verdes”, com os seus versos:
“De onde vem a esperança
Assustança espalhando
O verde dos teus olhos
Pela plantação?”
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O Bem do Mar” (Dorival Caymmi), canção que foi esquecida no álbum autoral de 1976, mas
aqui soberbamente lembrada naquele que é um dos sucessos de Caymmi mais gravado por cantores brasileiros. O mar sempre combinou com a poesia de Caymmi, que rima perfeitamente com a voz de Gal Costa. A cantora empresta o lirismo necessário à música, como uma sereia que revela a angústia de quem enfrenta o mar e os seus perigos.
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Mãe” (Caetano Veloso), revela uma interpretação muito particular de Gal Costa para aquela que é considerada pelo autor a música mais brega que ele já fez, mas que emocionou muita gente que discorda de Caetano Veloso. É destas canções únicas na obra do autor, difícil de ser interpretada sem cair no grotesco e vulgar, que revela uma emotividade técnica e compreensão única de Gal Costa a cerca da obra e da mensagem de Caetano Veloso. “
Mãe”, independente do que o seu autor a classificou, transformou-se na voz de Gal Costa em um dos momentos mais sublimes da Música Popular Brasileira.
A urbana existencialista “
Vida de Artista” (Sueli Costa – Abel Silva) encerrava o lado A do álbum. É uma rara incursão da cantora aos autores, até então constantes das discografias de Maria Bethânia e Simone. A canção encontra um equilíbrio intimista cristalino na voz de Gal Costa, que infelizmente, jamais repetiu o momento na delicada obra de Sueli Costa. O lado A do LP cerrava as cortinas com esta canção delicada, intimista e diferente, fazendo com que o ouvinte ansiasse para virar o disco e recomeçar a ouvir o espetáculo.
Um Disco Profundo e AlegreSe o lado A mostrou grandes renovações no repertório da cantora baiana, o lado B não decepcionou, trazendo na primeira faixa, “
Paula e Bebeto” (Caetano Veloso – Milton Nascimento), outra novidade na interpretação de Gal Costa, Milton Nascimento. A canção trazia a irreverência de Caetano Veloso e a musicalidade juvenil de Milton Nascimento, revelada na alegria contagiante de Gal Costa. Adolescente, urbana, leve e profunda nas impulsividades das paixões, “
Paula e Bebeto” foi transformada pela juventude da época em um hino ao amor livre e sem preconceitos.
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Pois É” (Chico Buarque – Tom Jobim), outro presente do álbum, afirma a nova fase da cantora, distanciada das interpretações dos autores de vanguarda, emprestando o seu canto aos mais genuínos representantes da MPB da sua geração. Novamente percorre o universo de Chico Buarque, desta vez dividido com o maestro soberano, Tom Jobim. Se “
Folhetim” expõe a mulher no mais complexo da sua sexualidade e caprichos do seu perfil sensual, “
Pois É” traz o amor intimista, no momento da ruptura, da explosão aguda da dor. A canção deixa uma sensação de quero mais, que se acabou antes da hora (ela só dura 1:46m), de que os dois compositores encontraram uma grande e definitiva intérprete.
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Água Viva” assume uma profundidade musical, sem perder em momento algum a alegria. Alegre e provocante também é “
Qual é, Baiana?” (Caetano Veloso – Moacyr Albuquerque), momento juvenil que percorre os lugares pitorescos e da moda dos verões da Salvador dos anos setenta. Se no início daquela década Gal Costa desfilava pelas dunas cariocas que levaram o seu nome, aqui ela volta às raízes, derramando a sua sedução pelas praias baianas. A canção faria parte da trilha sonora da novela “
Como Salvar Meu Casamento” (1979), da Rede Tupi.
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Cadê” (Milton Nascimento – Ruy Guerra), parece ser a desconstrução contemporânea e romântica dos épicos contos de fadas, mas traz nas entrelinhas verdades que se queria apagar. A canção fazia parte do disco “
Milagre dos Peixes” (1973), de Milton Nascimento, a letra tinha sido proibida pela censura militar, entrando no álbum apenas a parte instrumental. Quando os versos da canção questionavam: “
E o país maravilhoso de Alice? / Cadê, quem levou?”, procurava-se por um Brasil livre, perdido na opressão da ditadura. A liberação da canção era conseqüência da abertura política incipiente em 1978. Gal Costa não deixou de registrar esta fase de protesto que a MPB começava a recuperar.
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O Gosto do Amor” (Gonzaga Jr.), adentra-se na brasilidade nordestina sugerida na faixa “
De Onde Vem o Baião”, remetendo-nos aos alegres e tradicionais bailes do interior. Dueto surpreendente, sensual e divertido de Gal Costa e Gonzaguinha, que nos atira a um convidativo forró. Gonzaguinha começava a ser um autor disputado pelas cantoras. Com o dueto, Gal Costa insere-o em sua discografia, visitando-o outras vezes. Maliciosa e provocativa, “
O Gosto do Amor” encerrava o álbum assim como começara, com canções alegres e de uma brasilidade espontânea.
Mas será com uma canção de Caetano Veloso, presença obrigatória na obra de Gal Costa, que se irá encerrar este artigo, “
A Mulher” (Caetano Veloso), segunda faixa do lado B, pequena canção
que o mestre define muito bem o que significaria este álbum no momento apoteótico que Gal Costa iria viver na sua carreira:
“Lá vai ela
Lá vai a mulher subindo
A ponta do pé tocando ainda o chão
Já na imensidão
É lindo
Ela em plena mulher
Brilhando no poço de tempo que abriu-se
Ao rés de seu ser de mulher
Que se abriu
Sem ter que morrer
Todo homem viu”
Foi a partir de “
Água Viva” que Gal Costa começou a escalada para o posto de cantora de grande público, passando a ser respeitada por todos como grande intérprete da MPB, longe da imagem de vanguarda e do tropicalismo. “
Água Viva” deu origem ao show “
Gal Tropical”, que mudaria de vez o rumo da carreira da cantora, transformando-a definitivamente em diva e estrela da MPB, que no início dos anos oitenta a levaria ao título de maior cantora do Brasil.
Ficha Técnica:Água Viva Philips
1978
Direção de produção: Perinho Albuquerque
Assistente de produção: Lenia Grillo
Arranjos: Perinho Albuquerque e Wagner Tiso
Técnicos de gravação: Ary Carvalhaes e Paulinho Chocolate
Mixagem: Luigi Hoffer
Montagem: Barroso
Auxiliares de estúdio: Julinho e Vítor
Criação de layout: Aldo Luiz
Arte final: Arthur Fróes
Fotos: Marisa Álvares Lima
Maquiagem: Guilherme Pereira
Músicos participantes:
Piano: Tomás Improta, Wagner Tiso e Antônio Perna Fróes
Guitarra: Perinho Albuquerque, Perinho Santana e Toninho Horta
Baixo Elétrico: Jamil Joanes, Luizão Maia e Moacyr Albuquerque
Bateria: Enéas Costa e Paulinho Braga
Percussão: Bira da Silva, Luna, Marçal, Doutor, Geraldo, Ney Martins e Charles
Saxofone Alto: Jorginho da Flauta
Acordeom: Sivuca
Harpa: Wanda Eichbauer
Sintetizadores: Marcos Resende
Faixas:1 Olhos verdes (Vicente Paiva), 2 Folhetim (Chico Buarque), 3 De onde vem o baião (Gilberto Gil), 4 O bem do mar (Dorival Caymmi), 5 Mãe (Caetano Veloso), 6 Vida de artista (Sueli Costa – Abel Silva), 7 Paula e Bebeto (Caetano Veloso – Milton Nascimento), 8 A mulher (Caetano Veloso), 9 Pois é (Tom Jobim – Chico Buarque), 10 Qual é, baiana? (Caetano Veloso – Moacyr Albuquerque), 11 Cadê (Milton Nascimento – Ruy Guerra), 12 O gosto do amor (Gonzaga Jr.) Participação: Luiz Gonzaga Júnior