
O apoio da igreja católica aos militares em 1964, foi decisivo para a concretização do golpe de estado que levaria o país a uma ditadura de vinte anos. Se a Guerra Fria obrigou pessoas e entidades a escolher um lado, com a igreja católica, presumivelmente neutra, não foi diferente, ficou do lado das designações de Washington. A ambigüidade da igreja na época da Segunda Guerra Mundial, que foi acusada de apoiar e até a abençoar os exércitos nazistas, valeu-lhe a expulsão de todo o leste europeu com a chegada dos comunistas soviéticos, que libertaram os povos empobrecidos pela guerra do domínio nazista e na leva, do domínio secular da igreja. Temendo que o mesmo sucedesse na América Latina, a igreja católica combateu a ameaça comunista, incitando os seus fiéis a temê-los e repudia-los. Nas missas era comum padres acusar os comunistas de hereges e ateus inimigos da fé.
Ludibriados pelo sentimento anticomunista e pelo falso golpe que a esquerda preparava, segundo os golpistas de 1964, a igreja católica recebeu os militares de braços abertos, dom Paulo Evaristo Arns chegou a ir ao encontro das tropas do general Olimpio Mourão Filho, deflagrador do golpe, quando elas marchavam de Juiz de Fora rumo ao Rio de Janeiro. Em 31 de março, dom Paulo encontrou-se com as tropas golpistas em Pedro do Rio, Três Rios, oferecendo aos mineiros assistência religiosa. O encontro deixou o clérigo tranqüilo, com a simpatia de que não entraria no poder nem a anarquia, nem o comunismo.
Este apoio da igreja aos golpistas começou a enfraquecer tão logo perceberam o engodo que o país fora vítima, e a ditadura militar começou a mostrar o caráter repressivo e autoritário do regime. Dentro da igreja católica começou um movimento de repúdio à repressão, o envolvimento do clero com militantes resistentes ao regime, e a própria proteção do clero aos perseguidos e torturados. O próprio dom Paulo Evaristo Arns tornou-se um símbolo da defesa dos direitos humanos no Brasil, denunciando as torturas do regime. Também dom Hélder Câmara (foto) e dom Pedro Casaldáliga fizeram voz ativa contra a repressão. Diante da nova posição da igreja católica, a ditadura militar prendeu, torturou e matou padres. O banho de sangue estendeu-se aos clérigos. A Teologia da Libertação, que deu os primeiros passos em 1952, tornar-se-ia uma grande força no Brasil a partir de 1970. O apoio inicial da igreja ao golpe de 1964 deu a sua grande reviravolta quando a violência do regime matou e torturou quem lhe contestasse, desde então, a igreja católica no Brasil pendeu quase toda contra a ditadura militar.
A Igreja Católica e o Golpe Militar de 1964

Diante da Guerra Fria, o comunismo representava para a igreja católica uma forte ameaça diante da sua doutrina considerada alienante pelos engajados. A visão de que comunismo e ateísmo eram indissolúveis passou a fazer parte do imaginário popular brasileiro, incitado pelos padres em seus sermões dominicais. Alguns anos antes do golpe militar, subiu ao poder nos EUA John Kennedy, primeiro presidente católico daquele país. Esta condição religiosa de Kennedy fortaleceu a boa imagem deste lado da Guerra Fria diante da América Latina. Em 1961 os países católicos ricos criaram e financiaram o plano Caritas (caridade, em latim), que tinham como objetivo distribuir pela América Latina alimentos, esmolas e medicamentos. Implantado em quase todas as dioceses do Brasil, o Caritas também servia como doutrinador dos pobres que ajudava, incitando o repúdio total contra os perigos do “comunismo ateu”.
Nos fins de 1963, sob as bênçãos do presidente Kennedy, chegava ao Brasil o padre Patrick Peyton, um irlandês naturalizado estadunidense, conhecido como o padre das “estrelas”, por gostar de aparecer ao lado das celebridades de Hollywood. Padre Peyton foi preparado pela Agência Central de Inteligência (CIA) do serviço secreto norte-americano, promovendo no Brasil a Cruzada pelo Rosário em Família. A pregação de Patrick Peyton em seus concorridos encontros, atingiu em cheio milhares de famílias brasileiras. Essa pregação consistia em alertar aos brasileiros quanto aos perigos de um governo que não fosse como os dos EUA, e contra a ameaça comunista à família e à religião. No início de 1964 uma missa celebrada por padre Peyton foi o primeiro programa de televisão em rede a cobrir todo o país, tendo o suporte técnico feito em Washington.

Nos meandros do golpe, agentes religiosos colaboraram decisivamente com os golpistas. Deflagrado o golpe, a igreja católica aplaudiu. Para garantir que os militares não sofressem reveses da esquerda, muitos clérigos atuaram como delatores. Participações contundentes de ativistas anticomunistas e da igreja estão registradas nas atuações de Antônio de Castro Mayer, bispo de Campos, e de Geraldo de Proença Sigaud, arcebispo de Diamantina.
Na marcha que recebeu os militares golpistas no Rio de Janeiro, em 2 de abril de 1964, mulheres representantes da tradicional família brasileira, seguindo o lema de Patrick Peyton (na foto com um quadro de Maria com o menino Jesus), “família que reza unida, permanece unida”, estenderam os seus rosários, assinalando com este gesto o papel que exercera a igreja católica na consolidação do novo regime ditatorial que se instalava no Brasil.
Núcleos Conservadores e Progressistas da Igreja

Nos primeiros anos do regime militar, dois núcleos da igreja mostraram claramente as suas posições: os católicos conservadores e os católicos progressistas. Para os conservadores, o regime militar evitaria o “comunismo ateu”. Além dos comunistas, esse núcleo reacionário incluiu como inimigos o espiritismo, a maçonaria, a umbanda, o protestantismo e todas as idéias estabelecidas no Concílio do Vaticano II, por João XXIII. Muitos foram os clérigos delatores que surgiram com o núcleo.
O núcleo dos católicos progressistas começou a ser perseguidos pelo regime militar, o que desencadeou da parte deles um engajamento que os fez combater veementemente a ditadura. Destacaram-se como árduos defensores da liberdade e opositores à violência militar, dom Hélder Pessoa Câmara, em Pernambuco; dom Paulo Evaristo Arns, em São Paulo; e dom Pedro Casaldáliga, na região rural do Araguaia.
Torturado, Castrado e Assassinado

Em março de 1968 o estudante de 17 anos, Edson Luís de Lima e Souto, foi morto pelos militares no restaurante “Calabouço”, no centro do Rio de Janeiro, desencadeando revolta e protestos por todo o país. Padre Antônio Henrique celebrou uma missa em memória do estudante assassinado, tornando-se desde então, alvo da ira dos militares. No dia 26 de maio de 1969 o CCC (Comando de Caça aos Comunistas) seqüestrou, torturou e matou o padre. O corpo foi deixado em um matagal da cidade universitária do Recife. Padre Antônio Henrique estava pendurado pelos pés em um galho de árvore; trazia marcas brutais de tortura, como queimaduras de cigarro, castração da genitália, marcas de espancamento, cortes profundos em todas as partes do corpo e dois ferimentos de bala que indicavam a execução final.
Dom Hélder Câmara repudiou a violência da ditadura militar. Após divulgar um manifesto de apoio à ação católica operária no Recife, ficou proibido pelo regime de falar em público no Brasil. Silenciado no país, dom Hélder passou a aceitar convites para participar de conferências no exterior. Para que as palavras do religioso, ditas fora do país, aqui não chegassem, o governo proibiu qualquer menção de apoio da imprensa a ele. Durante anos, apesar de atuação intensa contra a ditadura, o nome de Hélder Câmara jamais foi mencionado pela mídia. Mesmo acusado pelos militares de demagogo e comunista, o religioso ficou conhecido como Peregrino da Paz e Irmão dos Pobres.
Diante da morte do padre Antônio Henrique, as relações da igreja católica com a ditadura militar deterioraram-se de vez, fazendo com que a primeira atuasse de forma decisiva contra o regime, combatendo-o veementemente até o fim.
A Ira da Ditadura Contra os Dominicanos

Carlos Alberto Libânio Christo (Frei Betto), Fernando de Brito, Ivo Lesbaupin, Ratton, Magno e Tito de Alencar Lima, eram dominicanos que colaboravam com diversas organizações políticas clandestinas que combatiam a ditadura militar. O apoio dos dominicanos incluía proteger perseguidos políticos de cair nas garras de torturadores quando presos, escondendo-os em lugares seguros, transportando-os para outras cidades ou mesmo para outro país.
Para proteger os perseguidos do regime, os dominicanos envolveram-se em perigosas operações. Frei Betto (foto) foi um dos que mais correu risco. Trabalhou como chefe de reportagem do

Frei Fernando de Brito trabalhava na Livraria Duas Cidades, em São Paulo. O dominicano estava sob a vigilância da repressão desde 1 de abril de 1964, quando o jornal que editava “Brasil Urgente” saiu pela última vez com a manchete “O golpe está nas ruas”. Em 2 de novembro de 1969, Frei Fernando foi para o Rio de Janeiro para tratar de uma publicação com o secretário da Editora Vozes. Ao seu lado embarcou Frei Ivo, carioca que aproveitava a viagem para visitar a família. Poucas horas no Rio de Janeiro e os dominicanos foram presos pela repressão, sendo levados para o temível Centro de Informações da Marinha (Cenimar). Isolados, os religiosos foram torturados. Frei Fernando foi despido e pendurado no famoso pau-de-arara, sofrendo choques por todo o corpo, culminando com um fio elétrico sendo-lhe introduzido na uretra. O objetivo da tortura era descobrir o paradeiro de Marighella, considerado o inimigo número um do governo. Após horas de tortura, Fernando terminou por revelar a senha que possibilitava um encontro com Marighella. Feita a revelação, Fernando foi levado ao encontro de Frei Ivo, reconhecendo-o apenas pelas roupas, pois o amigo trazia o rosto deformado pela tortura. Levado para o Dops de São Paulo, Fernando descobriu que lhe fora poupado o rosto para que ele voltasse a trabalhar na Livraria Duas Cidades no dia 4 de novembro, e assim, atraísse Marighella para uma cilada. No fim da tarde Fernando recebeu um telefonema que dizia:
“Ernesto pediu que vocês o encontrem na gráfica hoje às 20 horas.”

Outro envolvido com Marighela era Frei Tito, preso em São Paulo naquele fatídico novembro de 1969, e entregue ao temido delegado Sérgio Fleury. Na prisão sofreu todos os tipos de tortura, recebeu cutiladas, choques, foi sentado nu em uma cadeira de metal eletrificada e, com o chão molhado, a intensidade dos choques aumentava. Tito sofreu ainda, todas as ofensas religiosas, massacre sexual, queimaduras de cigarro, tapas simultâneos com as duas mãos nos ouvidos, pau-de-arara e pauladas. Condenado a quatro anos de prisão, Tito foi um dos 70 presos políticos trocados pelo embaixador suíço Bücher, seqüestrado por guerrilheiros em 1971. Deportado para o Chile, seguiu para a Europa. Mesmo depois de exilado em Paris, a receber total apoio dos dominicanos, Frei Tito jamais se recuperou emocionalmente, enforcar-se-ia aos 29 anos, em 10 de agosto de 1974, totalmente enlouquecido pelos traumas das torturas que sofrera.
Na fotografia acima, momento histórico do julgamento dos dominicanos, todos condenados a quatro anos de prisão. Da esquerda para a direita, Frei Fernando, Frei Betto, Frei Ivo e Frei Tito.
Prisões, Torturas, Humilhações e Mortes Dentro da Igreja

Mas os embates entre a igreja católica e os ditadores começou bem antes. Um grande incidente acontecera em 1967, quando a repressão invadira a casa de dom Valdir Calheiros, bispo de Volta Redonda, seguida da prisão de um diácono francês e de seminaristas. Diante da truculência, Costa e Silva enviou o senador Daniel Krieger ao cardeal Avelar Brandão, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em missão de paz. Já no final de 1968 a relação entre a igreja e o regime militar estava combalida. No dia 1 de outubro daquele ano, o cardeal de São Paulo, Agnelo Rossi, em solidariedade aos sacerdotes presos, recusou a medalha da Ordem Nacional do Mérito, oferecida por Costa e Silva, causando constrangimento ao então presidente.
Ainda em novembro de 1969, outra truculência contra religiosos aconteceria com a prisão da freira Maurina Borges da Silveira, em Ribeirão Preto. Diretora do orfanato Lar Santana, a freira cedia uma sala para que se efetuasse a realização de reuniões de estudantes. A freira não sabia que eles pertenciam à clandestina Frente Armada de Libertação Nacional (FALN). Presa, foi vítima de tortura com espancamentos, choques e violência sexual. Houve comentários que a freira teria ficado grávida do torturador, o delegado Fleury. A freira desmentiu os boatos.
Outro grande opositor do regime militar foi o catalão dom Pedro Casaldáliga, que atuou energicamente a favor dos camponeses, dos índios e sem-terras do Araguaia. Corajosamente denunciou o autoritarismo da ditadura, sofrendo com isto perseguições e ameaças de morte. O governo chegou a pressionar o Vaticano para que retirasse Casaldáliga do Araguaia, mas o então papa João Paulo II não permitiu que a pressão vingasse. Em outubro de 1976, Casaldáliga e o jesuíta João Bosco Penido Burnier, missionário entre os posseiros de São Félix do Araguaia, Mato Grosso, foram ao povoado de Ribeirão Bonito participar da celebração da novena de Nossa Senhora Aparecida, celebrando a cerimônia principal. Ficaram sabendo que duas mulheres estavam a ser torturadas na delegacia local. Os dois tentaram interceder pelas mulheres, mas foram recebidos por policiais no pátio da delegacia;

Outro que sofreu perseguição dos militares foi o bispo de Nova Iguaçu, dom Adriano Hipólito, tido como um grande defensor dos perseguidos políticos de toda a Baixada Fluminense. Amigo dos oprimidos e amado pelo povo, começou a incomodar a ditadura, tanto que, em 22 de setembro de 1976, foi seqüestrado por militares, que o espancou, pintando-lhe o corpo de vermelho, finalmente foi deixando nu no meio da noite, em um local ermo. Teve o carro explodido por uma bomba quando se encontrava à porta da CNBB, no Rio de Janeiro. Uma outra bomba foi detonada na catedral de Nova Iguaçu, destruindo o altar. Mas nada intimidou dom Adriano. Fez alianças com vários partidos de esquerda, denunciaria grupos de extermínios na Baixada Fluminense. Só parou com a luta em defesa do povo em 10 de agosto de 1996, quando morreu, já vivendo ao vento da democracia.
Dom Paulo Evaristo Arns: “Brasil Nunca Mais”
Durante a ditadura, dom Paulo Evaristo Arns tornou-se o maior defensor dos direitos humanos

Em 1975 foi morto sob tortura, o jornalista Vladimir Herzog. A ditadura ainda tentou simular um suicídio, divulgando um falso laudo sobre a morte do jornalista. A resposta da sociedade brasileira foi um culto ecumênico realizado na Catedral da Sé, em São Paulo, celebrado por dom Paulo Evaristo Arns, pelo rabino Henry Sobel e pelo reverendo Jaime Wright. As religiões uniam-se, pela primeira vez, contra as atrocidades da ditadura militar.
Dom Paulo Evaristo Arns é um dos autores do dossiê que documenta prisões, torturas e desaparecimentos no país: “Brasil, Nunca Mais”.
Se a tortura era veemente negada pelo regime militar, com a morte de Vladimir Herzog tornou-se impossível escondê-la. Uma vez revelada e provada a sua existência, era mais difícil sumir com os presos. Através das pastorais, a igreja passou a desenvolver trabalhos com os presos e a apoiar as suas famílias; organizava visitas freqüentes aos presos políticos, como forma de alerta aos torturadores, como se dissesse: “sabemos que essa pessoa existe e que está presa, cuide para que ela não desapareça”. Dom Paulo Evaristo Arns foi enérgico com esta postura, incentivando a mesma ação de proteção aos direitos humanos por todas as igrejas do Brasil. Assim a igreja católica, forte aliada dos golpistas de 1964, passou a repudiar a violência, a tortura e o próprio regime militar. Sua oposição à ditadura foi decisiva para a sua queda e, para a proteção de várias vidas dentro dos calabouços. Lutar contra a repressão, foi uma forma da igreja católica redimir-se diante deste período negro da história do Brasil.