
Cronologicamente, a obra de Lídia Jorge faz parte da literatura portuguesa mais recente. Começa exatamente nos últimos vinte anos do século XX. O seu primeiro livro “O Dia dos Prodígios”, foi publicado em 1980. Também a sua obra mais conhecida, “A Costa dos Murmúrios”, data de 1988. Nos anos oitenta a história portuguesa, sofreria as alterações que se explodiram pelo mundo. Apesar da década começar com a ameaça de um novo conflito entre as potências, devido às disputas da já tão desgastada guerra fria, onde a invasão do Afeganistão por tropas soviéticas fez o mundo tremer, será nos anos oitenta que uma das duas ideologias que dividem o mundo irá ruir. Com a morte de Brejnev em 1982, o império da União Soviética será totalmente reformulado. Em 1985 o líder soviético Mikhail Gorbachev viabiliza um programa de reformas econômicas e políticas que conduz ao fim do comunismo soviético. Com a queda do Muro de Berlim em 1989, a Revolução Bolchevique de 1917 no leste europeu é definitivamente enterrada. A Alemanha é reunificada em 1990. Em 1991 a União Soviética sofre um colapso econômico-político e desaparece como país, deixando à deriva e independentes de Moscou as ex-repúblicas da antiga potência. O mapa da Europa é refeito. A Iugoslávia é desmantelada e em 1992, assistimos uma das mais violentas guerras feitas no continente, a Guerra da Bósnia.
Em Portugal, depois de anos de instabilidade política (nenhum governo teve maioria na Assembléia desde o 25 de Abril de 1974), eis que na década de 1980 surge um governo estável e de maioria, liderado por Aníbal Cavaco Silva. Este período conhecido por “cavaquismo”, iria durar dez anos (1985-1995). Também nos anos oitenta os militares deixam de vez o governo, o “eanismo” é encerrado com o fim político do ex-presidente, o General Ramalho Eanes. Mário Soares assume durante o cavaquismo a presidência da República, tornando-se naqueles dez anos, o maior estadista português da época democrática. A estabilidade de governo é possibilitada pela entrada definitiva de Portugal na União Européia, concretizada no dia 1 de Janeiro de 1986. Uma vez incluído definitivamente na Europa, é preciso rever os valores culturais e históricos. É preciso ter consciência de que o idioma português é falado por mais de duzentos milhões de pessoas em todo o mundo. Pela primeira vez os países de língua portuguesa sentam-se na mesma mesa e tentam chegar a um acordo ortográfico para preservar a hegemonia lingüística. A segunda metade dos anos oitenta é toda voltada para uma adaptação à economia comunitária, e uma europarização crescente. Surgem os anos do consumismo de massas, dos grandes empreendimentos imobiliários, afinal o panorama arquitetônico português ainda tinha o seu auge na época da monarquia, com algumas realizações pouco artísticas nas construções do Estado Novo. A paisagem urbanística é recuperada, sem grandes danificações do patrimônio histórico. Nas periferias das cidades surge o império dos grandes centros comerciais, dos hipermercados, cada vez mais inseridos no quotidiano português. A bolsa de valores, apesar do grande susto de 1987, é uma nova fonte de investimento. As privatizações são cada vez mais comuns. As grandes obras urbanas da segunda metade dos anos noventa são efetuadas em grandes construções aparecem: Ponte Vasco da Gama, expansões metropolitanas em Lisboa, criação do metropolitano do Porto e, principalmente a Expo’98, a grande obra iniciada na época do cavaquismo e a grande realização do Portugal pós União Européia.
É nesse período que nos surge a obra de Lídia Jorge, profundamente marcada por esses anos, apesar de totalmente alheia aos fatos históricos, mas presa aos resultados sociais dos mesmos. Portanto não conseguimos imaginar as personagens dos contos que aqui analisaremos, a transitarem em outros tempos, os mesmos contos a serem escritos em outra época, pois se tornam frutos irremediáveis dos dias atuais e só o tempo irá poder provar-nos a intemporalidade histórica da autora sem que, no século XXI, quando sentirmos necessidade de reler Lídia Jorge, não nos depararmos com a sensação de encontrarmos uma literatura datada.
É a partir dos sete contos reunidos em “Marido e Outros Contos” (1ª edição - Publicações Dom Quixote - 1997), que traçaremos um breve perfil da contista. São contos escritos ao longo de quase uma década: “António” (1988), “Marido” (1989), “A Instrumentalina” (1992), “Testemunha” (1993), “A Prova dos Pássaros” (1993), “O Conto do Nadador” (1994) e “Espuma da Tarde” (1996).
Duas Crônicas Metamorfoseadas de Conto

“«Mal?» - António suspendeu a tesoura como se surpreso ou ofendido. Quem melhor do que ele tem o sonho da absoluta beleza colocado sobre o crânio das mulheres? Quem melhor do que ele entende como os filhos da carne são escolhidos antes da nascença para serem filhos dos deuses ou seus desconhecidos? Ele é um mediador, a joalheira ofende-o. Mas António só diz - «Madame, a mulher portuguesa é encolhida, e a européia, ousada! A portuguesa não sabe usar a cabeça! Deixe-me modelá-la.» E a pouco e pouco, o crânio da joalheira começou a aparecer sob a tesoira. «Com um brinquinho longo, Madame, a sua cabeça e um brinquinho longo, Madame.» A joalheira entendeu. «É para eu não voltar mais, é ou não é, António?» Antínoo nunca foi um verdadeiro cínico, e num momento de franqueza disse - «Sim, é, Madame.» (...)”
Este conto não poderia representar melhor a idéia mediática da época, em que a Europa e Portugal eram dois mundos à parte, tão distanciados desde a forma de pensar à de vestir ou mesmo cortar o cabelo. O conto é fútil, a linguagem, apesar de literariamente bem elaborada, não consegue trazer personagens sólidas, apenas esboços humanos, quase caricatos. Apesar de uma certa estética, longe estão da estética perfeita de Sophia de Mello Breyner Andresen, e do carisma - apesar de maniqueístas - das personagens de “Contos Perfeitos”.
O conto que dá título à coletânea, “Marido”, veio publicado na revista Vértice, em abril de 1989. Aqui vamos encontrar a Lúcia, infeliz porteira de um prédio, que sofre com a bebedeira do marido, quando este volta para casa de madrugada, totalmente embriagado, fazendo dela o ridículo de todo o prédio. Acende velas para a “Regina”, e reza fervorosamente em latim (onde teria uma porteira aprendido latim? Na infância no interior?). Os vizinhos ouvem os gritos e os maus tratos do marido, tentam oferecer solidariedade à infeliz porteira, onde não faltam advogados e médicos como inquilinos, para prestarem os seus serviços a ela. Mas a porteira, que é extremamente católica e fiel ao casamento, vê nas intenções dos vizinhos uma blasfêmia. Só ela conhece o marido, sabe que no fundo, sem a bebida, é um homem bom, um excelente esposo. Assim, contra tudo e contra todos, iludida, ela acaba por ser queimada pelo marido, que ao pôr

“Ela vira-se, sai da cama, esfrega-se na parede, o fogo primeiro não alastra, depois de repente alastra, cola, passa ao cabelo, ela remove-se no chão, na carpete da sala, junto da porta, ainda abre a porta, mater, vita, ó doçura, ventris tui nobis post hoc exilium, ostende! Ó clemens, ó pia, advocata, em silêncio, dulcis Virgo Maria! A porta está aberta para toda a chama. A chama da porteira sai pela escada de serviço abaixo, correndo sem ruído até ao oitavo andar, ao sétimo, ao sexto. Só no quinto a chama da porteira pára. Crepita. É a porta do advogado do quinto. Sem barulho, fica à porta do advogado, das testemunhas e da lei. A Regina assim quer que fique. Regina acocarada sobre ela, no quinto, de asas abertas sobre o quinto, e o marido no décimo. Ainda terá a vela? Abre as asas advocata, levanta voo, leva a porteira, condu-la na maca, ergue-lhe a vista, Regina, separa-a definitivamente da cama, do balde e do fogão. (...)”
Adorável Momento das Lembranças
Trinta anos depois, reencontram-se, como se o tempo quebrasse um momento que ficara preso algures, talvez além da lembrança, além dos sentimentos. A transparência da personagem, juntamente com o seu mundo tão próprio, regido por ser importante para o tio, ter como recompensa um passeio na sua bicicleta, fazer das pequenas coisas do dia a beleza simples de uma vida. O conto consegue fazer com que o leitor seja transportado para aquela quinta e sinta-se, como a personagem, quase triste pela ameaça constante do findar daquele mundo, sempre pronto para mudar, deixando apenas a poesia como perfume:
“Nunca se sabe o que uma viagem pode trazer ao íntimo do coração. Como se o tempo de repente dum outro modo fluísse, ou mesmo a qualidade da sua hora mudasse, e uma coisa perdida aparecesse, uma dúvida se quebra, um amor acaba, e outro que nunca se tinha imaginado, de repente, nasce. Objectos que sempre tivemos por separados atam as pontas, imagens que bóiam nas nossas vidas sem ligação juntam-se e criam uma nova sequência com sentido. Outras vezes a clarividência da distância torna-se tão luminosa que se vê o fim do fim, e deseja-se regressar, ainda que não seja a lugar nenhum. (...) “
Entre a Superficialidade da Crônica Social e a Beleza do Conto

“(...) Zuzete mostrava agora a cozinha, depois o fogão, o balcão lisíssimo onde era possível pentear a cabeça no seu espelho de brilho. E o parapeito, vem ver. O Parapeito. Era o rebordo da largura duma palmada onde batia o vidro, simplesmente. Mas nele se enfileiravam quatro vasos vermelhos e de terra, donde saíam umas begónias de folha esparramada a caminho da luz distante. Olhando para baixo, no fundo, perdia-se de vista quem entrava e saía, como se estivéssemos no pináculo dum sonho cinzento. Mas estou aqui e estou a pensar nas minhas tias, tão sós, no lameiro, a bater as anáguas. Devem estar muito curvadinhas. Estão estão, têm o queixo apontado para a terra, e quando põem a trouxa da roupa no planalto das costas, o bordão onde se apoiam fica com a tremura dos canaviais. Agora Zuzete mostrava, incrustada na cozinha, a máquina que lavava a loiça.”
“A Prova dos Pássaros” foge da crônica social e acaba por ser um hilariante conto, onde um professor paranóico procura contar todos os pássaros que voam nos céus de uma praia. A convicção de que, se não conseguisse contar o número de pássaros, era porque Deus não existia, mas se o conseguisse, era a prova da existência do Mesmo. A praia está sempre cheia de pessoas, o que torna impossível à contagem. Há uma hora que a praia fica deserta, mas é justamente nesta hora que uma jovem mãe passeia o filho num carrinho de bebês. Aqui o duelo do homem e da rapariga para que ela não viesse naquela hora é brilhante, o conto também:
“O Professor viu com desgosto a rapariga aproximar-se empurrando aquele terrível carrinho. Na verdade, alguém da família do bebé - um homem por certo - havia aplicado uma espécie de traga-areia à frente das rodas, o que permitia que ela o fizesse deslizar com extrema facilidade mesmo nos locais ondulados.”
Todas às vezes que Lídia Jorge foge à crônica de costumes, é mais brilhante. A prova é da narrativa de “O Conto do Nadador”, em que nos deparamos com cinco belas raparigas dos anos cinqüenta, que todos os dias se vão banhar em um local deserto, onde são observadas por um homem atlético. A partir daí todas elas têm pensamentos e desejos eróticos com o homem. Armam seduções com gestos, gritos, roupas de banho, quase despidas... Sonham com o corpo do homem, com os seus braços, a sua boca. Tudo correria bem se uma delas não se afogasse, quase morrendo. É salva pelo homem, que simplesmente acha a todas levianas. Humilhadas, voltam para o hotel e contam a história de uma forma totalmente diferente da realidade. Também aqui encontramos um momento de beleza e de literatura bem conseguida de Lídia Jorge. Ao contrário de “Espuma da Tarde”, onde a

Ao analisarmos em um todo esta antologia de contos de Lídia Jorge, encontramos diferenças abismais entre eles. Em alguns momentos a desilusão é total, o distanciamento das personagens com a veia literária é quase predominante. Mas ao encontrarmos contos como “A Instrumentalina” e “O Conto do Nadador”, somos invadidos pela forte certeza de que estamos diante de uma grande contista e de uma escritora ímpar. Portanto a sua obra é um reflexo dos dias atuais, onde tudo passa como uma vitrine de modas, até mesmo a forma da autora retratar a sua obra.
Lídia Jorge
Lídia Jorge exerceu a profissão de professora nas então colônias portuguesas da África, em 1970. Sua passagem por Angola e Moçambique coincidiu com os últimos anos da guerra colonial, que culminaram com a independência dos países africanos em relação a Portugal. A visão deste período acompanhou a sua obra, inspirando alguns dos seus personagens.
Com uma obra publicada nos últimos do século XX, seu primeiro romance “O Dia dos Prodígios”, publicado em 1980 por indicação de Vergílio Ferreira, traduz um novo período que se vivia na literatura contemporânea portuguesa. O romance “A Costa do Murmúrio”, de 1988, um reflexo do período colonial vivido na África, consagrou-a de vez como uma das escritoras mais aclamadas e lidas de Portugal.
O romance “O Vale da Paixão”, de 1998 deu a Lídia Jorge o Prêmio Dom Dinis da Fundação Casa de Mateus, o Prêmio Bordallo de Literatura da Casa da Imprensa, o Prêmio de Ficção do Pen Clube e, em 2000, o Prêmio Jean Monet de Literatura Européia de escritor do ano.
Lídia Jorge tem a sua obra traduzida em vários idiomas e reconhecida em muitos países. Seu último romance foi publicado em 2007, “Combateremos a Sombra”.
OBRAS:
Romance
1980 – O Dia dos Prodígios

1982 – O Cais das Merendas
1984 – Notícia da Cidade Silvestre
1988 – A Costa dos Murmúrios
1992 – A Última Dona
1995 – O Jardim sem Limites
1998 – O Vale da Paixão
2002 – O Vento Assobiando nas Gruas
2007 – Combateremos a Sombra
Contos
1992 – A Instrumentalista
1992 – O Conto do Nadador
1997 – Marido e Outros Contos
2004 – O Belo Adormecido
2008 – Praça de Londres
Infanto-Juvenil
2007 – O Grande Vôo do Pardal
Teatro
1997 - A Maçon