A necessidade do homem em explicar os mistérios da vida e da natureza que o cerca, gera, através dos séculos, as mais belas lendas. Quanto mais rica a cultura de um povo, maior o número de lendas inspiradoras que justificam os seus costumes e tradições milenares.
O folclore dos índios brasileiros perdeu, com a civilização cristã impostas a eles, muitos dos seus rituais e muitas das suas crenças, as suas lendas estão cada vez mais difundidas e mescladas com as lendas catequizadoras trazidas pelos homens brancos.
Aqui mais três lendas indígenas, duas delas (“
Como Nasceram as Estrelas” e “
A Criação do Homem”) vindas das terras do Mato Grosso, e uma terceira originada das tribos da região do mítico rio Amazonas (“
A Vitória Régia”).
Como Nasceram as Estrelas é uma lenda extraída da tribo de índios do Mato Grosso conhecidos como Bororos. Forma poética e simples que a tribo encontrou para descrever o surgimento das estrelas no céu, tidas como vigilantes da dor e símbolos do castigo perene às crianças que desobedecem aos pais.
A Vitória Régia traz a lenda de uma das plantas mais exóticas do mundo. De uma beleza rara, esta planta tem as raízes submersas no rio, e quando adulta, surge no seu centro uma das mais belas flores da natureza. Nativa da região do Amazonas, a vitória-régia desperta com a sua beleza ímpar, o mais curioso dos homens. Tão singular planta, assim como as flores da mitologia grega, nasceu, como conta a lenda, da transformação de uma bela mulher, da metamorfose dos seus sonhos, que se deslumbram em cores e fantasias.
A Criação do Homem está ligada com o mito do herói Maivotsinim, figura criadora aclamada por várias tribos do Alto Xingu. Se na lenda dos índios Carajás, habitantes do norte de Goiás e do Tocantins, o índio já surge criado, habitando a escuridão do ventre da terra, de onde emerge e através da figura do urubu-rei vê a criação do mundo, aqui o mundo está criado, mas faltam os homens. Só Maivotsinim existe, e cabe a ele criar a humanidade. Esculpido numa madeira chamada cuarupe, o homem surge no seu esplendor, aos raios do sol. A lenda deu origem ao ritual do Alto Xingu, o
Cuarupe, praticado até os dias de hoje.
Como Nasceram as EstrelasA vida na tribo dos índios Bororo seguia os passos e os ensinamentos dos seus antepassados. No céu da aldeia a noite era escura, iluminada apenas pela imensa lua, que crescia ou diminuía de tamanho, conforme o ciclo dos dias. Quando a lua se escondia, um terrível breu fazia-se sobre as malocas.
Durante o dia os homens bororos iam caçar, enquanto que as mulheres cultivavam e coziam o milho e as crianças brincavam. Num dia normal na tribo, em que os homens embrenharam-se na mata para cassar, as mulheres foram colher o milho para preparar o alimento d e todos. Quando chegaram na roça de milho, com tristeza encontraram pouquíssimas espigas. Não percebiam o que tinha acontecido. Colheram desoladas, umas míseras espigas.
Horas antes das mulheres chegarem à roça de milho, as crianças, fugidas das mães, tinham colhido as espigas. Vestidas da malícia infantil de quem cometia uma desobediência, ali mesmo, na roça, elas socaram o milho, levando os grãos para a aldeia. Na maloca encontraram a mulher mais velha da tribo. Um dos meninos pediu à velha índia que preparasse um bolo para ele e para os amigos. A boa mulher, sem saber que as crianças colheram o milho sem a ordem das mães, com muito sacrifício fez o bolo que eles pediram. Já sem forças pela idade, a velhinha sentiu-se deveras cansada depois de todo o trabalho que tivera para fazer o bolo, retirando-se para a oca, repousando o corpo cansado sobre uma rede.
Os meninos deliciaram-se com o bolo. De repente o papagaio da aldeia, que tudo vira, ameaçou contar a verdade para as mães dos meninos, quando elas retornassem. Maldosamente os curumins cortaram a língua do papagaio, para que silenciasse o que eles fizeram.
Os pequenos bororos sentiam-se refestelados depois de comerem tanto bolo de milho. Mas ainda não estavam satisfeitos em desafiar o mundo. Olharam para as nuvens e a imensidão do céu, decidindo que para lá iriam subir. Embrenharam-se na mata e capturaram um beija-flor. Amarraram no bico da pequena ave a ponta de um cipó, ordenando-lhe que voasse para o mais alto infinito, e lá no céu, prendesse a ponta do cipó. O pequeno pássaro obedeceu às crianças, voando cada vez mais alto. Enquanto o beija-flor rumava para o céu, os pequenos bororos emendaram várias cordas ao cipó, agarrando-se a elas. Assim, levados pelo beija-flor, foram subindo, subindo... até o infinito do céu.
Quando as mulheres voltaram da roça, trazendo os grãos de milho que socaram das poucas espigas que encontraram, estranharam o silêncio dos filhos. Perguntaram por eles à velhinha, mas não tiveram resposta, posto que a pobre mulher dormia pesado de tão cansada que estava. Perguntaram ao papagaio guardião da aldeia, mas com a língua cortada, a pobre ave silenciou o que vira.
Desesperadas, as mulheres puseram-se à caça dos filhos. Foram encontrar no meio da mata, um cipó suspenso na direção do céu. Não se lhe via a ponta. Concluíram que as crianças subiram para o céu. Aos prantos, começaram a gritar para que as crianças voltassem. Lá do alto, mesmo a ver o choro das mães, os meninos bororos decidiram não voltar, seguindo sempre o beija-flor, que se distanciava da terra cada vez mais. Partiram rindo-se do choro das mães.
Já no alto do céu, quando tentaram voltar, os meninos não conseguiram, foram castigados pela desobediência e pela ingratidão às mães, condenados a viver lá em cima, e todas as noites, a olhar para a terra, para ver se suas mães ainda deles se lembravam e continuavam a prantear por eles. Para ver as mães, os olhos dos desobedientes meninos bororos transformaram-se em estrelas, iluminando todas as noites do mundo, mesmo quando a lua retirava-se do céu.
A Vitória RégiaO rio Amazonas abrigava às suas margens várias tribos de índios. Das águas do grande rio uma das tribos tirava o peixe para o seu sustento. Vários igarapés delimitavam as ilhas que se formavam ao redor do rio, e neles as moças da aldeia cantavam as mais belas canções, e sonhavam os mais belos sonhos. Dentre os sonhos das cunhãs, o de tocar a lua e as estrelas era o mais persistente.
Na aldeia as mães contavam para as filhas que quem tocasse a lua ou uma estrela, teria o brilho delas sobre o corpo, transformando-se em uma. Assim as jovens cunhãs sonhavam em tocar a lua. Suspiravam quando ela mostrava-se majestosa no céu, em sua fase plena.
De todas as cunhãs, Neca-Neca era a mais bela, a mais sensível e a mais sonhadora. Seus longos cabelos negros exalavam um perfume doce e embriagante. Os homens da aldeia sonhavam em conquistar o seu coração. Mas Neca-Neca só pensava em alcançar a lua e tocá-la, aprisioná-la entre os dedos e embriagar-se na sua luz redentora. A jovem índia sonhava em ser uma estrela, e poder iluminar todos os mistérios do mundo, tendo a lua como amiga.
Várias foram as tentativas de Neca-Neca de tocar a lua. Subiu na mais alta árvore da selva, mas a lua continuava distante. Ao lado de outras amigas, caminhou na direção do mais alto dos morros. Exausta, chegou ao topo da montanha e viu a lua ainda mais distante. Desolada, voltou para a aldeia acometida da mais profunda tristeza. Deitou-se na rede e embalou a amargura de não poder tocar a lua. Um dia ainda seria uma estrela, ou mesmo a própria lua. Adormeceu triste, mas sem deixar de perseguir o seu sonho pertinente.
Numa noite de lua cheia, Neca-Neca pôs-se às margens do grande Amazonas. Ao mirar as águas misteriosas do rio, viu que lá estava a lua, silenciosa, imóvel. A cunhã sorriu vitoriosa. O seu sonho estava próximo. Perseguira a lua nos lugares mais altos da mata, agora ela estava ali, mansa e à mão, a banhar-se nas águas do grande rio, pronta para satisfazer-lhe o sonho. Neca-Neca finalmente tocaria a lua. Sem pensar duas vezes, atirou-se às águas em busca da lua. Quanto mais tentava tocar o astro prateado, mais se afundava e encontrava apenas a escuridão do mundo. Mergulhada no seu sonho, Neca-Neca foi tragada pelo rio Amazonas.
Do alto do céu, a lua assistiu ao embuste que embriagara o sonho da jovem índia. Apiedada da tragédia de Neca-Neca, a lua prateada transformou-a em uma flor. Mas não em uma flor comum, e sim na maior e mais bela de todos as flores do mundo, a vitória-régia.
No meio do rio Amazona, Neca-Neca, transformada na vitória-régia, exala o mais delicado de todos os perfumes, inebriando os homens e os animais que assistem às suas pétalas estiradas à flor da água, pronta para receber os raios da lua. Nas noites de lua cheia, as cunhãs aparecem no meio da flor, dando-lhe um brilho eterno. Nessas noites, o brilho da lua forma um véu prateado a cobrir todas as flores do lago, que são mulheres transformadas em estrelas das águas, sob o feitiço e a piedade da lua, iluminando as noites tropicais.
A Criação do HomemMaivotsinim corria livre pela mata. Caçava para comer, nadava, dormia, sonhava... Percorria
todas as terras do Alto Xingu. Tinha a floresta e os animais como amigos e companheiros. Mas Maivotsinim começou a entristecer, a sentir-se solitário no mundo. Assim como todos os animais tinham uma companheira, também ele sonhava com o dia em que teria a sua.
Um dia Maivotsinim conversou com a onça, contando-lhe a amargura de estar só. A onça ouviu-lhe o lamento, prometendo-lhe contar o segredo de como poderia ter muitas mulheres. A grande onça soprou nos ouvidos do herói o segredo da criação dos homens.
Feliz com a revelação, Maivotsinim pôs em prática o que lhe dissera a onça. Foi até a mata, cortou umas tantas toras do pau vermelho de caniná. Socou os paus no pilão, passando-lhes pimenta, a seguir, quando anoiteceu, ergueu uma fogueira ao redor deles. Nada aconteceu, e ele chorou muito ao não ver o resultado da sua obra.
Mas Maivotsinim não desistiu. Talvez tivesse errado na madeira. Embrenhou-se novamente na mata, cortando toras de uma madeira que se chamava cuarupe. Mais uma vez socou as toras no pilão, passando-lhe pimenta e fincando-as no meio da aldeia. Tão logo anoiteceu, acendeu uma fogueira ao pé de cada tora. Mas a madeira não se transformou em gente. Maivotsinim mais uma vez chorou. Tamanho foi o seu pranto, que adormeceu profundamente.
No meio da aldeia, as toras do cuarupe continuavam fincadas no chão. Quando o sol despontou os primeiros raios, atingindo cada tronco de árvore fincado por Maivotsinim, estes se transformaram, um a um, em gente. Á luz do sol, os índios despertaram e viveram, pulsando-lhes para sempre o milagre da vida.
Tão belos eram os índios, que os peixes saíram das águas para reverenciá-los. Os animais da mata fizeram o mesmo. Maivotsinim viu com alegria o nascimento dos índios. Assistiu à luta dos peixes e das onças a homenagear a sua criação, a qual chamou de huca-hucá.
Ainda hoje, no Alto do Xingu, as tribos celebram o cuarupe (a madeira que deu vida aos homens), lutando a huca-hucá, reverenciando a obra de Maivotsinim e a criação do homem.
Ilustrações:
José LanzellottiAdaptação livre de
Jeocaz Lee-Meddi para textos de
Brasil, Histórias, Costumes e Lendas