
A 5 de outubro de 1910 era proclamada a República em Portugal, pondo fim a uma das monarquias mais antigas da Europa. A jovem República herdara um país empobrecido, longe dos áureos tempos das grandes navegações. Além de uma economia precária, trazia nas costas o sangue derramado do penúltimo rei português, nódoa que jamais sairia do cenário histórico português.
No dia 1 de fevereiro de 1908, sucedeu-se na Baixa Lisboeta, entre o Terreiro do Paço e a Rua do Arsenal, uma das maiores tragédias da história da monarquia portuguesa, o assassínio do rei Dom Carlos e do príncipe Luis Filipe. Vítima da sua política déspota e ditatorial, o monarca suscitou o ódio popular, incitando sobre si, as revoltas e várias armas apontadas. Dom Carlos retornava de uma temporada no Alentejo, quando foi surpreendido por revoltosos militantes dos Dissidentes e dos Republicanos, cerca de oito (ou dezoito, conforme algumas versões) começaram a atirar sobre o landau que trazia a família real. Dom Carlos tombou sob os tiros da Winchester 351 de Manuel Buíça, e o filho, o infante Dom Luís Filipe, sob os tiros de Alfredo Costa. A rainha Dona Amélia, usando as flores que recebera de boas vindas a Lisboa, batia com elas no rosto dos atiradores, em vão, tentando defender a família. Minutos depois as flores caíam no chão, manchadas de sangue, assim como a monarquia, que dava os seus últimos suspiros. Nas ruas da cidade, o sangue real lavava todos os pecados do reinado de Dom Carlos, o regicídio abria as portas para a República, fechando de vez as da Monarquia.
O Mapa Cor-de-Rosa, Primeira Derrota do Reinado de Dom Carlos

O grande desgaste que atingiria para sempre a imagem do rei diante dos seus súditos, viera de uma questão com a Inglaterra, em 1890. O país possuía colônias no sul da África, entre os oceanos Atlântico e Índico, para uni-las, o governo português traçou o chamado Mapa Cor-de-Rosa, que consistia nos territórios de Angola, Moçambique, e o espaço entre eles, chamado de Chire. Portugal apresentou o mapa aos países aliados, tomando para si o direito aos territórios. A Inglaterra não gostou do mapa, que a obrigava a passar pelos territórios lusitanos para unir as suas colônias africanas de norte a sul. O império Britânico deu um ultimato a Portugal, que abandonasse imediatamente a região do Chire, caso contrário declarar-lhe-ia guerra. Sem saída, impossibilitado de enfrentar tão poderosa nação, Dom Carlos cedeu às pretensões inglesas, perdendo com isto, a popularidade, fazendo com que crescesse os simpatizantes dos republicanos, que, aproveitando-se da insatisfação popular, tentariam a implantação da República no Porto, em 31 de janeiro de 1891.
João Franco é Nomeado Presidente do Concelho

Marcada pela letargia do parlamento, a primavera de 1905 trouxe grandes tumultos e agitações que selariam de vez o futuro do rei e a sua integridade física. De 9 a 13 de abril, as guarnições dos cruzadores “D. Carlos” e “Vasco da Gama”, sob a inspiração de José Maria Alpoim, revoltaram-se, produzindo um movimento que tinha como meta pôr o infante Dom Luís Filipe no trono, no lugar do pai.
Não bastassem as guarnições revoltosas, a 4 de maio, o republicano Bernardino Machado promoveu uma manifestação que foi severamente dispersada pela polícia, deixando dezenas de feridos. No Campo Pequeno, o republicano Afonso Costa, na presença da rainha Dona Amélia, recebeu uma grande ovação. Incomodado pelas agitações cada vez mais contundentes, o presidente do Conselho, o regenerador Hintze Ribeiro, pediu ao rei que suspendesse indefinidamente a sessão legislativa, até que se estabelecesse a normalidade. Diante de uma proposta de se instaurar uma ditadura, Dom Carlos recusou a proposta do presidente do conselho. Em 19 de maio, nomearia para o cargo de Hintze Ribeiro, o exaltado João Franco Castelo-Branco.
Decreto Arbitrário e Ditatorial

Tentando fazer uma eleição menos viciada, João Franco viu, em 1906, a vitória de quatro republicanos ao parlamento: Antonio José de Almeida, João de Menezes, Afonso Costa e Alexandre Braga. O presidente do Conselho governou sofrendo o obstrucionismo nas Câmaras e, com profundas campanhas difamatórias da imprensa, gerando cada vez mais desafetos para o seu governo e para o rei.
Em 1907, bastante enfraquecido, João Franco viu-se ameaçado pelos Progressistas, que tramavam para substitui-lo. Para impedir a sua derrocada, Franco pôs somente aliados no governo.
Terminada a união com os Progressistas, sem alianças, restava a iminência de uma ditadura, que combatesse os “rotativos”. A 8 de maio de 1907, Dom Carlos assinou um decreto que dissolvia a Câmara dos Deputados, sem a prévia consulta do Conselho de Estado e sem que se marcassem eleições, conforme determinava a Constituição. Estava instaurada a ditadura absolutista de Dom Carlos e do seu aliado, João Franco.
Corrupção e Conspirações

Em novembro de 1907, o Dissidente Antonio Centeno, em discurso na Câmara dos Pares, mencionou que havia contas a liquidar entre a administração da Casa Real e o Estado, ao que Franco confirmava, espontaneamente, que Dom Carlos recebera adiantamentos ilícitos do Estado à Casa Real. Imediatamente foram espalhados boatos de que o rei roubava o Estado. Para deteriorar ainda mais a situação, o rei declarava arrogantemente ao jornal parisiense “Le Temps”, que era o responsável pela dissolução da Câmara, e que quando ele e Franco achassem conveniente, convocariam as eleições.
A questão dos “adiantamentos” não saiu mais da pauta da imprensa e das calorosas afrontas no Parlamento. Portugal era um país empobrecido, cada vez mais isolado nas questões políticas européias. Para uma população que se via cada dia mais carente financeiramente, defrontar-se com os boatos de uma Monarquia corrupta, fazia com que aumentasse a simpatia pelos republicanos e desprezassem o seu rei, que se tornara um absolutista, recorrendo a uma forma repressiva e ditatorial de governar. Se a verdade sobre a corrupção de Dom Carlos pode ser historicamente contestada e provada a sua inocência, a sua forma de ditador não o redimiu, pelo contrário, tornou-se historicamente inquestionável.
Se a popularidade do rei caía vertiginosamente, os movimentos conspiratórios contra o seu reinado ascendiam espetacularmente. No princípio de novembro de 1907, a conspiração dos republicanos e dos Dissidentes Progressistas estava pronta para travar a luta definitiva. Armaram-se com carabinas e revólveres, começaram a tramar uma revolução que culminasse com o fim da Monarquia e a proclamação da República. Na véspera da intentona republicana, marcada para o dia 28 de janeiro de 1908, os seus dirigentes, entre eles João Chagas, José Maria Alpoim, Afonso Costa, Antonio José de Almeida, o visconde da Ribeira Brava, João Pinto dos Santos e Egas Moniz, distribuíram carabinas winchester e revólveres aos grupos de aliados civis.
Mas a intentona foi descoberta antes que se concretizasse, levando os seus principais conspiradores à prisão. No meio da confusão, grupos de aliados civis continuaram armados, entre eles Manuel Buíça, que herdara uma Winchester 351, e Alfredo Costa, herdeiro de um revólver. Os dois dariam os tiros fatais que matariam o rei Dom Carlos e o seu filho Dom Luís Filipe.
O Regicídio
Para punir os conspiradores, Dom Carlos, a 31 de

Era costume da família real passar o mês de janeiro em Vila Viçosa, Alentejo. Quinze dias antes do retorno oficial, a rainha Dona Amélia quis voltar, mas o rei recusara. João Franco incentivou o rei a lá permanecer, sua volta antecipada poderia demonstrar fraqueza diante dos acontecimentos conturbados, segundo o presidente do Conselho, era preciso mostrar que tudo corria sem preocupações.
Assim, findo o mês de janeiro, a família real regressou para Lisboa. No caminho de volta, um descarrilamento do comboio, em Casa Branca, atrasaria algumas horas a chegada à capital.
No fim da tarde de 1 de fevereiro, a família real chegava à estação fluvial do Terreiro do Paço. O visconde de Asseca, estribeiro-mor, indagou ao rei se preferia fazer o trajeto até o Palácio das Necessidades de automóvel ou de carruagem aberta, fatalmente Dom Carlos escolheu a carruagem aberta, o landau. À espera do rei estavam o infante Dom Manuel, que retornara mais cedo do Alentejo, Dom Afonso, João Franco, as damas palatinas, os cortesãos e os fiéis, além de alguns políticos. Por volta das cinco horas da tarde, Dom Carlos subiu na carruagem aberta, ao seu lado, à frente, iam os dois infantes e Dona Amélia. Quando o landau atravessava o meio da passadeira no lado ocidental do Terreiro do Paço, um homem de gabão saiu da placa central, extraiu uma carabina da capa, ajoelhou-se e atirou. Era Manuel Buíça, o seu tiro atingiu o rei, partindo-lhe a coluna, matando-o instantaneamente. O landau foi cercado por dois outros homens, que abriram fogo atingindo a carruagem e as paredes do Ministério da Fazenda. Da arcada surgiu Alfredo Costa, que empunhando um revólver Browning FN, calibre 7.65, saltou para o estribo do landau, disparando dois tiros em Dom Carlos, a esta altura, já morto, o rei foi atingido no antebraço e na omoplata direita. O infante Dom Luís Filipe levantou-se, tentando sacar de um colt, calibre 38, que trazia consigo. Alfredo Costa atingiu o príncipe com uma bala no peito. Ferido, o príncipe respondeu com um tiro, atingindo Costa, que rolou para o chão. Manuel Buíça continuava a disparar sobre Dom Carlos, finalizando com um tiro letal na cabeça de Dom Luís Filipe. Dona Amélia desceu do landau, e com um ramo de rosas que recebera como presente de boas-vindas, fustigou o rosto de Alfredo Costa, forçando-o a parar de atirar na sua família.
Após alguns minutos fatídicos, a escolta do rei reagiu. Policiais e soldados convergiram contra Alfredo Costa e Manuel Buíça, este último ainda acertou em um soldado e no tenente Figueira. O tenente desferiu um sabre nas costas de Buíça. No fim da tragédia, jaziam o rei Dom Carlos, o príncipe Dom Luís Filipe, os regicidas Manuel Buíça e Alfredo Costa. A carruagem do rei refugiou-se na Rua do Arsenal. Ali, no empedrado da rua, os corpos reais foram estendidos, molhando o chão com uma grande poça de sangue. Diante dos cadáveres do marido e do filho, Dona Amélia vociferou para João Franco: “Veja a sua obra”.

Levada ao local, a rainha Dona Maria Pia, viúva do rei Dom Luís, mãe de Dom Carlos, disse a Dona Amélia: “Alors, on a tué mon fils.” A pobre mulher ainda não sabia da morte do neto. Desolada, Dona Amélia respondeu-lhe, revelando-lhe a morte do príncipe: “Et lê mien aussi.” A rainha-mãe resignou-se, sentando-se, sem dizer mais uma palavra, ou verter uma lágrima. À noite, dois landaus levaram os corpos para o Palácio das Necessidades. O crime trouxe o medo e o terror para todos os nobres do reino, receosos de serem os próximos.
Após a tragédia, que passou para a história como o regicídio, Dom Manuel, segundo na sucessão de Dom Carlos, tornou-se o último rei de Portugal. Seu reinado terminaria no dia 5 de outubro de 1910, com a proclamação da República. O último rei português não deixou descendência, sendo a linha sucessória passada para o ramo miguelista (descendentes de Dom Miguel, irmão de Dom Pedro IV de Portugal e I do Brasil). Quando Dom Carlos morreu, morria também qualquer vínculo com o futuro da sua descendência. Dom Manuel II preservou a prole do malogrado rei até a sua morte no exílio, em 1932. Dom Carlos, assim como o seu reinado, deixou a esterilidade do mundo como herança. Um século depois da sua morte, a República portuguesa, hoje parte de um regime de cunho democrático, ainda carrega nas costas um dos preços que teve que pagar para ser proclamada, o sangue derramado na Rua do Arsenal, o regicídio.