O Brasil é um país plural, com uma população formada por várias raças e etnias. País construído por colonizadores europeus, nativos indígenas e negros africanos em sua essência. Se o índio faz parte de uma minoria de brasileiros, negros e brancos quase que empatam em número populacional. Apesar da paridade numérica, os abismos sociais entre negros e brancos continuam a ser uma grande ferida na integridade racial do Brasil.
A presença dos negros nas telenovelas brasileiras, o maior veículo de comunicação de público do país, apesar de ter avançado nos últimos anos, ainda é tímida e muitas vezes feita de uma forma negativa e presa ao estereótipo. Apesar de ser um país de grandes atores negros, que desfilaram ou desfilam pelas décadas da dramaturgia brasileira, como Grande Otelo, Ruth de Souza, Lázaro Ramos, Milton Gonçalves, Isaura Bruno, Taís Araújo, Chica Xavier, Neuza Borges, Jacira Silva, Zezé Motta, Cléa Simões, Zózimo Bulbul, Lea Garcia e tantos outros; os negros vêm sendo ignorados há décadas pelas telenovelas. Desde a primeira levada ao ar em 1963, este veículo tornou-se o condutor que moldou comportamentos, opiniões, criando ou derrubando preconceitos. A linguagem da telenovela reprimiu por muitos anos a imagem da verdadeira face do Brasil, fazendo dele um país de falsa identidade branca, negando a sua história e cultura. A televisão foi, e ainda o é (apesar de hoje em dia sofrer mais críticas e render-se às evidências da pluralidade) a maior propagandista e difusora dos conceitos do branqueamento da população brasileira, iniciada ainda no Brasil colônia.
Se hoje uma telenovela de horário nobre da poderosa TV Globo insere em suas tramas o amor entre raças, e o público, já moldado para aceitar a verdadeira identidade do país, aceita as personagens, nem sempre foi assim. Já houve tempo em que a rejeição ao amor entre um casal de cor branca e negra atingiu a total intolerância. A presença do negro na ficção da teledramaturgia era visível apenas em pequenas tramas paralelas às principais. De Mamãe Dolores (Isaura Bruno) a Xica da Silva (Taís Araújo), do Rodney de Zózimo Bulbul em “Vidas em Conflito” (1969) ao Foguinho de Lázaro Ramos em “Cobras & Lagartos” (2006), o espaço do negro nas telenovelas vem sendo conquistado com perseverança à discriminação. Um longo e árduo caminho foi percorrido pela constelação de grandes talentos negros, até que se deslumbrasse como protagonistas de algumas telenovelas.
O Branqueamento Histórico da População Brasileira
A presença negra na formação do Brasil veio através dos grupos étnicos africanos capturados em

No século XX, já com o poder da mídia como fonte de propaganda de uma nação, a partir dos anos sessenta, a televisão tornou-se o principal

Se a telenovela dominou o Brasil com a sua linguagem, estes domínios atravessaram as fronteiras, atingindo outros países. O sucesso das exportações das telenovelas para o exterior fez com que se pensasse nela como um cartão postal, trazendo um conceito de imagem da geografia humana do Brasil idealizado por uma falsa identidade. Tanto que se discute em Portugal, na Itália, Espanha, China, e outros países para onde a telenovela brasileira foi exportada e tornou-se grande sucesso de consumo, se no Brasil afinal não há negros. Sim, esta pergunta foi feita nos outros países, porque na telenovela brasileira a presença do negro era quase decorativa, quase exótica, como se raro fosse no cotidiano desta imensa nação.
O Negro nas Primeiras Telenovelas Brasileiras
Ainda em 1964, estreou na TV Tupi, “O Direito de Nascer”, primeira telenovela de grande sucesso no Brasil. O folhetim era uma adaptação de Talma de Oliveira e Teixeira Filho ao texto original do cubano Félix Caignet. A história da negra Dolores (Isaura Bruno) comoveu o Brasil. Empregada de uma abastarda e poderosa família, que ao ver Maria Helena (Nathália Timberg), a filha do patrão, engravidar e ter que, por imposição do preconceito por ser mãe solteira, abandonar o filho, tomou para os seus cuidados esta criança, criando-a como filho. Mamãe Dolores e o seu filho adotivo Albertinho Limonta (Hamilton Fernandes) levaram o Brasil às lágrimas. Isaura Bruno tornou-se a primeira atriz negra a fazer grande sucesso diante do público. Com ela inicia-se a imagem benevolente da mãe preta gorda, de colo amplo para acolher os filhos, que se encaixaria em outras atrizes negras, como Cléa Simões, que seria a Mamãe Dolores da versão de 1978 da novela; Zeny Pereira e Jacira Sampaio, a eterna Tia Anastácia do seriado “Sítio do Picapau Amarelo”. Mas o grande sucesso de Isaura Bruno foi logo esquecido devido à inexistência de papéis à altura do seu talento e carisma, sempre interpretando pequenos papéis subalternos até a sua morte.
Um momento raro da história do negro na televisão brasileira nos incipientes anos sessenta

O ano de 1969 marcaria de formas diferentes, a história dos negros nas telenovelas. Três produções, duas na extinta TV Excelsior – “Vidas em Conflito” e “Os Estranhos” - e uma na TV Globo – “A Cabana do Pai Tomás” -, assinalam uma página bizarra na presença dos atores negros.
“Vidas em Conflito”, de Teixeira Filho, traz pela primeira vez à telenovela uma família de classe média negra. Zózimo Bulbul viveu o primeiro protagonista negro da televisão. A história seria válida não fosse construída sobre uma sinopse racista, Débora (Leila Diniz) apaixona-se por Walter (Paulo Goulart), homem que a sua mãe Cláudia (Nathália Timberg) ama, por vingança, ela começa a namorar o negro Rodney (Zózimo Bulbul). A idéia de vingança revela a agressão que era uma mulher branca namorar um negro, eliminando da trama o convite à reflexão contra o racismo, sem nunca deixar de evidenciá-lo.
“Os Estranhos”, de Ivani Ribeiro, aconteceu no momento histórico em que o homem pisava na lua, daí a imaginação da autora estar voltada para os extraterrestres. A novela era protagonizada por Regina Duarte, Rosamaria Murtinho, Cláudio Correa e Castro, seres que vinham do planeta Gama Y-12, e por Pelé. A presença inesperada do rei do futebol brasileiro, à época no auge da sua carreira , como protagonista de uma telenovela, não contribuiu em nada para a presença do ator negro no gênero. Na trama estava uma celebridade, não um ator. Pelé vivia Plínio Pompeu, escritor rico e dono de uma ilha, que se deparava com os extraterrestres. A personagem tinha pouco texto e em nenhum momento teve um envolvimento amoroso dentro da trama. Apesar de protagonista, tornou-se meramente decorativo. Caso o papel de Plínio tivesse sido entregue a um

“A Cabana do Pai Tomás”, escrita por Hedy Maia, Péricles Leal e Walter Negrão, é o caso mais bizarro e vergonhoso de racismo registrado em uma telenovela. Baseada no romance homônimo de Harriet Beecher Stowe, é a história do escravo Tomás, homem de bom coração, que passa por vários e cruéis senhores de engenhos durante a Guerra da Secessão nos Estados Unidos. Feita com esmero e dentro de um grande orçamento, a novela foi pensada para ser um grande sucesso épico, mas tornou-se um dos maiores fracassos e de um resultado grotesco. Para viver o protagonista negro Pai Tomás, a subsidiária norte-americana da Colgate-Palmolive no Brasil, que patrocinava as telenovelas da época, exigiu que o papel fosse vivido pelo ator branco Sérgio Cardoso. O absurdo obrigou Sérgio Cardoso a pintar o corpo com uma tinta negra, usar peruca e rolhas no nariz. A novela estreou sob os tumultos de aclamados protestos, um movimento liderado pelo jornalista e dramaturgo Plínio Marcos, em sua coluna diária no jornal “Última Hora”, achava que o personagem deveria ser interpretado pelo ator Milton Gonçalves. Tudo em vão. A novela foi um fiasco em seus 205 capítulos. Mesmo de cunho racista, “A Cabana do Pai Tomás” teve o maior elenco negro até então.
Subalternos e Escravos

Na industrialização das telenovelas, os negros tiveram que gritar e protestar por papéis mais importantes, mas nem sempre o grito ecoava diante do preconceito. Temáticas de racismo eram retratadas timidamente, como em “Verão Vermelho”, novela de Dias Gomes, estreada na TV Globo em 1970. Na trama Geralda (Lúcia Alves), jovem de cor branca, esconde a mãe negra Clementina (Ruth de Souza). Em 1971 Janete Clair cria a personagem de Otto von Muller (Jardel Filho), um dos protagonistas de “O Homem Que Deve Morrer”, um vilão racista que é salvo da morte ao receber em transplante o coração de um negro. Zeny Pereira interpreta Conceição, mãe do negro que doou o coração a Otto. Para que ele não se esqueça, ela anda com o coração inutilizado dentro de um vidro, lembrando-lhe

Na segunda metade da década de setenta a Globo começa a adaptar vários clássicos da literatura brasileira. “Gabriela” (1975), novela de Walter George Durst extraída das páginas de Jorge Amado, teve várias pretendentes ao papel, entre elas duas atrizes negras, Zezé Motta e Vera Manhãs, esta última na época casada com o ator Antonio Pitanga, mãe dos atores Rocco e Camila Pitanga. A emissora preferiu escurecer a pele de Sonia Braga, transformando-a na mulata Gabriela. Outras adaptações da literatura geraram as personagens dos escravos. Durante muito tempo o negro viveu o escravo das novelas das 18 horas da TV Globo. Entre as novelas estavam “A Moreninha” (1975), “Escrava Isaura” (1976), “Sinhazinha Flô” (1977) e “Memórias de Amor” (1979).

Rejeição do Público aos Amores Entre Raças

Janete Clair foi confrontada em um programa de rádio em 1980, do porquê de não ter atores negros em papéis que não fossem de subalternos em suas novelas, ou que tivessem uma maior importância. A autora respondeu que nunca havia parado para pensar no assunto, e prometeu criar melhores papéis para os negros. Realmente ela amplia um pouco esta participação em suas tramas, “Coração Alado” (1980) e “Sétimo Sentido” (1982) refletiram um pouco a promessa, com papéis mais destacados criados para Jacira Silva e Ruth de Souza.
Em 1984 Gilberto Braga decidiu ousar um pouco mais, abordando o preconceito racial em “Corpo a Corpo”, criando o amor inter-racial entre Cláudio (Marcos Paulo) e Sônia (Zezé Motta). O público rejeitou o romance. Marcos Paulo chegou a ser indagado se estava a precisar de dinheiro para aceitar a beijar uma negra. Também Zezé Motta foi hostilizada pelo preconceito do público. Curiosamente, os atores tinham vivido um romance na vida real anos antes.
“Sinhá Moça”, adaptação de Benedito Ruy Barbosa da obra homônima de Maria Dezonne Pacheco Fernandes, trazia um herói mascarado branco Rodolfo (Marcos Paulo na versão de 1986 e Danton Mello
“Roque Santeiro”, novela de Dias Gomes, censurada em 1975, foi finalmente ao ar em 1985, com co-autoria de Agnaldo Silva. Tony Tornado, viveu Rodésio, o fiel capataz da viúva Porcina (Regina Duarte), o ator revelaria mais tarde que foram gravados três finais diferentes para a telenovela, cada um deles dando destinos distintos à fogosa viúva, em um dos finais ela terminaria com Roque (José Wilker), em outro com Sinhozinho Malta (Lima Duarte) e em um terceiro, terminaria com Rodésio. A emissora divulgou apenas os dois primeiros finais, segundo Tony Tornado, por temer que a reação do público fosse negativa diante de um possível final de Porcina com um negro.
Várias obras de Jorge Amado foram adaptadas para as telenovelas, e todas às vezes que se sucederam as adaptações, o universo da Bahia negra de Jorge Amado quase que desapareceu. Além de “Gabriela”, quase não havia negros nas novelas “Terras do Sem Fim” (1981), “Tieta” (1989) e “Porto dos Milagres” (2001). Imperdoável o branqueamento dado pela Globo à Bahia de Jorge Amado.
Maior Integração e Participação nas Novelas Atuais

“A Próxima Vítima” (1995), de Silvio de Abreu, soprou os ventos da mudança na participação dos negros, que aqui teve um núcleo sólido, retratando uma família de classe média encabeçada por Fátima (Zezé Motta), o marido Cleber (Antonio Pitanga) e os filhos Sidney (Norton Nascimento), Jefferson (Lui Mendes) e Patrícia (Camila Pitanga). Desde então, os eternos papéis de subalternos destinados aos negros não foram extintos, mas deixaram de ser o único retrato apresentado de uma raça.
Em 1996 Walcyr Carrasco, sob o pseudônimo de Adamo Angel, levou para a televisão a personagem histórica de Xica da Silva. Dirigida por Walter Avancini e produzida pela extinta TV Manchete, “Xica da Silva” trazia Taís Araújo como protagonista, sendo um grande sucesso de público. A trama trazia vários personagens negros. Zezé Motta que vivera Xica da Silva no cinema, na telenovela fez o papel de mãe da personagem.
Nos últimos anos, a TV Globo, numa tentativa histórica de redimir-se da segregação negra em suas telenovelas, não por fazer uma autocrítica, mas por pressão das mudanças sociais dos tempos, criou em suas tramas várias personagens negras bem-sucedidas. Em 2004 lançou a sua primeira telenovela protagonizada por uma atriz negra, “Da Cor do Pecado”, de João Emanuel Carneiro, retratando o amor do milionário Paco (Reynaldo Gianecchini) pela romântica Preta (Taís Araújo). Além de “Da Cor do Pecado”, outras novelas globais trouxeram personagens negros bem-sucedidos, como “Mulheres Apaixonadas” (2003), “Celebridade” (2003), “Páginas da Vida” (2006). Em 2006 Lázaro Ramos conquistou o público brasileiro ao viver o Foguinho de “Cobras & Lagartos”, tornando-se protagonista absoluto da telenovela de João Emanuel Carneiro, fazendo cenas antológicas ao lado de Marília Pêra e Taís Araújo. Em 2007 o mesmo Lázaro Ramos viveu em “Duas Caras” o tórrido amor da sua personagem Evilásio pela rica Júlia (Débora Falabella). Ao contrário do que sucedera em

Se hoje há uma maior visibilidade do negro na telenovela, as oscilações continuam conforme sopram os ventos. No começo da primeira década de 2000, um polêmico projeto de lei do então senador Paulo Paim, obrigava que as emissoras de televisão incluíssem 25% de negros nas telenovelas. Imposição que causou mal estar inclusive entre os atores afro-brasileiros. O racismo não desapareceu da telenovela, a participação dos negros tão pouco alcançou o patamar que reflita o seu real lugar na identidade do Brasil. Mas perto do que já foi, um longo caminho foi percorrido, alcançado grandes vitórias. Para isto as mudanças sociais tiveram que ser absorvidas por uma conservadora e preconceituosa sociedade. E a telenovela tem esta função de mudar preconceitos e moldar opiniões. Cabe aos autores, diretores e produtores do gênero assumirem este compromisso de querer mostrar a verdadeira face do brasileiro e do Brasil.