Sábado, 25 de Abril de 2009

CANTAR - SOFISTICADA BOSSA NOVA DE GAL COSTA

 

 

Após o show Temporada de Verão, que culminou com o lançamento do álbum Temporada de Verão – Ao Vivo na Bahia, Gal Costa lançaria, em maio de 1974, o álbum Cantar. Este álbum confirmava o que apenas tinha sido sugerido no Temporada de Verão, ou seja, uma Gal Costa contida, usando a emoção do canto de forma que dava uma nova cor à Bossa Nova. O repertório do disco parece ter sido esboçado nos shows daquele verão na Bahia, pois traz além de Caetano Veloso e Gilberto Gil, faixas de outros compositores que participaram do álbum ao vivo: João Donato, Jorge Mautner e Péricles R. Cavalcanti. Com produção de Caetano Veloso e Perinho Albuquerque, o disco que trazia na capa fotografias de Tereza Eugênia, numa imagem do perfil da cantora, coberta pelos cabelos e com uma flor perdida entre eles, e forte presença de João Donato; não agradou aos que se tinham acostumado com Gal Costa como a musa do desbunde ou como a leoa roqueira de “Meu Nome é Gal”.
1974 foi um ano de intensa produção discográfica da cantora. Começou com o compacto lançado para o carnaval, que trazia as músicas “Sem Grilos” (Caetano Veloso – Moacyr Albuquerque) e “Acorda Pra Cuspir” (Haroldinho Sá), ainda sob a vertente do desbunde. Depois veio o lançamento do álbum Temporada de Verão – Ao Vivo na Bahia, com Caetano Veloso e Gilberto Gil, além do compacto com as canções “Saia do Caminho” (Custódio Mesquita – Ewaldo Ruy) e “De Amor Eu Morrerei” (Dominguinhos – Anastácia), sendo esta última gravada para fazer parte da trilha sonora da novela Os Inocentes, da TV Tupi. Ao contrário do primeiro compacto, estes dois trabalhos mostram Gal Costa totalmente distanciada do desbunde, trazendo um canto cool, que atingiria o seu apogeu com o álbum Cantar.

Um Gosto de Bossa Nova

O álbum começa com a alegre “Barato Total” (Gilberto Gil), canção que arrematava os “baratos” de Gal Costa, surgidos nas dunas que levaram o seu nome nas praias do Rio de Janeiro. Se o barato começara modesto, agora ele era total. Letra que transita entre a leveza bicho grilo-hippie de Gilberto Gil e a suavidade da beleza da voz da cantora. O disco começa alegre e leve, mostrando uma Gal Costa tranqüila após o vendaval tropicalista, que terminara com prisões, revolta e exílio dos amigos. Gal Costa que até então se apresentava séria, introspectiva, mesmo quando cantava roque, começa a mudar a performance e a cantar com um grande sorriso no rosto, que se tornaria sua marca registrada. A canção de Gilberto Gil, apesar de trazer uma linguagem tipicamente dos anos setenta, torna-se atemporal, fazendo parte das indispensáveis do acervo da cantora.
Se o disco começa “bicho grilo”, ele continua com a proposta, com a panteísta “A Rã” (Caetano Veloso – João Donato). O panteísmo da canção é diluído em um som totalmente bossanovista, que se consegue manter distante das praias cariocas, onde surgiu o movimento, dando à canção o tropicalismo de uma bossa baiana.
Lua, Lua, Lua, Lua” (Caetano Veloso) é interpretada ao som de violões, a voz da cantora é acompanhada da voz de Caetano Veloso, que cria um efeito de pulsação, dando a sensação de coração e voz a baterem suavemente, quase ao ritmo da vida.
O lirismo atinge um apogeu na voz de Gal Costa quando ela interpreta “Canção Que Morre no Ar” (Carlos Lyra – Ronaldo Bôscoli), a cantora experimenta um timbre jovial, como uma menina-mulher a cantar docemente o amor, conduzindo as notas em labirintos emocionais que explodem na beleza única da sua voz. Poucas vezes uma canção encontra uma delicadeza tão emotiva como esta interpretação de “Canção Que Morre no Ar”.
Flor de Maracujá” (João Donato – Lysias Enio) dá um tom de eterno verão nas paixões. A canção é um delicioso convite para mergulharmos na brisa das paixões, no gosto do mar, nas flores espalhadas pelos cabelos da cantora, girando e rodando nas paisagens do amor, na evolução da delicadeza dos sentimentos:

"Dia de sol
Cheiro de flor
Gosto de mar, amor
A tua cor
Luz do luar”

Se nos perdemos no cheiro da flor de maracujá, uma nova flor nos é apresentada: “Flor do Cerrado” (Caetano Veloso). A letra da música é uma espécie de juízo final implícito de Caetano Veloso, que apesar de negar, estava a pensar nas previsões de um lunático que dizia que ele morreria em 1975.

“Todo fim de ano é fim de mundo e todo fim de mundo é tudo que já está no ar
Tudo que já está
Todo ano é bom todo mundo é fim
Você tem amor em mim”

Se o tema é presságio, o compositor baiano transforma a canção de apocalíptica a total bossa nova, participando da faixa com “Garota de Ipanema” (Vinícius de Moraes – Tom Jobim) de música incidental. Escancara-se de vez a tendência bossa nova do disco.

Momentos de Delicada Beleza

Bem tropicalista é “Jóia” (Caetano Veloso), uma canção sob medida para a dupla Gal Costa-Caetano Veloso, cantora-autor, musa-poeta. Apesar de ser interpretada de forma contida, a canção não deixa de ser resquício do movimento do desbunde, que já não se afirma apenas no underground, mas na evolução que a década de setenta ia propondo. “Jóia” mistura Copacabana com Coca-Cola, ou seja, um símbolo nacional com o grande símbolo do capitalismo da guerra fria.
Até Quem Sabe” (João Donato – Lysias Neto) é mais um momento intimista do álbum, com Gal Costa cantando o findar do amor com a precisão sedutora e trágica de uma voz de sereia. Piano e voz, o amor e o adeus, a perda da vida compartilhada e a identidade solitária recuperada.
No Temporada de Verão – Ao Vivo na Bahia, Gal Costa abria o disco com a música “Quem Nasceu”, de Péricles R. Cavalcanti. Uma nova faixa do mesmo autor surge em Cantar: “O Céu e o Som”. Se na primeira canção falava-se do templo do pai, da mãe natureza, o tema continua o mesmo em “O Céu e o Som”, desta vez segue-se o caminho do mar, onde a cantora pede que “me ensine a cantar, me ensine a voar”, como se ela não soubesse fazer tão bem as duas coisas.
Lágrimas Negras” (Jorge Mautner – Nelson Jacobina) é um grande momento do disco. Canção melancólica, triste, visceral, de uma beleza ímpar. 1973 tinha sido o ano do fim do milagre brasileiro, da grande crise mundial do petróleo. Não se falava em outra coisa naquele ano se não no “ouro negro”. Num paradoxo poético, recheado de eufemismos, a música dá às lágrimas a cor e densidade do petróleo. Lágrimas negras inundavam o mundo, o fim dos sonhos flower power. Como num cortejo fúnebre, a voz de Gal Costa esvai-se da melancolia da letra, dando um tom triste, definitivo, que contrasta com a leveza de várias faixas, se ela começou “contente” com “Barato Total”, ela termina triste, densa, com “Lágrimas Negras”, são nestes contrastes que a Gal Costa tropicalista sobressai à Gal Costa bossanovista:

Belezas são coisas acesas por dentro
Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento
Belezas são coisas acesas por dentro
Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento
Lágrimas negras caem, saem Dói”

Mas Gal Costa suaviza os contrastes, terminando, imprevisivelmente, o disco com uma linda e pequena canção de ninar: “Chululu” (Mariah Costa), singela homenagem à sua mãe, a autora, dividindo com o público a canção que muitas vezes a fez dormir.

Intimismo e Sofisticação Criticados na Época

Cantar foi visto por alguns críticos como saudosista da Bossa Nova, desatualizado para aquele 1974 tão fustigado pela ideogenia. O álbum recupera o que a Tropicália havia interrompido, ou seja, é como se viesse cronologicamente depois do álbum Domingo (1967). Não há como não comparar os dois álbuns. Se Domingo é o início, Cantar é a concretização deste início. É como se entre um e outro não tivesse existido a turbulência da Tropicália, o desbunde, talvez esta negação não proposital, tivesse refletido na crítica. Se Cantar foi criticado na década de setenta, quando relançado na década de oitenta, tornou-se um álbum cult e dos mais elogiados da discografia da cantora. Faltaram no disco duas canções imprescindíveis do show: “Me Deixe Mudo” (Walter Franco) e “Teco Teco” (Pereira da Costa – Milton Vilella). A ausência de “Teco Teco” foi reparada com o lançamento de um compacto duplo trazendo três faixas do Cantar e a música. Curiosamente, a canção que se tornou hit de Gal Costa naquele ano foi “Teco Teco”.
Cantar apresentou uma Gal Costa mais amadurecida e sofisticada nas interpretações, distanciada dos arroubos juvenis e dos cabeludos de então. E para quem ainda duvidava até onde ela poderia chegar, o coro da canção “O Céu e o Som” professava claramente:

Quem foi que disse que essa mulher não voa?”

Ficha Técnica:

Cantar
Philips
1974

Direção de produção e estúdio: Caetano Veloso e Perinho Albuquerque
Estúdio: Phonogram
Arranjos: João Donato, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Perinho Albuquerque
Técnico de som: João Moreira
Assistente: Paulinho Chocolate
Capa: Rogério Duarte
Fotos: Tereza Eugênia

Músicos Participantes:
Piano: João Donato e Aloísio Milanês
Violão: Gilberto Gil e Perinho Albuquerque
Baixo: Rubão Sabino, Novelli, Milton Botelho e Luís Alves
Bateria: Tuty Moreno e Enéas Costa
Guitarra: Chiquito e Perinho Albuquerque
Percussão: Ariovaldo Peninha e Bira da Silva
Tumba: Hermes Contesti
Bordão: Perinho Albuquerque
Regência: Mário Tavares
Efeito de voz: Caetano Veloso (Lua,Lua, Lua, Lua)
Efeito de mesa: João Moreira (Lua, Lua, Lua, Lua)

Faixas:

1 Barato total (Gilberto Gil), 2 A rã (Caetano Veloso - João Donato), 3 Lua, lua, lua, lua (Caetano Veloso), 4 Canção que morre no ar (Carlos Lyra - Ronaldo Bôscoli), 5 Flor de maracujá (Lysias Ênio - João Donato), 6 Flor do Cerrado (Caetano Veloso), 7 Jóia (Caetano Veloso), 8 Até quem sabe (Lysias Ênio - João Donato), 9 O céu e o som (Péricles Cavalcanti), 10 Lágrimas negras (Nelson Jacobina - Jorge Mautner), 11 Chululu (Mariah Costa)

 
publicado por virtualia às 06:39
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