Quarta-feira, 15 de Abril de 2009

O CARTEIRO DE PABLO NERUDA

 

 

O cinema italiano de tempos em tempos, brinda o mundo com obras de linguagens lírica e emocionante, que transcendem tão singular estilo na sétima arte. O Carteiro e o Poeta (Brasil) ou O Carteiro de Pablo Neruda (Portugal), é um desses momentos mágicos vindos das lentes itálicas, que funde a imagem e as palavras em um poema lúdico, fazendo dele um filme de ode às metáforas. Baseado no romance do escritor chileno Antonio Skármeta, “Ardiente Paciencia”, o filme de Michael Radford transformou a personagem Mario Jimenéz, um chileno de 17 anos, em Mario Ruoppolo, um italiano de pouco mais de trinta anos.
O sucesso do filme foi imediato, emocionando as platéias de todo o mundo. Concorreu a cinco indicações do Oscar, entre elas a de melhor ator, melhor filme e melhor diretor. Ganharia apenas uma estatueta, a de melhor trilha sonora.
Ao transportar a personagem chilena para uma ilha no sul da Itália, o filme assume uma ruptura genial com o livro em que foi baseado, assumindo uma identidade itálica transposta no rosto e nos gestos do ator Massimo Troisi. A conjunção Mario Ruoppolo-Massimo Troisi desenha uma das mais belas criações do cinema universal, revelada em uma fina tela de emoções refletidas nos olhos do ator. Se o filme é um momento de beleza que encanta, para o ator Massimo Troisi é um momento definitivo. Através da personagem, Troisi tem a maior e derradeira interpretação da sua carreira, perseverantemente lutou contra a saúde debilitada durante as gravações, vindo a falecer pouco depois de concluí-las. Personagem e ator fundem-se na vida e na morte, não sabemos onde um encerra e o outro prossegue. Troisi sabia que aquele era o momento de acertos entre a vida e a arte, ludicamente despede-se das duas, deixando impregnado a imagem do carteiro de um dos maiores poetas do século XX. Il Postino, no título original, é um momento raro de encontro entre a palavra e a imagem, na metáfora mais perfeita entre Mario Ruoppolo e Massimo Troisi, registrando um dos mais belos filmes já feitos pelo cinema italiano.

Surge o Carteiro de Neruda

O cenário é a Itália do pós-guerra, sobrevivente do fascismo e da humilhação de ter feito parte do eixo que apoiou o nazismo alemão. Empobrecida, esta Itália vê como saída a migração dos seus filhos para a América. O filme abre as suas lentes para aquele lugar pobre e esquecido pelo progresso, mas belo nas entrâncias do mar e de ilha paradisíaca no meio do nada. Emerge dali Mario Ruoppolo, um homem inquieto e retraído em uma existência demarcada pelas limitações e sobrevivência do local que vive. Lugar atrasado, onde o principal meio de sustento é ser pescador, Mario sofre com a incapacidade de cumprir este destino. De saúde frágil, não tem jeito para a pesca, sendo visto pelos outros como preguiçoso e inadaptado.
Em um mundo de homens rudes e sem cultura, a sensibilidade de Mario está escondida numa poesia que ele desconhece dentro de si mesmo, mas que pressente diante de um mar de pescadores. Mario é um dos poucos do lugar que sabe ler, e é este pouco saber que o faz diferente. Vive uma vida modesta e sem atrativos, quando o marasmo é interrompido por um acontecimento súbito, a chegada do poeta Pablo Neruda (Philippe Noiret), que por motivos políticos é obrigado a exilar-se naquela ilha. A chegada de Neruda à ilha é anunciada através do jornal do cinema, único meio de comunicação de tão inóspito lugar ao progresso. O diferencial de Mario Ruoppolo diante dos outros habitantes do vilarejo vale a ele um emprego singular, ser carteiro do poeta exilado. Sendo um homem erudito e conhecido em todo mundo, Neruda recebe uma grande quantidade de cartas. Como a casa onde está exilado é distante, isolada no alto de um morro, é preciso destinar alguém só para lá ir entregar tão numerosa correspondência. O pouco que Mario sabe ler e o fato de ter uma bicicleta, habilita-o para o cargo. É contratado como carteiro de Pablo Neruda.

Um Sentido de Vida Verdadeiro para Mario

Se a vida parecia perdida para Mario, ela começa a recuperar o verdadeiro sentido do que lhe estava destinado, quando ele tem o primeiro contacto com Neruda. Mario tem fome do saber, das palavras e da poesia. Neruda está longe do seu universo, dos seus seguidores e admiradores. O encontro é perfeito. Se Neruda está exilado do seu cotidiano e da sua vida, Mario está à procura de uma ruptura, de uma mudança que lhe satisfaça a existência miúda diante da miséria e mesquinhez da existência humana.
Mario dentro da sua simplicidade de vida, é um homem de alma complexa, obstinada e sempre pronta a aprender. Não se limita a ser um simples carteiro particular do poeta das mulheres. Aprofunda-se nos recursos escassos que tem, como olhar no mapa e aprender onde estava o Chile, terra natal de Neruda. Honesto, de personalidade inteligente, sensibilidade aguçada e emotiva, Mario trava um diálogo com Neruda, que simples ao começo, torna-se amplo. O carteiro sabe aproveitar todos os conhecimentos que lhe traz Neruda. Anota-os, estuda-os, aprende-os. Sua alma é fértil diante dos conhecimentos, todo o saber que nela é plantado germina, avança e evoluí para a erudição de uma existência persistente e honesta, demarcada pelas feições que traz no rosto e nos gestos.
A admiração de Mario por Neruda é real, profunda, é a razão da sua existência, até ali banal e desencontrada. Enquanto o chefe do correio chama Neruda de poeta do povo”, para o carteiro ele é o “poeta do amor”. Diante do espelho ele ensaia como deverá pedir que o poeta lhe autografe um livro, diante de Neruda pede simples e espontâneo. O contraste da alma aprendiz de Mario salta em paradoxo com o corpo do homem que montado em uma bicicleta, apresenta-se todos os dias bucolicamente ao poeta.
Mario vai além das suas limitações. Aprende com a poesia de Neruda. Toma-a para si e a declara a bela Beatrice Russo (Maria Grazia Cucinotta). Aqui ele mostra que a poesia só pertence ao poeta até transposta para o papel, depois é de todos os homens que precisam dela para amar e para que se seja amado. Quando questiona ao poeta certos poemas, recebe deste a mais verdadeira das explicações:
Quando explicamos a poesia ela torna-se banal. Melhor do que qualquer explicação é a experiência direta das emoções, que a poesia revela a uma alma predisposta a compreendê-la."
O carteiro aprende os labirintos das metáforas. Ajudado por Neruda, conquista o amor da mais bela mulher do lugar, a sua eterna Beatrice. Sob a benção e o apadrinhado do poeta, casa-se com ela.

Paradoxo Entre a Poesia, os Ideais e a Morte

Após conquistar Beatrice, Mario Ruoppolo descobre que diante dos conhecimentos, a vida torna-se ilimitada às ideologias humanas. Mario já não se restringe às metáforas da poesia ou da linguagem, mas aos meandros da política. A visão da esquerda comunista de Neruda contagia aquele homem simples, que salta para além daquele vilarejo governado por demagogos, que nem água traz ao lugar. Mario torna-se militante sindicalista. Leva consigo o ideal de Neruda, tantas vezes perseguido e dilacerado pela força bruta dos regimes totalitários da guerra fria.
Mas um dia os ventos mudam. Neruda já pode voltar do seu exílio. Antes de deixar a ilha, despede-se de Mario, prometendo mandar notícias, e um dia voltar para uma visita. Pede ao discípulo que lhe mande o que há mais bonito naquela ilha. Neruda parte, deixando para trás um novo Mario, casado com a mulher que ama, consciente dos valores políticos e sociais, muito além do homem simples e perdido que fora até o encontro com o poeta.
O tempo passa e Mario nunca esquece Neruda. Espera sempre por uma carta, uma notícia, uma visita, que nunca chega. Quando questionado pela indiferença do amigo, ele nunca o recrimina, justifica-se, dizendo que Neruda é um homem muito ocupado. Com uma paciência estóica, ele aguarda a volta do poeta. Enquanto espera por notícias de Neruda, Mario, apesar da militância política, jamais perdeu a sensibilidade da poesia, o sentido das metáforas. Decide cumprir a promessa que fizera ao poeta, registrar e enviar o que de mais belo tem na sua ilha. É aqui que surge uma das mais belas cenas do filme. Além da bela Beatrice, para Mario o registro das ondas do mar, o som do vento, tudo isto ele põe em gravador para enviar para Neruda. O poeta do filme já não Pablo Neruda, mas o próprio Mario Ruoppolo, que ao registrar o mar da sua ilha, mostra a palavra de todos os poetas analfabetos do mundo, muito além dos símbolos gráficos e das letras.
Passados muitos anos, um dia Neruda cumpre a promessa que fizera ao carteiro, retornando à ilha para rever o amigo. Neruda entra sorridente no bar que pertencia a Beatrice, procura saudoso pelo amigo. Tarde demais! Paradoxalmente, os conhecimentos e ideais que aprendera com Neruda, levaram Mario à morte. O homem sensível que só queria trazer água corrente para a sua ilha, tinha sido morto durante um comício do Partido Comunista Italiano, em uma grande cidade, que fora violentamente reprimido pela polícia de estado. Beatrice conta para Neruda a longa espera do marido pela sua volta. Entrega-lhe o registro poético das ondas que ele fizera em sua homenagem. Emocionado, Neruda vai ao lugar onde Mario gravara o som das ondas do mar. A poesia condensa-se com a imagem. Realidade e ficção unem-se em uma ode final. Morrera Mario Ruoppolo. Morrera doze horas depois de concluir o filme, Massimo Troisi. Surgem as letras na imensa tela, com a dedicatória “ao nosso amigo Massimo Troisi”.

Ficha Técnica:

O Carteiro e o Poeta

Direção: Michael Radford
Ano: 1994
País: Itália, França e Bélgica
Gênero: Drama, Romance
Duração: 109 minutos / cor
Título Original: Il Postino
Roteiro: Michael Radford, Anna Pavignano, Massimo Troisi, Giacomo Scarpelli e Furio Scarpelli, baseado no livro de Antonio Skármeta
Produção: Mario Cecchi Gori, Vittorio Cecchi, Gori e Gaetano Daniele
Música: Luiz Enríquez Bacalov
Direção de Fotografia: Franco Di Giacomo
Desenho de Produção: Lorenzo Baraldi
Figurino: Gianna Gissi
Edição: Roberto Perpignani
Estúdio: Miramax Films / Blue Dahlia Productions / Cecchi Gori Group Tiger Cinematografica / Esterno Mediterraneo Film / Penta Films, S.L.
Elenco: Massimo Troisi, Philippe Noiret, Maria Grazia Cucinotta, Renato Scarpa, Linda Moretti, Mariano Rigillo, Anna Bonaiuto, Nando Néri, Sergio Solli, Carlo Di Maio, Vicenzo Di Sauro, Orazio Stracuzzi, Alfredo Cozzolino
Sinopse: Por razões políticas o poeta Pablo Neruda (Philippe Noiret) exila-se em uma ilha na Itália. Lá um desempregado (Massimo Troisi) quase analfabeto é contratado como carteiro extra, encarregado de cuidar da correspondência do poeta, e gradativamente entre os dois se forma uma sólida amizade.

Michael Radford

Michael Radford é um diretor de cinema britânico. Filho de pai britânico e mãe austríaca, nasceu em 24 de fevereiro de 1946, em Nova Deli, Índia, quando esta ainda era uma colônia britânica. Radford trabalhou muitos anos para a BBC, fazendo vários documentários para a televisão (1976-1982).
No cinema, o primeiro filme que projetou Radford internacionalmente foi 1984, baseado na obra homônima de George Orwell, filme que seria o último da vida do ator Richard Burton. O filme foi realizado no ano que Orwell indicou no livro, escrito em 1948.
Sem dúvidas, o filme da carreira de Michael Radford é Il Postino, de 1994. Sensível adaptação ao livro de Antonio Skármeta. Um dos momentos mais brilhantes da sua carreira e do cinema europeu, culminando com uma indicação para o Oscar de melhor diretor.
Em 2004 Radford dirigiu o filme O Mercador de Veneza, baseado na obra homônima de William Shakespeare, que trazia um elenco de luxo, com nomes como Al Pacino e Jeremy Irons.

Filmografia de Michael Radford:

1980 – The White Bird Passes (televisão)
1980 – Van Morrison in Ireland
1983 – Another Time, Another Place
1984 – 1984
1988 – White Mischief
1994 – Il Postino
1998 – B. Monkey
2000 – Dancing at the Blue Iguana (Divas do Blue Iguana)
2002 – Tem Minutes Older: The Cello
2004 – The Merchant of Venice (O Mercador de Veneza)
2007 – Flawless (Um Plano Brilhante)
2008 – Mula, La
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publicado por virtualia às 23:58
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