Quando os portugueses colonizaram o Brasil, encontraram um imenso território para ser desbravado. Adentraram no interior, penetrando o sertão agreste e selvagem. Longe do litoral, a população sertaneja dependia da mata, do rio que corria pelas terras secas. Nos povoados que se formaram, várias lendas ibéricas foram adaptadas pelo sertanejo, tomando a forma e o conteúdo da realidade do imenso sertão brasileiro.
Um país rico em diversidades culturais, também é rico em lendas. As lendas sertanejas buscaram inspiração não só nas tradições orais dos colonizadores europeus, como assimilaram lendas trazidas da África pelos negros e as contadas pelos índios.
Aqui serão contadas três lendas sertanejas:
Caipora, uma espécie de duende tropical, protetor dos animais silvestres, que toma a forma de um menino negro e peludo, atravessa as matas nu, a montar em um porco selvagem, empunhando um ferrão. Também chamado de
Caapora, ele assume várias formas em diferentes regiões do Brasil, como a de um homem ou a de uma velha.
Famaliá é uma lenda portuguesa, nas crônicas de São Cipriano ele surgia do ovo de uma galinha preta, e de umas palavras dirigidas a Lúcifer. No sertão mineiro e da Bahia, ele surge do ovo de um galo. Desde o século XVI que a lenda foi transportada para o Brasil. Com o passar dos anos, ele deixou de ser o
Familiar das crônicas ibéricas, para ser o
Famaliá do caboclo sertanejo.
O Sono do Rio vem das crenças dos barqueiros das regiões ribeirinhas do São Francisco. Se na Europa existe a lenda da
Hora Azul, um momento de transição entre o dia e a noite, que dura um segundo, e que há um silêncio entre os seres do dia e os seres da noite, o sono do rio dá-se também, em um único segundo, à meia-noite. Durante o segundo, o mar, o rio e todas as águas adormecem, para um breve descanso. Não se pode acordar o ressonar das águas, para que não insultemos a natureza.
Três belas lendas que trazem um retrato de um Brasil cada vez mais distante no mundo virtual e conectado pela tecnologia. Um Brasil rico em narrativas e imaginação, formando um povo ímpar, de uma cultura plural e inesgotável.
CaiporaPelas caatingas, pelas matas do sertão, a vida corre solta para os animais silvestres, que diante da maldade dos homens, conta com o espírito indomável do Caipora, sempre atento aos caçadores. O Caipora caça as galinhas nas capoeiras, assusta os cães e os cavalos domésticos, sempre protegendo os animais selvagens.
João sempre ouvira falar do Caipora, mas nunca acreditou que ele existisse. Tornara-se um exímio caçador de porco do mato. O destemido João decidiu, numa sexta-feira, caçar alguns porcos selvagens para salgar a carne e abastecer a sua dispensa. Tomou da sua espingarda e, à tardinha, quando o sol começava a cair no crepúsculo, pôs-se de tocaia atrás de uma pedra na beira do rio. Atento aos movimentos, João ouviu quando uma vara de queixadas aproximava-se. Quando as queixadas puseram-se a beber água, mais do que depressa João deu três tiros certeiros. Viu cair um a um os porcos do mato que caçara, enquanto os outros fugiam assustados. João estava satisfeito. Aqueles animais eram-lhe suficientes. Orgulhou-se de como estava com uma pontaria cada vez mais precisa, sem errar um tiro.
O João já se preparava para retalhar a carne das caças, deixando-lhes só as carcaças, quando se formou um grande remoinho de poeira à sua volta, que lhe cobriu os olhos de terra. No meio do remoinho, o caçador ouviu um barulho de animal a cavalgar. Ouviu gritos e palavras em uma língua estranha. João limpou os olhos, podendo ver que do centro do remoinho surgia um moleque peludo, totalmente nu, sentado em cima de um gigante porco do mato. O moleque trazia uma lança com um grande ferrão na ponta. João ficou quedo, sem poder mover as pernas, paralisadas pelo medo. Aquele estranho moleque só poderia ser o Caipora.
O caçador não ousou a olhar de frente tão temida criatura. O Caipora, ao ver os animais mortos, deu um grito ensurdecedor, lançando na mata toda a sua ira. Em seguida tocou com o ferrão uma das queixadas mortas, dizendo-lhe:
– Levante! Embrenhe-se na mata!
O animal levantou-se e saiu correndo. Repetiu o gesto com outro animal, sucedendo-lhe o mesmo. No terceiro e último porco do mato morto, o Caipora tocou com tanta força o seu ferrão, que este quebrou. A queixada saiu correndo. Irritado, o Caipora olhou para o caçador, dizendo-lhe:
– Por sua causa quebrei o ferrão da minha lança. Sorte a sua, pois o próximo que iria tocar com a lança era você, e ao contrário das queixadas, você nunca mais se iria levantar do chão, cairia morto na mata! Não queira estar aqui quando eu consertar o ferrão!
Dizendo isto, ele deu um imenso grito, fazendo com que disparasse o porco do mato que ele montava, seguido de outros tantos, por fim, desapareceu dentro da mata. João respirou aliviado. Pegou sua espingarda e partiu.
No dia seguinte, João foi visitar o ferreiro do lugar. Antes de começar a relatar a sua história ao amigo, ambos foram surpreendidos por um estranho caboclo, de olhar esgueiro, que despertava pouca confiança. O caboclo dirigiu-se ao ferreiro:
– Preciso que conserte este ferrão. – Ordenou. – Tenho muita pressa.
João olhou para o ferreiro, como se perguntasse quem era o caboclo. Ao olhar para o ferrão, reconheceu que era o mesmo que o Caipora empunhava na mata. O caboclo era o próprio Caipora, que desencantara. João fez um gesto para ajudar o ferreiro a acender a forja e consertar o ferrão. Então ouviu a voz áspera e irritada do estranho caboclo, que lhe disse:
-Não toque no ferrão! Não se esqueça que quando ele estiver consertado, irá disparar sobre aquele que não disparou antes. Quer esperar para ver o ferrão consertado? Então vá embora e nunca mais mate um porco do mato. E nunca conte para ninguém o que você viu!
João largou o ferrão quebrado. Não esperou segunda ordem, fugiu dali antes que o caboclo voltasse a ser o Caipora. Desde então, João nunca mais se embrenhou na mata sertaneja atrás das queixadas.
FamaliáCom muita tristeza, o fazendeiro enterrou a sua mulher. Após beber a morta com os vizinhos, o
infeliz homem voltou para a sua fazenda. Sentou-se em uma cadeira no meio da sala, de frente para o oratório. Ali, dentro do oratório, ele guardava a sua relíquia mais preciosa, dona do seu segredo.
A sala da casa parecia enorme. Dono da maior fazenda do sertão mineiro, o fazendeiro sentia-se sozinho, velho e infeliz. Os filhos migraram para as grandes cidades. Morrera-lhe a mulher. Com os olhos marejados, o fazendeiro repassou a sua vida, impregnada de memórias em cada canto daquela sala. Na distância do tempo, ele encontrou o rapaz pobre e humilde que um dia tinha sido. Na juventude fora um capataz dedicado da fazenda do Mané Lourenço. O patrão, avançado na idade, grato pela dedicação do capataz, no leito de morte revelou a ele o segredo da sua imensa fortuna: era por causa do Famaliá. Mané Lourenço contou ao jovem capataz como conseguir o seu Famaliá.
Tão logo o Mané Lourenço foi enterrado, o capataz foi até o seu galinheiro atrás de um ovo de galo. Procurou, procurou, e não achou a preciosidade. Mas o capataz não desistiu. Todos os dias, durante meses, ele ia ao galinheiro do finado Mané Lourenço atrás do ovo de galo. Já começava a pensar que o patrão zombara da sua fé e ambição. Um dia, lá encontrou um ovo pequenino, do tamanho do ovo de uma pomba. Sorriu vitorioso. Finalmente encontrara um ovo de galo. Pegou o tão precioso ovo e o levou para casa. Seguindo o que lhe ensinara o Mané Lourenço, esperou até a quaresma. Na noite alta da primeira sexta-feira da quaresma, levou o ovo até uma encruzilhada escura, esperou pela viração das horas, pôs o ovo debaixo do braço esquerdo, na axila, pronunciou as palavras secretas que lhe revelara o patrão morto. Assim, com o ovo debaixo do braço, voltou para casa. Estava consumado!
O jovem capataz foi acometido de uma imensa febre, que o fez prostrar-se na cama, ali permanecendo por quarenta dias. A febre parecia queimar o seu corpo. Ao final daqueles dias, sentiu quando o ovo começou a eclodir. De dentro dele surgiu um diabinho de um palmo de tamanho. O jovem pegou o diabinho e o meteu em uma garrafa preta, arrolhou-a com cuidado, guardando-a em segredo, em um velho oratório que recebera de herança da avó.
Com o seu Famaliá na palma da mão, o jovem pediu-lhe riquezas, poder e sedução sobre as pessoas. Não tardou a ser atendido, pois tudo que se lhe tocava, tornava-se próspero. O ex-capataz tornou-se um grande fazendeiro, ainda mais rico e mais importante do que fora o Mané Lourenço. Casou-se, teve filhos, dinheiro, poder, fama, mas nunca a felicidade.
Velho, viúvo e sozinho, o fazendeiro olhava para o oratório. Caminhou até ele, abriu-o. Lá estava o seu segredo. O Famaliá. Nunca ninguém mexera naquela garrafa a não ser ele. Era o seu grande segredo. Pegou a garrafa na palma da mão. Angustiado e triste, olhou para o Famaliá e perguntou-lhe:
– Você me deu tudo, falta a felicidade. Onde está?
– Dei o que você me pediu. Dinheiro, riqueza, poder, êxito. Tudo isto não traz felicidade?
– Não, não traz.
– E o que você queria? Para se ter um Famaliá você fez um pacto com o diabo, não com os santos. Você ganhou, mas o diabo foi o vencedor.
Amargurado, o fazendeiro pôs o Famaliá dentro do oratório. Por quê Mané Lourenço não o advertira sobre a felicidade? Saiu da sala, cabisbaixo, triste e infeliz. Já nenhum poder ou riqueza varria a solidão do seu coração. Guardou o oratório em um porão. Nunca mais o abriu.
O Sono do RioNuma noite estrelada, Serafim deslizava o seu barco pelas águas do rio São Francisco. Exibia orgulhosamente a sua nova carranca. Serafim afastara-se dos outros barqueiros. Através das águas do velho Chico adentrava o sertão. Guiava-se pelas estrelas, que lhe revelavam as horas. O silêncio da noite era cortado pelo barulho, ao longe, da cachoeira que estava próxima. Cada estrela iluminava o rosto do barqueiro, tornando-o luminoso.
Já quase próximo da meia-noite, Serafim foi, de repente, acometido por um cansaço extenuante, que trazia uma lassidão ao seu corpo, quase que em forma de encantamento. Vendo as forças a faltar-lhe, o barqueiro deitou-se na barca. Sentiu que uma força magnética conduzia-o pelo rio. Cada vez mais sentia o barulho da cachoeira aproximar-se. Imóvel, viu a barca parar. No céu a estrela guia indicava-lhe que era meia-noite. Quanto mais brilhava a estrela, mais claras ficavam as águas do rio São Francisco.
Serafim continuava imóvel, deitado sobre a barca. Então um silêncio absoluto reinou ao seu redor. A cachoeira cessou o barulho das suas águas. Diante da calmaria silenciosa, o barqueiro lembrou-se que aquele era o dia do Sono do Rio, e que nenhum movimento poderia interromper o momento único, pois ele se dava apenas uma vez no ano. Bem devagar, para não perturbar o Sono do Rio, Serafim tirou dos bolsos um pedaço de fumo cortado. Estendeu as mãos e o pôs sobre a popa. Continuou imóvel. Foi quando viu a imensa mão do Negro d’Água fazer uma grande sombra sobre a barca. Ao ver o fumo cortado sobre a popa, o estranho visitante desistiu de atacar Serafim, apossou-se do fumo e partiu.
O São Francisco continuava a dormir. Serafim permanecia em silêncio, olhando fixamente para o céu estrelado. De repente surgiu a Mãe d’Água, metade peixe, metade mulher. Sentou-se sobre a proa da barca, a pentear os belos e longos cabelos verdes, como se fizesse uma oração ao Sono do Rio.
Serafim sabia que o Sono do Rio durava apenas um segundo, mas tudo parecia eterno durante aquele segundo. As cobras perdiam a sua peçonha, os peixes ficavam imóveis no fundo do rio. De repente o belo canto da Mãe d’Água ecoou, como se velasse o Sono do Rio. Diante do seu canto, o São Francisco abriu o seu abismo hiante, devolvendo todos os homens que em suas águas morreram afogados. Serafim viu os mortos retomando a forma dos seus corpos, flutuando no ar, indo para o céu, guiados pelo clarão das estrelas.
Quando o último homem desapareceu no céu, também a Mãe d’Água sumiu. A cachoeira voltou a correr normalmente. Serafim apercebeu-se que a beleza que vira há pouco tinha findado. Sentiu-se o mais feliz dos sertanejos. As forças voltaram ao seu corpo. Pensou em levantar-se, mas continuou inerte, deitado sobre a barca por mais um minuto, para ter a certeza de que não iria atrapalhar o Sono do Rio.
Ilustrações:
José LanzellottiAdaptação livre de
Jeocaz Lee-Meddi para textos de
Brasil, Histórias, Costumes e Lendas