O Brasil perdeu Dorival Caymmi em 16 de agosto de 2008, aos 94 anos, vítima de um câncer com o qual lutou durante nove anos. No momento de dor e tristeza que a partida de um cantador do Brasil e, particularmente, da Bahia, deixa em nós, é tempo de revisitarmos a sua imensa obra, um acervo com mais de 100 canções. Nada mais agradável do que começar pelo álbum “
Gal Canta Caymmi”, de 1976, um dos mais belos e definitivos registros da obra do grande compositor baiano. O universo de Dorival Caymmi traduzido no canto de Gal Costa revela-nos a pluralidade da Bahia, que presenteou o Brasil com tão soberba e talentosa dupla. Gal Costa e Dorival Caymmi, duas vezes Bahia, duas vezes emoção, mil vezes Brasil.
Em 1975 a Rede Globo decidiu adaptar o romance “
Gabriela, Cravo e Canela”, de Jorge Amado, para uma das suas telenovelas. Começava uma grande corrida das atrizes para conseguir o papel de Gabriela. O todo poderoso da emissora carioca, Daniel Filho, tinha em mente um nome, Gal Costa. Mas a cantora, mesmo diante da insistência de Daniel Filho, declinou do convite, por não se achar uma atriz. Após intensa seleção, Sonia Braga, então atriz de papéis secundários na emissora, foi a escolhida para protagonista de “
Gabriela”. Dorival Caymmi compôs o tema de abertura da novela, “
Modinha Para Gabriela”. A canção foi dada a Gal Costa, que com uma interpretação sensual e mítica, fincaria de vez a sua voz na personagem de Jorge Amado.
Apesar de conhecer a obra de Caymmi do avesso e cantar suas canções nos seus shows, até então, Gal Costa só tinha gravado do compositor a música “
Oração de Mãe Menininha”, em 1973, e mesmo assim em dois registros de shows, lançados em 1973, nos álbuns “
Phono 73 - O Canto de Um Povo”, dueto com Maria Bethânia, e “
O Banquete dos Mendigos”, numa interpretação a solo.
Com o grande sucesso da novela “
Gabriela”, a Bahia ficou em grande evidência, tornando-se moda no país inteiro. Jorge Amado, Gal Costa e Dorival Caymmi tornaram-se os grandes protagonistas desse modismo. O resultado deste momento, foi um show histórico de Gal Costa e Dorival Caymmi, que percorreria apenas quatro cidades do país. O suficiente para que a química musical entre ambos contagiasse o Brasil. Estava lançada a semente para um encontro entre Gal Costa e Dorival Caymmi em um disco. Ainda no calor do sucesso de “
Modinha Para Gabriela”, e do show que teve gosto de pouco, em dezembro de 1975, Gal Costa entrou em estúdio para gravar um disco só com canções de Dorival Caymmi. Em março de 1976 era lançado o mítico “
Gal Canta Caymmi”, um dos mais belos registros musicais da essência baiana no cenário da MPB.
Gal Canta Caymmi, o Álbum“
Gal Canta Caymmi”, álbum de 1976, trazia na sua capa uma Gal Costa fotografada por Tereza Eugênia, com cabelos e bocas sensuais, a lembrar uma Gabriela de todos nós. Na contra-capa, Gal Costa e Dorival Caymmi estão abraçados, ambos com um sorriso luminoso, a mostrar a admiração recíproca e o carinho que sentiam um pelo outro. O álbum foi produzido por Perinho Albuquerque. Trouxe músicos como João Donato, Roberto Menescal e Dominguinhos, com quem a cantora já trabalhara anteriormente.
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Gal Canta Caymmi” nasce do grito da Bahia milenar, folclórica, com sua eterna pulsação geradora de arte e de artistas. Começa com uma vinheta trazendo o toque dos tambores (infelizmente cortados da versão do LP para o CD). O show vai começar. O tempero baiano está no ar, apimentado e pincelado pela receita de “
Vatapá”. É a simplicidade de Caymmi na voz de Gal Costa, que de pequenos momentos, como fazer um vatapá, gera uma poesia com cheiro do Brasil africano que há em todos nós. Se alguém procurava uma nega baiana que soubesse mexer esse vatapá, encontrou-o no tempero certo da voz de Gal Costa.
Depois de saborearmos o vatapá, o violão traz a voz de Gal Costa, quase em capela, a introduzir “
Festa de Rua”, que nos transporta para o sincretismo religioso da Bahia, retratado na tradicional procissão marítima pela Baía de Todos os Santos, levando a imagem de Bom Jesus, que sai da Conceição da Praia no primeiro dia do ano. A voz de Gal Costa começa doce, lenta, explodindo em agudos, como uma festa de rua.
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Nem Eu” mostra a maturidade no cantar de Gal Costa, o controle da voz, que transforma um intimismo velado em uma apoteótica canção de amor. Nesta faixa a cantora cresce como intérprete, distanciando-se da época que cantava o amor para a geração do desbunde. Aqui ela canta o amor para toda a MPB, levando-nos a compará-la com uma Dalva de Oliveira ou Ângela Maria. Gal Costa já não era a menina rebelde dos gritos da Tropicália, era senhora do seu canto e sabia onde poderia chegar.
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Pescaria (Canoeiro)” mostra o mar da Bahia, os pescadores de “
Mar Morto” de Jorge Amado, a gente simples que vive do peixe pescado no recôncavo baiano. Gal Costa usa de seus agudos como nunca. O final é belíssimo, como o chamado de uma sereia. Os agudos da cantora contrastam com as ondas do mar baiano. Nesta canção Gal Costa mostra porque é uma das maiores vozes do Brasil. Técnica e emoção fundem-se, perdendo-se em agudos embriagantes.
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O Vento” chega manso, é chamado pela cantora e pelo violão. Soltam-se as velas, içam-se os arranjos, e viajamos atrás do curimã para a moqueca baiana, atrás da voz cada vez mais embriagante da cantora, que com “
O Vento” encerrava o lado A do vinil, dando-nos fôlego para o que viria a seguir.
O álbum, feito nos moldes dos LPs, começava o lado B (a lógica bem trabalhada dos lados A e B foi eliminada pelos CDs) com “
Rainha do Mar”. O eterno casamento entre a poesia de Dorival Caymmi e o mar imenso, folclórico, repleto de lendas. O canto da sereia, temido e admirado por todos os pescadores:
“Minha sereia, rainha do mar
Minha sereia, rainha do mar
O canto dela faz admirar”
E se o temido canto que enfeitiçou os pescadores era de Iemanjá, aqui ele é de Gal Costa, que vai, faixa a faixa, quase sem esforço, transformando o repertório de Dorival Caymmi em uma extensão da sua obra.
O clímax do álbum é atingido em “
Só Louco”. Gal Costa faz uma interpretação intimista, solitária, lírica e definitiva, repleta de armadilhas sedutoras que prendem os ouvintes. A música foi escolhida pela Rede Globo para ser tema da abertura da novela “
O Casarão”, de Lauro César Muniz. Devido ao sucesso da telenovela, torna-se a canção mais tocada nas rádios de todo o álbum, e também a mais conhecida, ganhando um clipe histórico no programa “
Fantástico”.
“
São Salvador” é a homenagem de Dorival Caymmi e Gal Costa à cidade que os viu nascer. Com simplicidade, é a canção dentro da MPB, que melhor retrata a geografia humana de Salvador nos versos “
a terra do branco, mulato” e “
a terra do preto doutor”. Na voz de Gal Costa a canção torna-se doce, quase um sussurro.
“São Salvador
Bahia de São Salvador
A terra do Nosso Senhor
Pedaço de terra que é meu”
“
Dois de Fevereiro” fecha o álbum com a grande homenagem à maior festa de Salvador e, conseqüentemente, da Bahia. É a homenagem à Bahia eclética, de várias cores e sons, traduzida na devoção a Iemanjá. A força baiana de Gal Costa supera o piano bossa nova de João Donato e a canção encerra a homenagem da cantora ao mestre e pai de todos os cantores baianos.
Resta falar sobre a penúltima canção, “
Peguei um Ita no Norte”. É a história do próprio Dorival Caymmi, que quando jovem veio da Bahia em um navio a vapor pertencente à Companhia Nacional de Navegação Costeira, designados por Itas, devido aos nomes que tinham: Itapagé, Itanagé, Itapé... É a história comum de várias gerações de baianos, nordestinos, nortistas do Pará, que diante da miséria da sua região, eram obrigados a migrar para São Paulo e Rio de Janeiro em busca de melhores condições de vida. Caymmi veio de Ita para o sudeste e jamais voltaria à Bahia para viver. Gal Costa e a sua geração de baianos vieram da Bahia, para conquistar o Brasil. A canção canta a saudade da terra natal, não importa se de Salvador ou de Belém, a saudade de quem venceu nos grandes centros do sudeste, mas nunca esqueceu as origens. Caymmi jamais esqueceu a Bahia. Retratou-a por toda a sua obra. Gal Costa, ao gravar este álbum, voltava às origens, trazendo a sua essência baiana à flor do canto.
Dez canções depois, os tambores dos terreiros voltam a tocar em vinheta, encerrando o encontro mágico de Gal Costa e Dorival Caymmi, deixando uma emoção perene e o completo fascínio de todo o Brasil pela Bahia aqui cantada.
“
Gal Canta Caymmi” anulava a proposta
cool de interpretação do álbum anterior, “
Cantar”, para mostrar uma cantora que sabia mesclar emoção e técnica, dosar os agudos, ampliando as extensões de voz. Neste álbum, a interpretação intimista de “
Domingo”, indomável na época da Tropicália e do desbunde,
cool e elegante em “
Cantar”, dá passagem para o domínio perfeito e maduro no canto de Gal Costa, pronta, finalmente, para interpretar qualquer fase ou estilo da MPB.
Ficha Técnica:Gal Canta Caymmi Philips
1976
Direção de produção: Perinho de Albuquerque
Arranjos: João Donato e Perinho Albuquerque
Técnicos de gravação: João Moreira, Ary Carvalhaes, Luigi Hoffer e Luiz Cláudio
Assistente de produção: Luciano Maia Bartholo
Assistentes de gravação: Paulo “Chocolate” Sérgio, José Guilherme e Rafael Isaac
Montagem: Jairo Gualberto
Estúdio: Phonogram
Mixagem: Luigi Hoffer
Capa: Lobianco
Fotos: Tereza Eugênia
Músicos Participantes:
Piano: João Donato e Antonio Adolfo
Violão: Chiquito Braga, Roberto Menescal e Perinho Albuquerque
Órgão: Zé Roberto
Viola e Guitarra: Chiquito Braga
Bateria: Enéas Costa e Paulinho Braga
Baixo: Fernando Leporace, Luizão, Novelli, Gabriel e Perinho Albuquerque
Acordeom: Dominguinhos
Percussão: Bira da Silva e Aladim
Faixas:1 Vatapá (Dorival Caymmi), 2 Festa de rua (Dorival Caymmi), 3 Nem eu (Dorival Caymmi), 4 Pescaria (Canoeiro) (Dorival Caymmi), 5 O vento (Dorival Caymmi), 6 Rainha do mar (Dorival Caymmi), 7 Só louco (Dorival Caymmi), 8 São Salvador (Dorival Caymmi), 9 Peguei um ita no norte(Dorival Caymmi), 10 Dois de fevereiro(Dorival Caymmi)
Adeus a Dorival Caymmi
O Brasil ficou mais triste em agosto de 2008. Morreu Dorival Caymmi. O mestre de voz grave, sorriso bonachão, ar indolente, figura doce e sensível, calou-se.
Dorival Caymmi era o último representante dos desbravadores da nova Bahia que se deslumbra nos dias atuais. Nasceu em 1914, em uma Salvador negra na cor e na população, branca no preconceito e nas minorias, mas pulsante nos seus sons e imagens. A Bahia do jovem Dorival Caymmi era aquela que proibia os tambores dos terreiros, chegando mesmo a prender quem ousasse a praticar ou professar as religiões africanas. Foi das letras de Jorge Amado e do canto de Dorival Caymmi que a Bahia negra emergiu, que a Bahia e o candomblé tornaram-se moda, e hoje são conhecidos em todo o país.
Dorival Caymmi foi buscar no mar a inspiração para a sua poesia. Porque o mar é de uma imensidão aparentemente simples, mas é nele que se reflete a promessa de uma alma e de que não estamos sós, que deuses de um Deus acenam na quebrada das ondas na praia. A MPB deve muito a este homem, que percorreu com a sua música décadas da nossa história, foi cantado por Carmem Miranda, esteve presente no primeiro disco de João Gilberto, no arremate da carreira de Gal Costa, na voz de Maria Creuza, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Caetano Veloso, e tantos outros baianos. Ele era o pai de todos eles, o senhor das melodias da sua Bahia. Traduziu o mar de Jorge Amado nas notas da sua música. Rimou “
Gabriela, Cravo e Canela” com a MPB. Mesmo longe, era na sua Bahia que encontrava a inspiração.
“Ai, ai que saudade eu tenho da Bahia
Ai, se eu escutasse o que mamãe dizia
Bem, não vá deixar a sua mãe aflita
A gente faz o que o coração dita
Mas esse mundo é feito de maldade e ilusão"
Mas a Bahia inspiradora tornou-se pequena para este homem, estava escrito que ele conquistaria o Brasil. E foi o que fez, desceu do nordeste para o Brasil. Conquistou com as suas canções do mar, as suas mulheres sensuais e a cheirar a um universo
colorido, quem não se apaixonou por sua “
Marina” de rosto pintado? Ou pela sua “
Dora” a deslumbrar quando passava e acendia os clarins de todos nós. Voz grave, de uma época em que o cantor precisava ter mais do que conhecimentos vocais e produção de
marketing para vingar na MPB. Voz poderosa, quase agreste, olhar sorridente, homem gentil, Caymmi era mais que um cantor, era um cantador, que nos deixa, tal qual Elvis Presley, em um 16 de agosto.
Minha jangada vai sair pro mar
Vou trabalhar meu bem querer
Se Deus quiser quando eu voltar do mar
Um peixe bom eu vou trazer
Meus companheiros também vão voltar
E a Deus do céu vamos agradecer
Caymmi foi enterrado longe da sua Bahia, no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, o cemitério das estrelas do Brasil. Estará ao lado de Carmem Miranda. Com certeza no céu já fazem, juntos, uma grande roda de samba, pois doente do pé é que não eram. Foram 94 anos por aqui. Muito pouco para um homem da grandeza artística de Dorival Caymmi, quase nada no vão da existência. Sua música está para sempre cravada na MPB, no imaginário do brasileiro, registrada em mais de 100 canções.
Espreguiça-se Caymmi, segue a imensa lua que se fazia no céu no dia que você partiu, iluminando o mar da sua poesia. Nós só temos a agradecer e aplaudi-lo. Que toquem todos os tambores dos terreiros!
Palmas para Dorival Caymmi!
Se a noite é de lua
A vontade é contar mentira
É se espreguiçar
Deitar na areia da praia
Que acaba onde a vista não pode alcançar
E assim adormece esse homem
Que nunca precisa dormir pra sonhar
Porque não há sonho mais lindo do que sua terra.