Quando, em 1997, foi posta a hipótese do Prêmio Nobel de Literatura ser dado pela primeira vez a um escritor de língua portuguesa, apenas dois nomes foram mencionados como reais candidatos: o do brasileiro Jorge Amado e o do português José Saramago. Jorge Amado acima de ser visto como escritor de língua portuguesa, era tido como latino americano, e o prêmio Nobel já tinha contemplado vários autores da América Latina, como Gabriel Garcia Márquez. Considerando que Portugal encerrava o milênio com grande prestígio político internacional, caberia ao escritor lusitano arrebatar tão cobiçado e inédito prêmio na língua de Camões.
Considerado um dos maiores romancistas português da atualidade, José Saramago é autor das obras: “Memorial do Convento” (1982), “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (1984), “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (1992) e “Todos os Nomes” (1997), dentre outros.
Apesar de ser o romance a sua obra maior, é como contista que vamos analisá-lo aqui. Tomaremos como base os livros “Objecto Quase” (3ª edição - Editorial Caminho - 1986) e “O Conto da Ilha Desconhecida” (1ª edição - Pavilhão de Portugal Expo’98/ Assírio & Alvim - 1997). As incursões de José Saramago através do conto não deixam de ser tão brilhantes quanto às feitas ao romance. José Saramago é o retrato da literatura portuguesa no final de século XX e início do século XXI. Compreender a sua obra é também compreender a história mais recente de Portugal.
Transição de Portugal no Decorrer da Produção da Obra de Saramago
A primeira edição do livro de contos, “Objecto Quase”, data de 1978. Tendo publicado os seus primeiros livros na segunda metade da década de sessenta, será na década seguinte que a carreira do escritor tomará um novo fôlego, e, o reconhecimento maior, de público e crítica, virá na década de oitenta.
A obra de José Saramago faz-se imprescindível no fim da ditadura de Salazar, atravessa a Revolução dos Cravos, em 25 de Abril de 1974, passando pelo período de transição dos primeiros anos da restauração da democracia aos anos da adesão de Portugal à Comunidade Européia. Em 1968 o estado de saúde de António Salazar era grave. Uma queda afastaria o ditador do poder até a sua morte, dois anos depois. O regime estava podre e esgotado. Surgia Marcelo Caetano como o homem que deveria fazer a transição do regime. Mas por medo ou por vontade da história, não o fez. Serão os militares a restituírem a democracia e a enterrar de vez antigo regime, em 1974.
A década de setenta foi profundamente abalada pela crise do petróleo, pelo domínio árabe do ouro negro. Também a Guerra do Vietnã chegava ao fim de uma maneira humilhante para os Estados Unidos, longe de alcançar os resultados da Guerra da Coréia. A Guerra Fria assumia outras batalhas, a chamada “Guerra das Estrelas” dos anos oitenta. Portugal deixava a África e encerrava a Guerra Colonial, procurando um caminho para a Europa. Em 1986 é feita a adesão à Comunidade Econômica Européia (CEE), atual União Européia. Em 1985 o arquiteto Tomás Taveira dá a Lisboa as famosas Torres das Amoreiras, a paisagem da cidade muda, dando os primeiros passos para a invasão dos hipermercados do fim dos anos oitenta. Portugal estava pronto para entrar de vez na Europa, concretizando a adesão às normas e aos moldes da economia do oeste europeu nos anos noventa.
A Metonímia de Salazar
“Objecto Quase” é uma síntese crítica e bem elaborada que descreve a transição do Estado Novo e os primeiros tempos pós 25 de Abril. Aqui José Saramago revela-se um crítico social mordaz, com um teor político acentuado, quase a indagar a história do país. O primeiro conto do livro, “Cadeira”, é o reflexo do fim de um ciclo. No conto, através da descrição lenta, elaborada, quase científica da queda de uma cadeira que, por ter sido indolentemente corroída pelos bichos da madeira (representação simbólica da corrupção do sistema antigo), faz com que o velho ditador (Salazar) caia e frature o crânio. O ditador é socorrido por sua fiel governanta Eva (outra coincidência histórica? Não, era a própria Maria, que acompanhara e servira Salazar nas décadas que esteve no poder). A análise de José Saramago é, como já disse, mordaz, irônica, quase sarcástica, quase que a cobrar as dívidas da história:
“O corpo ainda aqui está, e estaria por todo o tempo que quiséssemos. Aqui, na cabeça, neste sítio onde o cabelo aparece despenteado, é que foi a pancada. À vista, não tem importância. Uma ligeiríssima equimose, como de unha impaciente, que a raiz do cabelo quase esconde, não parece que por aqui a morte possa entrar. Em verdade, já lá está dentro. Que é isto? Iremos nós apiedar-nos do inimigo vencido? É a morte uma desculpa, um perdão, uma esponja, uma lixívia para lavar crimes? O velho abriu agora os olhos e não consegue reconhecer-nos, o que só a ele espanta, mas a nós não, que nos não conhece. Treme-lhe o queixo, quer falar, inquieta-se como ali chegámos, julga-nos autores do atentado. Nada dirá. Pelo canto da boca entreaberta corre-lhe para o queixo um fio de saliva. Que faria a irmã Lúcia neste caso, que faria se aqui estivesse, de joelhos, envolta no seu triplo cheiro de bafio, saias e incenso? Enxugaria reverente a saliva, ou, mais reverente ainda, se inclinaria toda para diante, prosternada, e com a língua apararia a santa secreção, a relíquia, para guardar numa ampola? Não o dirá a história sacra, não o dirá, sabemos, a profana, nem Eva doméstica reparará, coração aflito, na injúria que o velho pratica babando sobre o velho.”
Nota-se no parágrafo a alusão, ainda que simbólica e muito sutil, a personagens ligadas a igreja e à política portuguesa. É o momento de crítica à história, do acerto de contas entre o ditador e o povo submisso, resumidos numa queda de cadeira. Percebe-se neste conto o estilo de narração de José Saramago, a presença do narrador na narração, onde é projetada a sua subjetividade de uma forma objetiva, ou seja, o texto não escapa às intrusões do narrador, as situações narrativas vão das circunstâncias ideológico-culturais que inspiram uma introspecção quase científica. Há uma situação narrativa de relação do autor com a história, José Saramago relata as histórias de uma forma que é estranho a ela, porque não a integra nem integrou como personagem, sendo um narrador heterodiegético. Para melhor explicar o que digo, sito a definição de Carlos Reis em “O Conhecimento da Literatura - Introdução aos Estudos Literários” (Livraria Almedina - 1995), que diz sobre o narrador heterodiegético:
“Estrutura-se uma situação narrativa cujas as linhas de forças são as seguintes: polaridade entre narrador e universo diegético, acentuando-se entre ambos uma alteridade em princípio irredutível; por força dessa polaridade, o narrador heterodiegético tende a adotar uma atitude demiúrgica em relação a história que conta, surgindo dotado de uma autoridade que normalmente não é posta em causa; predominantemente, o narrador heterodiegético exprime-se na terceira pessoa, traduzindo esse registro a alteridade mencionada.”
Realidades Contemporâneas
Compreendendo melhor a forma narrativa, voltamos ao universo de José Saramago, através do seu conto “Embargo”. Nele encontramos a preocupação social dos anos setenta com a maior crise da década, a do petróleo. A personagem principal é um homem que ao sair de casa, tem uma obsessão: pôr gasolina no carro, pois esta poderia faltar devido a um embargo. A sua obsessão pelo carro é tamanha que se torna uma espécie de fábula paranóica. O homem passa toda a manhã nas filas das bombas de gasolina, para que não lhe falte o precioso combustível. No meio da obsessão torna-se prisioneiro do próprio carro, como uma Juno presa ao trono de Vulcano, ele não consegue sair do automóvel. Está preso pela gabardina, pela roupa, pela pele. Começa a andar por estradas desesperadamente, a tentar libertar-se, até acabar a gasolina. Só a morte liberta-o do automóvel:
“Hora e meia mais tarde estava a atestar, e três minutos depois arrancava. Um pouco preocupado porque o empregado lhe dissera, sem qualquer expressão particular na voz, de tão repetida a informação, que não haveria ali gasolina antes de quinze dias. No banco, ao lado, o jornal anunciava as restrições rigorosas. Enfim; do mal o menos, o depósito estava cheio. Que faria? Ir directamente ao escritório, ou passar primeiro por casa de um cliente, a ver se apanharia a encomenda? Escolheu o cliente. Era preferível justificar o atraso com a visita, a ter de dizer que passara hora e meia na fila da gasolina quando lhe restava meio depósito. O carro estava óptimo. Nunca se sentira tão bem a conduzi-lo. Ligou a rádio e apanhou um noticiário. Notícias cada vez piores. Estes árabes. Este estúpido embargo.”
Talvez a narrativa que mais descreve a mudança dos tempos, os jogos de poder, a política como centralização dos meios econômicos, as grandes obras e as cidades que giram em torno delas, seja a do conto “Refluxo”. Neste texto deparamos-nos com um rei louco, que quer construir um único e mega cemitério no seu reino. Quando o faz, transporta para lá todos os cadáveres dos outros cemitérios. Depois parte à procura desesperada de todos os corpos enterrados pelo país, em quintais, em valas, em capelas, em montanhas. Terminada a grande obra, toda a economia do país gira em torno do cemitério. À sua volta desenvolve-se quatro cidades. Aqui a ironia ao progresso desenfreado, ao comércio ao redor dos grandes santuários. Talvez o mais irônico e sarcástico dos contos de José Saramago, mas de um humor mórbido irresistível. Ao ler este conto é como se estivéssemos a retratar a nova sociedade de consumo que viria com os anos noventa e a tudo esmagaria, sem nenhum escrúpulo:
“(..) A fiscalização andava então muito menos activa e abundavam funcionários que consentiam em deixar-se subornar. O serviço geral de estatística informou, de acordo com os registos oficiais, que estava a verificar-se uma acentuada baixa da mortalidade, o que, logicamente, começou por ser levado a crédito da política sanitária do governo, sob a suprema autoridade do rei. As quatro cidades do cemitério sentiram as consequências do menor fluxo de mortos. Certos negócios sofreram prejuízos, houve não poucas falências, algumas fraudulentas, e quando enfim se reconheceu que a real política de saúde, por excelente que fosse, não ia a caminho de conceder a imortalidade, foi baixado um decreto ferocíssimo para reconduzir as populações à obediência. Não serviu de muito: após um breve fogacho de animação, as cidades estagnaram e decaíram. Devagar, tão devagar, o reino começou a repovoar-se de mortos. O grande cemitério central, por fim, recebia apenas cadáveres das quatro cidades circundantes, cada vez mais abandonadas, mais silenciosas. A isto, porém, já o rei não assistiu.”
Menos interessante é o conto “Coisas”. A narrativa mais parece um filme de Stanley Kubrik, ou um conto mal elaborado de George Orwell. Uma ficção pobre e pouco convincente, futurista, mas que não revela o escritor engenhoso e talentoso que é José Saramago, limita-se a escrever um filme que já se viu. Ainda encontramos outros contos como “Centauro” e “Desforra”, este último mostra-nos a repressão sexual transposta para o ato milenar da castração de animais, aqui representado por um porco. Chegamos ao fim do livro com uma estranheza de idéias, mas com a sensação de que foram poucas as páginas, que leríamos quantas mais fossem.
Um Conto Feito Para a Expo’98
Com a realização da Feira Internacional da Expo’98 em Lisboa, em 1998, que trazia a temática dos oceanos, e as comemorações dos 500 anos dos descobrimentos marítimos portugueses, José Saramago presenteou-nos com “O Conto da Ilha Desconhecida”.
Novamente vamos mergulhar no seu universo fantástico, crítico aguçado do sistema em que estamos inseridos. Surge-nos retratado um reino burocrático e de fantasia, onde um homem persegue o seu sonho e o seu ideal: encontrar a Ilha Desconhecida. Num discurso brilhante, mais amadurecido em relação a “Objecto Quase”, a personagem convence o governo a dar-lhe um barco. Também convence algumas pessoas, entre elas a mulher da limpeza do reino, a acompanhá-lo nessa aventura quase utópica e sem destino:
“(...) Então o homem trancou a roda do leme e desceu ao campo com a foice na mão, e foi quando tinha cortado as primeiras espigas que viu uma sombra ao lado da sua sombra. Acordou abraçado à mulher da limpeza, e ela a ele, confundidos os corpos, confundidos os beliches, que não se sabe se este é o de bombordo ou o de estibordo. Depois, mal o sol acabou de nascer, o homem e a mulher foram pintar a proa do barco, de um lado e do outro, em letras brancas, o nome que ainda faltava dar à caravela. Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma.”
Mas como todo sonho tem o seu preço, aos poucos o homem é abandonado por todos, só lhe fica a mulher. O autor revela-nos uma história não só de sonhos utópicos, mas também de amor. Com o homem parte a mulher da limpeza, os dois seguem na busca dos sonhos, o amor já o têm. A ilha desconhecida era o grande sonho português do fim do segundo milênio: o mergulho na Expo’98. Um sonho que fechava o século XX no universo histórico lusitano de uma forma espetacular, que rumava para o terceiro milênio a refletir um futuro que trouxesse de volta a época da grande aventura, a época dos descobrimentos, época que a nação sonhava com o Quinto Império. Com a Expo’98 vinha a segurança do reencontro de Portugal com a Europa. A esperança de um mercado único, de uma moeda única, de um futuro que espelhasse pouco o passado mais recente, do qual voltaram cidadãos desfeitos pela guerra colonial, física e mentalmente. É justamente o não esquecimento de uma história recente, nem sempre gloriosa, porque a história também é feita de erros e humilhações, que a obra de José Saramago muitas vezes atira-nos à cara. José Saramago conduziu neste conto os nossos sonhos rumo à ficção do século XXI.
José Saramago
Um dos maiores escritores de língua portuguesa, José de Sousa Saramago tem no seu registro de nascimento a data de 18 de novembro de 1922, apesar de ter nascido no dia 16 daquele mês, na aldeia da Azinhaga, concelho da Golegã. Ainda criança, aos três anos, mudou com a família para Lisboa, onde viveu a maior parte da sua vida.
Por dificuldades econômicas, Saramago interrompeu os estudos na capital portuguesa, exercendo, durante a vida, várias profissões, entre elas: serralheiro mecânico, funcionário da saúde, desenhista, editor, tradutor e jornalista.
Apesar de ter publicado o seu primeiro livro, o romance "Terra do Pecado", em 1947, só voltaria a publicar outra obra em 1966. Seu reconhecimento como escritor viria com o romance “Memorial do Convento”, de 1982.
José Saramago ficou conhecido por suas posições de esquerda, militante histórico do Partido Comunista Português, por seu ateísmo declarado, convicções que sempre refletiram na sua obra.
Dono de uma literatura muitas vezes polêmica, foi o primeiro e único escritor de língua portuguesa a ser galardoado com o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998. Atualmente José Saramago vive em Lanzarote, Ilhas Canárias, casado com a espanhola Pilar Del Rio.
OBRA:
Poesia:
1966 – Os Poemas Possíveis
1970 – Provavelmente Alegria
1975 – O Ano de 1993
Romance:
1947 – Terra do Pecado
1977 – Manual de Pintura e Caligrafia
1980 – Levantado do Chão
1982 – Memorial do Convento
1984 – O Ano da Morte de Ricardo Reis
1986 – A Jangada de Pedra
1989 – História do Cerco de Lisboa
1991 – O Evangelho Segundo Jesus Cristo
1995 – Ensaio Sobre a Cegueira
1996 – A Bagagem do Viajante
1997 – Cadernos de Lanzarote
1997 – Todos os Nomes
2000 – A Caverna
2002 – O Homem Duplicado
2004 – Ensaio Sobre a Lucidez
2005 – As Intermitências da Morte
2006 – As Pequenas Memórias
Contos:
1978 – Objecto Quase
1979 – Poética dos Cinco Sentidos – O Ouvido
1997 – O Conto da Ilha Desconhecida
Crônicas:
1971 – Deste Mundo e do Outro
1973 – A Bagagem do Viajante
1974 – As Opiniões Que o DL Teve
1976 – Os Apontamentos
Peças de Teatro:
1979 – A Noite
1980 – Que Farei Com Este Livro?
1987 – A Segunda Vida de Francisco de Assis
1993 – In Nomine Dei
2005 – Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido
Viagens:
1981 – Viagem a Portugal
CRONOLOGIA:
1922 – Nasce a 16 ou 18 de novembro, na Azinhaga, Golegã, Portugal, José Saramago.
1924 – Muda-se com a família para Lisboa.
1944 – Casa-se com Ilda Reis.
1947 – Nasce-lhe a filha Violante. Publica o seu primeiro livro, o romance “Terra do Pecado”.
1955 – Para aumentar os rendimentos, faz traduções de Hegel, Tolstoi e Baudelaire.
1966 – Publica o segundo livro, “Os Poemas Possíveis”.
1970 – Separa-se de Ilda Reis.
1972 – Faz parte da redação do jornal Diário de Lisboa, como comentarista político.
1975 – Torna-se, de abril a novembro, diretor-adjunto do jornal Diário de Notícias.
1976 – Passa a viver exclusivamente do seu trabalho literário.
1982 – Publica o romance “Memorial do Convento”, conquistando definitivamente a crítica e os leitores.
1988 – Casa-se com a jornalista e tradutora espanhola María Del Pilar Del Río Sánchez.
1995 – Galardoado com o Prêmio Camões pelo conjunto da sua obra.
1998 – Galardoado com o Prêmio Nobel de Literatura.
2003 – Em visita ao Brasil, declara ao jornal O Globo, que os judeus não mereciam simpatia pelo que passaram na época do Holocausto.
2007 – Defende, em entrevista ao Diário de Notícias, que Portugal deveria integrar-se à Espanha.
Considerado um dos maiores romancistas português da atualidade, José Saramago é autor das obras: “Memorial do Convento” (1982), “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (1984), “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (1992) e “Todos os Nomes” (1997), dentre outros.
Apesar de ser o romance a sua obra maior, é como contista que vamos analisá-lo aqui. Tomaremos como base os livros “Objecto Quase” (3ª edição - Editorial Caminho - 1986) e “O Conto da Ilha Desconhecida” (1ª edição - Pavilhão de Portugal Expo’98/ Assírio & Alvim - 1997). As incursões de José Saramago através do conto não deixam de ser tão brilhantes quanto às feitas ao romance. José Saramago é o retrato da literatura portuguesa no final de século XX e início do século XXI. Compreender a sua obra é também compreender a história mais recente de Portugal.
Transição de Portugal no Decorrer da Produção da Obra de Saramago
A primeira edição do livro de contos, “Objecto Quase”, data de 1978. Tendo publicado os seus primeiros livros na segunda metade da década de sessenta, será na década seguinte que a carreira do escritor tomará um novo fôlego, e, o reconhecimento maior, de público e crítica, virá na década de oitenta.
A obra de José Saramago faz-se imprescindível no fim da ditadura de Salazar, atravessa a Revolução dos Cravos, em 25 de Abril de 1974, passando pelo período de transição dos primeiros anos da restauração da democracia aos anos da adesão de Portugal à Comunidade Européia. Em 1968 o estado de saúde de António Salazar era grave. Uma queda afastaria o ditador do poder até a sua morte, dois anos depois. O regime estava podre e esgotado. Surgia Marcelo Caetano como o homem que deveria fazer a transição do regime. Mas por medo ou por vontade da história, não o fez. Serão os militares a restituírem a democracia e a enterrar de vez antigo regime, em 1974.
A década de setenta foi profundamente abalada pela crise do petróleo, pelo domínio árabe do ouro negro. Também a Guerra do Vietnã chegava ao fim de uma maneira humilhante para os Estados Unidos, longe de alcançar os resultados da Guerra da Coréia. A Guerra Fria assumia outras batalhas, a chamada “Guerra das Estrelas” dos anos oitenta. Portugal deixava a África e encerrava a Guerra Colonial, procurando um caminho para a Europa. Em 1986 é feita a adesão à Comunidade Econômica Européia (CEE), atual União Européia. Em 1985 o arquiteto Tomás Taveira dá a Lisboa as famosas Torres das Amoreiras, a paisagem da cidade muda, dando os primeiros passos para a invasão dos hipermercados do fim dos anos oitenta. Portugal estava pronto para entrar de vez na Europa, concretizando a adesão às normas e aos moldes da economia do oeste europeu nos anos noventa.
A Metonímia de Salazar
“Objecto Quase” é uma síntese crítica e bem elaborada que descreve a transição do Estado Novo e os primeiros tempos pós 25 de Abril. Aqui José Saramago revela-se um crítico social mordaz, com um teor político acentuado, quase a indagar a história do país. O primeiro conto do livro, “Cadeira”, é o reflexo do fim de um ciclo. No conto, através da descrição lenta, elaborada, quase científica da queda de uma cadeira que, por ter sido indolentemente corroída pelos bichos da madeira (representação simbólica da corrupção do sistema antigo), faz com que o velho ditador (Salazar) caia e frature o crânio. O ditador é socorrido por sua fiel governanta Eva (outra coincidência histórica? Não, era a própria Maria, que acompanhara e servira Salazar nas décadas que esteve no poder). A análise de José Saramago é, como já disse, mordaz, irônica, quase sarcástica, quase que a cobrar as dívidas da história:
“O corpo ainda aqui está, e estaria por todo o tempo que quiséssemos. Aqui, na cabeça, neste sítio onde o cabelo aparece despenteado, é que foi a pancada. À vista, não tem importância. Uma ligeiríssima equimose, como de unha impaciente, que a raiz do cabelo quase esconde, não parece que por aqui a morte possa entrar. Em verdade, já lá está dentro. Que é isto? Iremos nós apiedar-nos do inimigo vencido? É a morte uma desculpa, um perdão, uma esponja, uma lixívia para lavar crimes? O velho abriu agora os olhos e não consegue reconhecer-nos, o que só a ele espanta, mas a nós não, que nos não conhece. Treme-lhe o queixo, quer falar, inquieta-se como ali chegámos, julga-nos autores do atentado. Nada dirá. Pelo canto da boca entreaberta corre-lhe para o queixo um fio de saliva. Que faria a irmã Lúcia neste caso, que faria se aqui estivesse, de joelhos, envolta no seu triplo cheiro de bafio, saias e incenso? Enxugaria reverente a saliva, ou, mais reverente ainda, se inclinaria toda para diante, prosternada, e com a língua apararia a santa secreção, a relíquia, para guardar numa ampola? Não o dirá a história sacra, não o dirá, sabemos, a profana, nem Eva doméstica reparará, coração aflito, na injúria que o velho pratica babando sobre o velho.”
Nota-se no parágrafo a alusão, ainda que simbólica e muito sutil, a personagens ligadas a igreja e à política portuguesa. É o momento de crítica à história, do acerto de contas entre o ditador e o povo submisso, resumidos numa queda de cadeira. Percebe-se neste conto o estilo de narração de José Saramago, a presença do narrador na narração, onde é projetada a sua subjetividade de uma forma objetiva, ou seja, o texto não escapa às intrusões do narrador, as situações narrativas vão das circunstâncias ideológico-culturais que inspiram uma introspecção quase científica. Há uma situação narrativa de relação do autor com a história, José Saramago relata as histórias de uma forma que é estranho a ela, porque não a integra nem integrou como personagem, sendo um narrador heterodiegético. Para melhor explicar o que digo, sito a definição de Carlos Reis em “O Conhecimento da Literatura - Introdução aos Estudos Literários” (Livraria Almedina - 1995), que diz sobre o narrador heterodiegético:
“Estrutura-se uma situação narrativa cujas as linhas de forças são as seguintes: polaridade entre narrador e universo diegético, acentuando-se entre ambos uma alteridade em princípio irredutível; por força dessa polaridade, o narrador heterodiegético tende a adotar uma atitude demiúrgica em relação a história que conta, surgindo dotado de uma autoridade que normalmente não é posta em causa; predominantemente, o narrador heterodiegético exprime-se na terceira pessoa, traduzindo esse registro a alteridade mencionada.”
Realidades Contemporâneas
Compreendendo melhor a forma narrativa, voltamos ao universo de José Saramago, através do seu conto “Embargo”. Nele encontramos a preocupação social dos anos setenta com a maior crise da década, a do petróleo. A personagem principal é um homem que ao sair de casa, tem uma obsessão: pôr gasolina no carro, pois esta poderia faltar devido a um embargo. A sua obsessão pelo carro é tamanha que se torna uma espécie de fábula paranóica. O homem passa toda a manhã nas filas das bombas de gasolina, para que não lhe falte o precioso combustível. No meio da obsessão torna-se prisioneiro do próprio carro, como uma Juno presa ao trono de Vulcano, ele não consegue sair do automóvel. Está preso pela gabardina, pela roupa, pela pele. Começa a andar por estradas desesperadamente, a tentar libertar-se, até acabar a gasolina. Só a morte liberta-o do automóvel:
“Hora e meia mais tarde estava a atestar, e três minutos depois arrancava. Um pouco preocupado porque o empregado lhe dissera, sem qualquer expressão particular na voz, de tão repetida a informação, que não haveria ali gasolina antes de quinze dias. No banco, ao lado, o jornal anunciava as restrições rigorosas. Enfim; do mal o menos, o depósito estava cheio. Que faria? Ir directamente ao escritório, ou passar primeiro por casa de um cliente, a ver se apanharia a encomenda? Escolheu o cliente. Era preferível justificar o atraso com a visita, a ter de dizer que passara hora e meia na fila da gasolina quando lhe restava meio depósito. O carro estava óptimo. Nunca se sentira tão bem a conduzi-lo. Ligou a rádio e apanhou um noticiário. Notícias cada vez piores. Estes árabes. Este estúpido embargo.”
Talvez a narrativa que mais descreve a mudança dos tempos, os jogos de poder, a política como centralização dos meios econômicos, as grandes obras e as cidades que giram em torno delas, seja a do conto “Refluxo”. Neste texto deparamos-nos com um rei louco, que quer construir um único e mega cemitério no seu reino. Quando o faz, transporta para lá todos os cadáveres dos outros cemitérios. Depois parte à procura desesperada de todos os corpos enterrados pelo país, em quintais, em valas, em capelas, em montanhas. Terminada a grande obra, toda a economia do país gira em torno do cemitério. À sua volta desenvolve-se quatro cidades. Aqui a ironia ao progresso desenfreado, ao comércio ao redor dos grandes santuários. Talvez o mais irônico e sarcástico dos contos de José Saramago, mas de um humor mórbido irresistível. Ao ler este conto é como se estivéssemos a retratar a nova sociedade de consumo que viria com os anos noventa e a tudo esmagaria, sem nenhum escrúpulo:
“(..) A fiscalização andava então muito menos activa e abundavam funcionários que consentiam em deixar-se subornar. O serviço geral de estatística informou, de acordo com os registos oficiais, que estava a verificar-se uma acentuada baixa da mortalidade, o que, logicamente, começou por ser levado a crédito da política sanitária do governo, sob a suprema autoridade do rei. As quatro cidades do cemitério sentiram as consequências do menor fluxo de mortos. Certos negócios sofreram prejuízos, houve não poucas falências, algumas fraudulentas, e quando enfim se reconheceu que a real política de saúde, por excelente que fosse, não ia a caminho de conceder a imortalidade, foi baixado um decreto ferocíssimo para reconduzir as populações à obediência. Não serviu de muito: após um breve fogacho de animação, as cidades estagnaram e decaíram. Devagar, tão devagar, o reino começou a repovoar-se de mortos. O grande cemitério central, por fim, recebia apenas cadáveres das quatro cidades circundantes, cada vez mais abandonadas, mais silenciosas. A isto, porém, já o rei não assistiu.”
Menos interessante é o conto “Coisas”. A narrativa mais parece um filme de Stanley Kubrik, ou um conto mal elaborado de George Orwell. Uma ficção pobre e pouco convincente, futurista, mas que não revela o escritor engenhoso e talentoso que é José Saramago, limita-se a escrever um filme que já se viu. Ainda encontramos outros contos como “Centauro” e “Desforra”, este último mostra-nos a repressão sexual transposta para o ato milenar da castração de animais, aqui representado por um porco. Chegamos ao fim do livro com uma estranheza de idéias, mas com a sensação de que foram poucas as páginas, que leríamos quantas mais fossem.
Um Conto Feito Para a Expo’98
Com a realização da Feira Internacional da Expo’98 em Lisboa, em 1998, que trazia a temática dos oceanos, e as comemorações dos 500 anos dos descobrimentos marítimos portugueses, José Saramago presenteou-nos com “O Conto da Ilha Desconhecida”.
Novamente vamos mergulhar no seu universo fantástico, crítico aguçado do sistema em que estamos inseridos. Surge-nos retratado um reino burocrático e de fantasia, onde um homem persegue o seu sonho e o seu ideal: encontrar a Ilha Desconhecida. Num discurso brilhante, mais amadurecido em relação a “Objecto Quase”, a personagem convence o governo a dar-lhe um barco. Também convence algumas pessoas, entre elas a mulher da limpeza do reino, a acompanhá-lo nessa aventura quase utópica e sem destino:
“(...) Então o homem trancou a roda do leme e desceu ao campo com a foice na mão, e foi quando tinha cortado as primeiras espigas que viu uma sombra ao lado da sua sombra. Acordou abraçado à mulher da limpeza, e ela a ele, confundidos os corpos, confundidos os beliches, que não se sabe se este é o de bombordo ou o de estibordo. Depois, mal o sol acabou de nascer, o homem e a mulher foram pintar a proa do barco, de um lado e do outro, em letras brancas, o nome que ainda faltava dar à caravela. Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma.”
Mas como todo sonho tem o seu preço, aos poucos o homem é abandonado por todos, só lhe fica a mulher. O autor revela-nos uma história não só de sonhos utópicos, mas também de amor. Com o homem parte a mulher da limpeza, os dois seguem na busca dos sonhos, o amor já o têm. A ilha desconhecida era o grande sonho português do fim do segundo milênio: o mergulho na Expo’98. Um sonho que fechava o século XX no universo histórico lusitano de uma forma espetacular, que rumava para o terceiro milênio a refletir um futuro que trouxesse de volta a época da grande aventura, a época dos descobrimentos, época que a nação sonhava com o Quinto Império. Com a Expo’98 vinha a segurança do reencontro de Portugal com a Europa. A esperança de um mercado único, de uma moeda única, de um futuro que espelhasse pouco o passado mais recente, do qual voltaram cidadãos desfeitos pela guerra colonial, física e mentalmente. É justamente o não esquecimento de uma história recente, nem sempre gloriosa, porque a história também é feita de erros e humilhações, que a obra de José Saramago muitas vezes atira-nos à cara. José Saramago conduziu neste conto os nossos sonhos rumo à ficção do século XXI.
José Saramago
Um dos maiores escritores de língua portuguesa, José de Sousa Saramago tem no seu registro de nascimento a data de 18 de novembro de 1922, apesar de ter nascido no dia 16 daquele mês, na aldeia da Azinhaga, concelho da Golegã. Ainda criança, aos três anos, mudou com a família para Lisboa, onde viveu a maior parte da sua vida.
Por dificuldades econômicas, Saramago interrompeu os estudos na capital portuguesa, exercendo, durante a vida, várias profissões, entre elas: serralheiro mecânico, funcionário da saúde, desenhista, editor, tradutor e jornalista.
Apesar de ter publicado o seu primeiro livro, o romance "Terra do Pecado", em 1947, só voltaria a publicar outra obra em 1966. Seu reconhecimento como escritor viria com o romance “Memorial do Convento”, de 1982.
José Saramago ficou conhecido por suas posições de esquerda, militante histórico do Partido Comunista Português, por seu ateísmo declarado, convicções que sempre refletiram na sua obra.
Dono de uma literatura muitas vezes polêmica, foi o primeiro e único escritor de língua portuguesa a ser galardoado com o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998. Atualmente José Saramago vive em Lanzarote, Ilhas Canárias, casado com a espanhola Pilar Del Rio.
OBRA:
Poesia:
1966 – Os Poemas Possíveis
1970 – Provavelmente Alegria
1975 – O Ano de 1993
Romance:
1947 – Terra do Pecado
1977 – Manual de Pintura e Caligrafia
1980 – Levantado do Chão
1982 – Memorial do Convento
1984 – O Ano da Morte de Ricardo Reis
1986 – A Jangada de Pedra
1989 – História do Cerco de Lisboa
1991 – O Evangelho Segundo Jesus Cristo
1995 – Ensaio Sobre a Cegueira
1996 – A Bagagem do Viajante
1997 – Cadernos de Lanzarote
1997 – Todos os Nomes
2000 – A Caverna
2002 – O Homem Duplicado
2004 – Ensaio Sobre a Lucidez
2005 – As Intermitências da Morte
2006 – As Pequenas Memórias
Contos:
1978 – Objecto Quase
1979 – Poética dos Cinco Sentidos – O Ouvido
1997 – O Conto da Ilha Desconhecida
Crônicas:
1971 – Deste Mundo e do Outro
1973 – A Bagagem do Viajante
1974 – As Opiniões Que o DL Teve
1976 – Os Apontamentos
Peças de Teatro:
1979 – A Noite
1980 – Que Farei Com Este Livro?
1987 – A Segunda Vida de Francisco de Assis
1993 – In Nomine Dei
2005 – Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido
Viagens:
1981 – Viagem a Portugal
CRONOLOGIA:
1922 – Nasce a 16 ou 18 de novembro, na Azinhaga, Golegã, Portugal, José Saramago.
1924 – Muda-se com a família para Lisboa.
1944 – Casa-se com Ilda Reis.
1947 – Nasce-lhe a filha Violante. Publica o seu primeiro livro, o romance “Terra do Pecado”.
1955 – Para aumentar os rendimentos, faz traduções de Hegel, Tolstoi e Baudelaire.
1966 – Publica o segundo livro, “Os Poemas Possíveis”.
1970 – Separa-se de Ilda Reis.
1972 – Faz parte da redação do jornal Diário de Lisboa, como comentarista político.
1975 – Torna-se, de abril a novembro, diretor-adjunto do jornal Diário de Notícias.
1976 – Passa a viver exclusivamente do seu trabalho literário.
1982 – Publica o romance “Memorial do Convento”, conquistando definitivamente a crítica e os leitores.
1988 – Casa-se com a jornalista e tradutora espanhola María Del Pilar Del Río Sánchez.
1995 – Galardoado com o Prêmio Camões pelo conjunto da sua obra.
1998 – Galardoado com o Prêmio Nobel de Literatura.
2003 – Em visita ao Brasil, declara ao jornal O Globo, que os judeus não mereciam simpatia pelo que passaram na época do Holocausto.
2007 – Defende, em entrevista ao Diário de Notícias, que Portugal deveria integrar-se à Espanha.