Segunda-feira, 28 de Julho de 2008

TRÊS IMAGENS: RETRATOS DA MULHER E DO SEU TEMPO

 

O que se vê através da imagem de uma objetiva? Este artigo é uma incursão no universo da imagem, sua função como registro de um momento histórico. Imagens que à primeira vista nos pode parecer um instante fragmentado, definitivo e incontestável, que desnudam uma moral ocidental nem sempre coerente com a realidade de todos os povos.
Três imagens fotográficas distintas, que têm em comum a mulher como personagem principal. Mulheres de universos ímpares, mas comuns pela sombra tétrica e aviltante da guerra como pano de fundo, sendo essa guerra uma condição de caráter social, religioso ou civil. Mulheres antagônicas que traduzem a diversidade cultural do seu tempo. Aqui imortalizadas pelas lentes documentais da objetiva, arrebatadas do cotidiano de suas vidas na planura do tempo, passando de personagens de nações a vítimas da humanidade. Mulheres que nunca se encontrariam, a não ser para ajustar contas com o seu tempo.
Na primeira fotografia temos uma mulher que foi a princesa de um dos maiores impérios ocidentais. Na segunda imagem descobrimos uma mãe muçulmana convivendo com a intolerância fundamentalista do seu país, e finalmente, na terceira imagem, temos uma mulher africana, sem identificação de nação ou país, apenas uma mulher africana, imagem de um continente devastado pelas pestilências e pela fome. Reduzida aos contrastes culturais de uma realidade decrépita ao ocidente.
Nas três fotografias o registro deixa de ser imagem e torna-se documento que desnuda não a mulher, mas a sua condição diante da tragédia, da guerra, da sociedade, que vai muito além do seu destino. A imagem torna-se a denuncia de um mundo que sabemos que existe, mas nem sempre o queremos compreender ou olhar para ele.


Primeira Imagem

A FOTOGRAFIA: Princesa Diana com menina vítima das minas terrestres em Angola. - Photo Lusa. - A fotografia foi feita no início de 1997, durante a viagem da então ex-princesa de Gales, Diana Spencer, recém separada do marido, o príncipe Charles, à Angola, país do sudoeste africano. Por quase três décadas Angola viveu uma guerra civil que matou grande parte da população e levou o país à miséria total. Finda a guerra o país sofre com outro problema grave, as milhares de minas terrestres enterradas por todo o território. As minas continuam a matar ou a mutilar os angolanos. Nessa visita a princesa Diana sensibilizou o mundo para o problema das minas terrestres em Angola. Diana seria vítima fatal nesse mesmo ano de um acidente automobilístico.

A IMAGEM: A princesa e a menina mutilada de guerra. Dois sorrisos singelos para o registro da objetiva. Cores suaves, harmoniosas. Carinhosamente a princesa segura a bengala da menina. Bengala feita de madeira, improvisada diante da penúria da guerra. Um encontro que poderia ser uma ilusão de momento, a menina pobre e mutilada ao lado da bela princesa, um lapso de magia registrado no tempo. Duas mulheres diferentes na cor, na nacionalidade, no vestir, na forma de pensar e traduzir a vida. Um encontro para cumprir a agenda da princesa em suas inúmeras visitas de cunho social e filantrópico. A imagem nos mostra um momento de sublime felicidade daquela menina, quase mulher, sem direito à adolescência ou à fama, mas que tem o seu momento de merecida paz ao lado da princesa famosa. Um momento de carinho em uma vida tão desprotegida socialmente. Oposta à menina mutilada, reluz uma princesa solidária, em um momento de reflexão. Brincos e relógio da princesa contrastam com a roupa colorida e simples da menina. A imagem é doce, contemplativa, atemporal. Apesar da falta da perna, a menina mostra um semblante sem dor, sem rancor ou mágoa, um semblante altivo, orgulhosa por estar ao lado da figura carismática e lendária da princesa Diana. É como se a bengala segurada pela princesa desse o descanso e o amparo que os horrores da guerra não dão. A nobre e a plebéia. Duas mulheres marcando com a força do destino o seu tempo, a história do ocidente.

ALÉM DA IMAGEM: Além do sublime, do singelo e do sonho, percorreremos a crueza da fotografia. O sabor lancinante da perna substituída por uma bengala de madeira. Dentro do sorriso de cada mulher nos deparamos com os contrastes acentuados de dois mundos. A menina africana, a princesa européia. Dois universos distintos. O continente rico e o continente pobre. A menina-mulher mutilada pela guerra, empobrecida pela escassez de recursos, fruto da exploração de um povo através dos séculos. Na bengala da menina o retrato do fim de uma era, uma esperança fugaz nas mãos do ocidente, aqui revelado no amparo da princesa. A própria princesa, naquele momento também mutilada em sua vida pessoal. Derrubada do seu trono por infidelidades conjugais, pelos olhares famintos das objetivas dos paparazzi que lhe cerceavam os caminhos. Duas mulheres, dois mundos. Durante séculos mundo dos dominados e dos dominantes, do senhor e do escravo, do rico e do pobre, da opulência e da miséria. Mundos que através da imagem, por um curto momento, harmonizam-se e complementam-se. Derrubam dores históricas e diante da sensibilidade da objetiva, transbordam os alicerces da esperança. Um momento de paz na vida de duas mulheres que de formas diferentes, viveram as guerras do seu tempo.

Segunda Imagem



 

A FOTOGRAFIA: Mãe em Bentalha. – Hocine. – Fotografia feita após o massacre no subúrbio de Bentalha, na Argélia, em 1997. No início dos anos 90 do século XX a Argélia viu crescer o movimento dos fundamentalistas islâmicos. Com os fundamentalistas vieram os atentados terroristas e uma guerra civil que banhou de sangue este país do norte da África. Aqui uma mãe muçulmana é mostrada no exato momento que sabe do massacre dos seus filhos. Pouco informativa, porém mais impactante que um fila de cadáveres, a fotografia, realizada em 23 de setembro de 1997 diante de um hospital do subúrbio de Argel, deu a seu autor o World Press Photo, a mais valiosa recompensa internacional em matéria de fotojornalismo: o título da melhor fotografia de 1997.

A IMAGEM: À primeira vista a dor da mulher muçulmana transforma a fotografia em uma pintura renascentista, um quadro pincelado com as cores do desespero e da perda. O olhar perdido da mulher subtraída do que lhe é mais valorizado diante da cultura do seu povo: a família, os filhos. Já não é a figura da mulher na sua essência de fêmea, de uma Eva fora do Éden, mas a figura da mãe, da madona sem os filhos, sacrificados em nome da religião. O seu olhar sem horizonte, fixado no nada da perda, no abandono do ato da maternidade em questão de segundos. A beleza bíblica do seu semblante sacrificado, as vestimentas que refletem a sua religião, os seus costumes. A madona que há muito tomou o corpo da mulher, transformando-a no exemplo do que pode ser a dor da guerra. O que aconteceu a madona de Bentalha? O que aconteceu a essa mulher argelina, inundada de dor depois do massacre de seus entes queridos, cuja foto percorreu o mundo inteiro? Não importa, o primeiro convite da imagem nos remete à dor, ao sacrifício, aos velhos preceitos que nos lembram e nos advertem os evangelhos. A mulher mãe é a expiação máxima do sofrimento humano diante dos ideais perdidos dos filhos. Como uma Maria sem Cristo, uma mãe da Plaza de Mayo sem os filhos desaparecidos, esta madona não interessa para o mundo depois deste momento, mas o que interessa é a sua dor, que é o retrato de uma guerra sem vencedores. A madona com o seu manto e a sua dor, comovendo as cores da imagem, construindo a luz da fotografia para que o mundo percebesse que o ser humano é a maior vítima de si mesmo.

ALÉM DA IMAGEM: Além do manto da madona, da dor da mãe, nosso olhar mais atento percorre a dor de um povo. Nosso olhar desnuda-lhe o manto que a faz quase uma mulher sagrada, para olharmos a mulher que há dentro dela. Quanto mais fixamos os olhar, mais as cores da madona se esvaem. A madona revela a mulher muçulmana, a mulher que diante da subtração e ultraje da sua condição de mãe, esconde dentro de si aquela que amamenta e alimenta o homem fundamentalista. Percorremos o olhar além de um povo que mergulha em uma guerra civil por intolerância religiosa e cultural. Filhos da madona que fazem da miséria de um povo um barril de pólvora preste a explodir, usando do seu flagelo social a religião como fonte de inspiração e justificação de seus atos. O mesmo homem que detonou a bomba do fundamentalismo em seu país, que puxou uma arma, pode ter sido um dos filhos mortos dessa madona. Aqui a dor não tem lado, ela é rasgada diante dos nossos olhos. Aqui não importa quem massacrou, quem foi massacrado, mas o resultado que reflete todos os lados, todos os mortos, fundamentalistas ou não.

Terceira Imagem



 

A FOTOGRAFIA: Mãe Africana carrega o filho vítima do flagelo da Aids. – Gideon Mendel. – Fotografia premiada pelo World Press Photo. Foi feita em 1997, em um país africano. A epidemia do vírus HIV, que causa a doença da AIDS, tornou-se um flagelo no continente africano. Com países pobres, onde a população vive muito abaixo da linha da miséria, sem uma política sanitária e de prevenção, o continente negro sofre com perdas de vidas contaminadas pelo vírus. É um dos maiores flagelos da humanidade. Sem remédios e sem acesso ao tratamento, é comum na África as crianças se tornarem órfãs, vivendo em asilos especiais para este fim. Muitas crianças nascem com a herança do vírus no sangue. Calcula-se que um terço da população deste continente deve morrer vítima da Aids.

A IMAGEM: A mulher mãe. A fotografia está em preto e branco. Não há espaço para as cores da imagem ou das plantas sem flores aqui retratadas. A casa é pobre, de terra batida, sem pintura, telhado de zinco ou amianto, mostra na sua arquitetura improvisada a condição social das duas personagens. A mulher carrega em seus braços o seu filho magro, dizimado pela pestilência. Tão leve que não lhe parece pesar o corpo inerte e transformado pela doença. Como quem carrega um recém-nascido, o seu olhar é meigo, maternal, protetor e mesmo ofuscado pela tragédia, não se perde na dor. Caminha como quem canta uma doce canção de ninar para o seu menino. Com o seu lenço na cabeça, a sua saia colorida, ela transforma a paisagem árida em paisagem humana, coberta de tradições e costumes. Ela é neste instante não a imagem da África quente e esquecida, mas a própria África, mãe de vidas perdidas pelo esquecimento do mundo. Seguimos o vento silencioso, o chão batido e sem asfalto. A imagem da mãe que embala o seu filho uma última vez. Que parece caminhar com cuidado para que nada perturbe aquele momento. Não pede socorro com a voz, apenas caminha. Como uma Pietà Contemporânea, uma Maria que recebe o seu filho após a crucificação dos seus pecados. Após a redenção das esperanças e do último fôlego. A imagem conduz o último ato de amor materno desta mulher. Ao fundo as plantas resistem ao vento quente soprado pelas savanas, pelo sal da vida que já se esvai.

ALÉM DA IMAGEM: No olhar que desvenda a Pietà encontramos o mais completo abandono do mundo ocidental pelo povo africano. Não é uma mãe africana que carrega nos braços o seu filho flagelado, mas a mulher universal, excluída por uma sociedade que nem sempre sabe como conviver com as diversidades e fica à deriva de um capitalismo desmedido e sem ética. Não é a mulher africana que caminha para o nada do deserto da mais profunda miséria. É a mulher que cresce quanto mais aprofundamos o olhar na imagem e transforma-se em várias Marias possíveis, desde a Maria que salta das profundezas das Pietàs das Igrejas às Marias flageladas pela seca nordestina, pela condição de misérias pautadas pelos quatro cantos do planeta, derrubando assim as diversidades culturais que separam essas Marias, seja qual for o continente que habitam. Outras Marias carregam seus filhos no olhar da imagem. Marias beligerantes. Com as suas sandálias de dedo pisam no solo das brasas sociais. Mães sem a proteção do estado, sem cidadania ou pátria. Mães vivendo os dias da avareza de Deus, caminhando sem a direção exata dos seus direitos. A casa pobre de terra batida nos faz mergulhar na aridez das pessoas. A pestilência rondando os movimentos. A figura magra e caída do filho, como um anjo calado, a pagar a sua dívida social. A pestilência como o cumprimento das velhas profecias, como se a culpa já viesse na genética dos esquecidos. A penitência final: a morte.
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publicado por virtualia às 04:50
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