Sábado, 29 de Agosto de 2009

AVES BRASILEIRAS E SUAS LENDAS

 

 

No imaginário popular há certos animais que por sua imponência, são associados ao folclore regional, originando lendas que tentam explicar a natureza, ou mesmo a tornar épica a construção de um determinado povoado. No Brasil imaginário, onças, peixes, cobras e tantos outros animais, suscitaram lendas e crendices que atravessaram os séculos, da colonização à nação, formando a cultura popular transmitida de pai para filho. Em particular as aves, pelo seu canto, pela capacidade de voar, pela beleza das plumagens ou pela falta dela, suscitam muitas crendices populares e as mais magníficas lendas.
Três lendas fazem parte deste artigo, todas elas envolvendo aves, a do urutau, ave noturna dos sertões brasileiros; a da gralha azul, símbolo do Estado do Paraná; e, a do urubu, a mais brasileira das aves, existente em todo o país.
A Festa no Céu é uma lenda que existe não só no Brasil, como em Portugal, o que nos remete a crer que seja de origem lusitana. Envolve a destreza do urubu diante da natureza e a esperteza do sapo, indo contra as limitações do seu corpo. Em outras versões o sapo é trocado pela tartaruga, mas o desejo de alcançar o céu como as aves, prevalece.
O Urutau conta a lenda da mulher que por ser muito feia, foi abandonada pelo homem que amava e transformada nesta ave de canto melancólico, de hábitos noturnos. Famosa entre os sertanejos, a ave é tida como símbolo de sorte para uns e como mau agouro para outros. É uma das aves mais feias do sertão, recebendo vários nomes: jurutaí, mãe-da-lua, jurutau, curiango, bacurau grande ou chora-lua.
A Gralha Azul traz a lenda de uma ave típica do sul. É símbolo da construção do Paraná, do homem que ao colonizar a terra e cultivá-la para a sua subsistência, destrói a sua mata e os pinhais, árvore símbolo daquelas terras. A gralha azul, de cabeça preta, com o seu canto estridente, é a esperança da conservação da natureza, mesmo diante da colonização do homem.

A Festa no Céu

Uma grande festa no céu foi anunciada aos animais. Para desencanto de muitos, só foram convidadas as aves, por possuírem asas e lá poder chegar. Ao saber da festa, o sapo Cururu não se conformava em não ter sido convidado. Mesmo sabendo da impossibilidade de ir ao céu, espalhou por toda a mata que também tinha sido convidado, fazendo com que os outros animais dele risse e escarnasse.
Cururu passava os dias na lagoa, a rebater o escárnio, mantendo sempre a convicção de que iria à festa no céu. Foi quando um dia, o Urubu foi lavar os pés na lagoa. Cururu sabia que ele era o violeiro que tocava nas festas dos bichos, e, como voava, com certeza iria tocar na festa do céu.
-Hoje é o dia da festa no céu. – Falou o Urubu ao sapo, trazendo a viola nas costas. – Venho lavar os meus pés e seguir para lá. Soube que foste convidado.
-É verdade, mais tarde lá estarei e poderei ouvir-te tocar! Quero dançar a noite toda, até que nasça o sol.
O Urubu não se preocupou com Cururu, lavou os pés, bebeu água, sacudiu as penas, sem que se apercebesse que o astuto sapo entrara em sua viola, lá permanecendo silencioso. Ao terminar a sua higiene, o Urubu pegou a viola e voou para o céu, distanciando-se cada vez mais da terra, até que chegou à tão esperada festa.
Foi em um momento de distração do Urubu, que o sapo Cururu saiu de dentro da viola, surpreendendo a todas as aves com a sua presença. O Urubu tocou durante toda a noite, afirmando a sua fama de violeiro dos bichos. Cururu dançou, cantou e comeu todas as delícias da festa. Era a primeira vez que um bicho que não tinha asas participava de uma festa no céu.
Momentos antes de a festa terminar, já o sol nascia, e Cururu voltou para dentro da viola do Urubu, onde permaneceu quieto, refestelado e pronto para voltar à lagoa. O Urubu despediu-se de todos, e de viola nas costas, pôs-se de volta à terra. Como Cururu tinha comido muito, o seu peso aumentara drasticamente, fazendo com que a viola pesasse mais ao Urubu. Desconfiada, a ave sacudiu a viola e viu que dentro dela estava o sapo.
-Mas que grande trafulha e malandro este sapo. Dar-te-ei uma lição, que não me logrará uma outra vez.
Assim dizendo, o Urubu atirou Cururu no ar. O pobre sapo assustado, viu passar diante dos seus olhos a imensidão do vácuo, caindo de costas sobre as pedras. A pancada foi tão forte que ficou marcada para sempre nas costas de Cururu, fazendo marcas que cicatrizaram em forma de desenhos. Desde então, todos os sapos trazem desenhos nas costas, como testemunho de que um dia Cururu foi à festa no céu.

O Urutau

Maria era uma moça sonhadora, que pensava um dia poder conhecer um belo príncipe e com ele se casar. Queria ter filhos e um lar para cuidar e ser feliz. Mas Maria era a mais feia das mulheres da sua terra. Era demasiadamente magra, vesga dos olhos, nariz enorme e olhos esbugalhados.
O aspecto físico de Maria espantava todos os rapazes jovens, que dela fugiam como se fugissem de uma bruxa. As outras mulheres casadoiras chamavam-lhe pelas costas de mãe da lua. Mas Maria o que não tinha de beleza, derramava de bondade, tendo um coração infinito.
Certa noite, após a labuta no campo, Maria voltava para casa, quando se deparou com um rapaz gentil e de voz sedutora. No céu densas nuvens encobriam o luar, trazendo um grande breu à estrada, o que levara o rapaz a se perder. Maria ouviu o jovem perdido, conhecedora de todos os caminhos daquela região, prontificou-se em ajudá-lo a sair do ermo.
Os dois caminharam na noite escura. O rapaz ouvia a doçura da voz de Maria. Na escuridão só lhe via o semblante, que lhe parecia belo e garboso. Apaixonado, segurou na mão de Maria, e assim, caminharam pela escuridão. Cada vez mais apaixonados, juraram amor eterno. Ele era um príncipe honrado, e diante de tanta bondade e doçura na voz, propôs a Maria que se casasse com ele. Maria aceitou. Caminhavam felizes, de mãos dadas, quando a lua saiu do meio das nuvens, cobrindo de luz toda a estrada do sertão. Naquele instante o príncipe pôde ver o rosto da amada. Assustou-se diante de tão horrenda criatura. Arrependido do pedido de casamento que fizera, ele disse à jovem que o esperasse, que já voltava. Sem olhar para trás, distanciou-se dela e jamais retornou.
Maria ficou perdida no meio do sertão, à espera do amado. Esperou... Esperou... Mas a imagem do amado foi tragada pela imensa lua que brilhava no céu. Maria chorava, quando lhe surgiu no caminho uma velha feiticeira. Desesperada, perguntou à feiticeira se tinha visto o belo príncipe que lhe jurara amor e casamento.
-Casar contigo? – Indagou a feiticeira. – Teu coração é gigante, assim como o teu rosto é horrendo. O teu príncipe fugiu do teu rosto, perdendo-se do teu coração...
-Não é verdade, tivesse eu asas e voaria pelo céu, até encontrar o meu príncipe!
Compadecida, a feiticeira pôs as mãos sobre a cabeça de Maria, transformando-a em uma ave, assim ela poderia voar em busca do seu príncipe. Maria, metamorfoseada em ave, saiu voando pelos céus, atrás do seu príncipe. Voou toda a noite, quando o dia raiou, os seus olhos, acostumados à escuridão, não se mantinham mais abertos diante do sol. Maria procurou o oco de uma árvore a ali se aninhou, fazendo daquele buraco o seu novo lar.
Maria tornou-se uma ave que foi chamada de urutau. Passa o dia a dormir, saindo à noite em vôos tristes e silenciosos. Quando a lua surge no céu, o urutau deixa o oco das árvores e começa a cantar. Solta um canto triste, pungente, como se fosse um grande lamento. Quem ouve o urutau, não sabe que por trás do seu canto melancólico e crescente está Maria, que com a sua lamúria em voz de ave, repete pungentemente: “Foi... foi... foi...”

A Gralha Azul

Numa fria manhã de inverno, a gralha ainda dormitava no galho do pinheiro, quando foi surpreendida por um súbito e seco barulho. Assustada, ela pôde ver um homem a desferir o machado no tronco do pinheiro. A gralha ouviu os gemidos agudos do pinheiro, enquanto que a seiva de dentro dele transbordava em dor.
Com tristeza, a gralha viu os golpes do machado, cada vez mais intensos, a cortar sem piedade o majestoso pinheiro que por muitos anos deu-lhe abrigo, tornando-se um amigo. Sabia que o destino de tão bela árvore, que por décadas a natureza tecera o porte que apresentava, seria o de uma serraria, transformada em madeira morta para servir aos caprichos humanos.
Impotente diante da tragédia que se abatia sobre o pinheiro amigo, a gralha voou em direção ao infinito, subindo muito além das nuvens, de modo que não pudesse ouvir os gemidos de dor causados pelo corte fatal do machado. Já na imensidão do céu, a pobre ave pôde ouvir uma voz terna a ecoar:
-O coração das aves é misericordioso, revoltando-se com as dores da mata! Bendita sejas tu, avezinha! Tua bondade faz-te digna do mundo. Volta para os pinhais, a partir de hoje tu serás a minha ajudante. Transformarei a tua plumagem em azul, da cor do céu. Quando voltares para os pinhais do Paraná, vais plantá-los, para que se renove e jamais se extinga.
-Sou apenas uma ave negra, a chorar a dor dos pinheiros mortos.
-Já não serás uma ave negra, já te disse, terás a cor do céu. Quando comeres o pinhão, tirar-lhe-á a cabeça, para com as tuas bicadas, abrir-lhe a casca. Nunca te esqueças de antes de terminar a tua alimentação, enterrares alguns pinhões com a ponta para cima, já sem cabeça, para que não apodreça antes que surja um novo pinheiro dali nascido. Do pinheiro, árvore da fraternidade, nascerá a pinha, da pinha nascerá o pinhão... do teu bico cairá a semente que fertilizará o solo.
Ao ouvir a voz, a gralha viu-se no topo do céu. Olhou para o seu pequeno corpo de ave e apercebeu-se que as penas negras tinham ficado azuis. Até onde os seus olhos pudessem avistar, tornara-se uma ave azul, ao redor da cabeça, onde não podia enxergar, continuou com a plumagem preta.
Ao ver a beleza das suas penas, a avezinha retornou para os pinhais. Encontrou os galhos de todos os pinheiros abertos, a convidar-lhe para pousar em seus galhos, assim ficariam perenemente. Tão alegre estava a gralha com a sua nova plumagem, que o seu canto passou a ser como um alarido a lembrar crianças a brincar. Assim a gralha, ao voltar, iniciou o seu trabalho de ajudante celeste, ajudando aos pinheiros a renascer dos seus pinhões.
Ainda hoje, quem passa pelas florestas do Paraná, consegue ver bandos de gralhas azuis matracando nos galhos dos frondosos pinheiros, comendo os pinhões que alegram as festas do povo do lugar.

Ilustrações: José Lanzellotti
Adaptação livre de Jeocaz Lee-Meddi para textos de Brasil, Histórias, Costumes e Lendas
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Sexta-feira, 28 de Agosto de 2009

SÃO PAULO, SÃO PAULO

 

 

A cidade de São Paulo nasceu modesta, mantendo-se como uma vila pobre e sem atrativos por séculos. Sua fundação, oriunda da construção de um barracão de pau-a-pique coberto de sapê, que servia ao mesmo tempo, de capela e de abrigo aos jesuítas. No dia 25 de janeiro de 1554, data que se festeja na igreja católica a conversão do apóstolo Paulo de Tarso ao cristianismo, o sacerdote Manuel de Paiva celebrada uma missa neste barracão construído entre os rios Anhangabaú e Tamanduateí; na sua presença estavam os padres José de Anchieta e Manuel da Nóbrega, João Ramalho e a sua esposa Bartira e os índios Caiubi e Tibiriçá. Nascia a povoação de São Paulo de Piratininga, aquela que estava destinada para ser a maior metrópole do Brasil.
A vida pulsante da cidade de São Paulo traz o poder, o dinheiro, os sonhos e as esperanças para os seus quase vinte milhões de habitantes, formados por imigrantes de todas as partes do Brasil e de grande parte do planeta. A metrópole assusta no seu gigantismo de concreto, fascina nas milhares de pessoas que transitam por suas ruas e por sua ebulição constante, fazendo dela o principal centro financeiro, cultural, corporativo, político e mercantil não só do Brasil, mas de toda a América Latina. São Paulo em sua veia urbana e universalidade vincada, é a décima quarta cidade mais globalizada do planeta, sendo a décima mais rica.
Caminhando para quase cinco séculos da sua fundação, a São Paulo do século XXI nada lembra a aglomeração de padres, índios e bandeirantes humildes que se constituiu em torno do Pátio do Colégio Jesuíta, muito menos aquela cidade pobre e esquecida pelo progresso por tantos séculos. A Paulicéia atual fascina, atrai e seduz não só os seus habitantes, mas todo o Brasil. Na data de aniversário da cidade, ela recebe os beijos apaixonados dos cidadãos brasileiros, que prestam homenagens a mais amada, idolatrada ou odiada das suas cidades. E o nome da cidade ecoa pela poluição perene que cobre seu o céu. São Paulo, São Paulo! Este artigo é um convite para uma visita pitoresca às várias fases da cidade, em imagens de ontem, numa São Paulo para sempre gravada no coração da memória.

Vila Pobre e Adormecida

Quando os padres jesuítas Manuel da Nóbrega e José de Anchieta ergueram um barracão de taipa entre os rios Tamanduateí e Anhangabaú, tinha por finalidade catequizar os índios que habitavam naqueles vales longe do litoral. A primeira missa no humilde barracão, que se transformaria no colégio jesuíta, foi realizada no dia 25 de janeiro de 1554, um dia quente dos verões dos trópicos, em que se comemorava a conversão de Paulo de Tarso ao cristianismo. Em homenagem ao apóstolo, a vila que ali nascia, foi chamada de São Paulo de Piratininga.
Em 1560 o governador geral da colônia, Mem de Sá, ordenou que a população da vila de Santo André da Borda do Campo fosse para os arredores do Colégio de São Paulo de Piratininga. Com a transferência da população, a vila de Santo André da Borda do Campo foi extinta, e São Paulo de Piratininga foi elevada à condição de vila, expandindo finalmente, o seu povoamento.
Por encontrar-se longe do litoral, a vila permaneceu pobre e isolada do resto da colônia por dois séculos consecutivos. Com a expansão para o interior do país, a cidade passou a servir de entroncamento para os que vinham do litoral e que se adentravam na mata. Homens pobres, em busca de fortunas, transformaram-se nos bandeirantes, que a partir da vila de São Paulo de Piratininga, conquistaram o interior do Brasil colônia, caçando e escravizando índios, descobrindo diamantes e ouro. São Paulo transformou-se na capital dos bandeirantes.
A intensidade das bandeiras, a descoberta de ouro na região das Minas Gerais, aumentou a importância da vila no cenário da colônia, já que ela era o ponto principal de partida para o interior, fazendo com que fosse elevada à categoria de cidade em 1711.

O Despertar do Progresso Paulistano

Com o fim do ciclo do ouro, São Paulo continuou a ser uma cidade pobre e pouco desenvolvida, tendo como principal objetivo ecoar a produção de açúcar para o porto de Santos, que seguia para a capital da colônia, em Lisboa.
No século XIX São Paulo é uma cidade pacata e provinciana, cercada por várzeas alagadiças, ribeirões e brejos. Vista ao longe, mantinha a sua estrutura de fundação sobre uma colina, o que lhe dava um aspecto de acrópole. Trazia inúmeras igrejas, parcos sobrados e inúmeras casas baixas, apoiadas umas às outras, com grandes beirais.
Em 1823, já o Brasil era uma nação independente, e o imperador Dom Pedro I conferiu à cidade o título de “Imperial Cidade”. Pouco depois, em 1827, seriam criados cursos jurídicos no convento de São Francisco, que iria originar a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. São Paulo, aos poucos, tornar-se-ia um burgo de estudantes, que juntamente com os professores, dariam um grande impulso de crescimento cultural à cidade.
Mas o grande despertar da cidade, dantes pobre e sossegada, deu-se com o cultivo do café, que encontrou no interior paulista solo ideal e clima propício. No interior paulistano passam a proliferar grandes plantações cafeeiras, que produziam grãos de qualidade apreciados pelo mundo inteiro. O ciclo do café era inaugurado, transformando-se no século XIX, na principal riqueza do país, condição que iria prevalecer até os anos vinte do século seguinte.
A grande produção do café gerou grande necessidade de mão-de-obra, obrigando o governo a abrir as suas fronteiras para os imigrantes. São Paulo passou a receber milhares de imigrantes, principalmente italianos, que dali eram encaminhados para as lavouras cafeeiras do interior paulista.
Com o dinamismo do comércio do café, era preciso ecoar o produto, transpondo a difícil barreira que se impunha através da Serra do Mar. Para esta finalidade deu-se início à construção de ferrovias, que interligariam São Paulo ao interior paulista e ao litoral santista. Em 1860 o Barão de Mauá associa-se a capitalistas ingleses, organizando a Estrada de Ferro Inglesa, The São Paulo Railway, unindo Santos a Jundiaí, que inauguraria em 16 de fevereiro de 1867, a primeira Estação da Luz, um prédio arquitetonicamente modesto. Nas proximidades da estação foram desenvolvendo-se, aos poucos, pequenas indústrias e bairros operários como o Brás e o Bom Retiro. Em 1901, foi inaugurada a imponente Estação da Luz, em um prédio estilo neoclássico, inspirado na estação de Sidney, Austrália. Este prédio é o mesmo dos dias atuais, tendo, ao longo dos anos, apenas o acréscimo de um pavilhão, quando da sua reinauguração em 1950, após uma reforma que apagou as marcas de um incêndio acontecido em 1946.
Na década seguinte à inauguração da Estrada de Ferro dos Ingleses, viriam a Estrada de Ferro Sorocabana, que servia de ligação entre São Paulo e as províncias do sul, e, a Central do Brasil (ou Estação do Norte), que a partir de 1887, comunicava São Paulo ao Rio de Janeiro. Com as ferrovias, São Paulo tornou-se um grande nó viário, trazendo para a cidade indústrias e um progresso cada vez mais latente.

Novos Bairros e Ruas

Adormecida durante dois séculos, com a explosão do comércio cafeeiro, São Paulo viu-se subitamente invadida por um compulsivo progresso e grande riqueza. A face da antiga e pobre vila bandeirante mudou, adquirindo um desenho arquitetônico de feição européia, e um estilo de vida nos mesmos moldes. Proprietários rurais, enriquecidos com o café, passam a ser chamados de “barões do café”. São eles que vão gerar a riqueza da cidade e transformar de vez a sua paisagem urbana. Os barões do café passam a viver na capital, construindo grandes casarões e imponentes palacetes, inaugurando novas artérias na cidade, como a elegante Avenida Paulista.
Com a ida dos barões para a capital, foram instaladas fábricas, necessárias ao atendimento da crescente demanda de insumos manufaturados. Com as novas indústrias, foi gerada uma necessidade de mão-de-obra especializada, logo ocupada pelos imigrantes, excepcionalmente pelos italianos. Antigas regiões de chácaras foram transformadas em bairros industriais e operários, como o Brás, a Mooca, Belém e Ipiranga. Imigrantes italianos e espanhóis estabeleceram nestes bairros.
Com o progresso, uma nova cidade forma-se aos poucos, expandindo-se para locais ainda rurais, como o Morro do Chá, sítio de cultivo de chá, onde as crianças iam caçar pequenos pássaros e os adultos pescar lambaris. Em 1888, após a expropriação do sobrado do Barão de Tatuí, foram iniciadas as obras do Viaduto de Chá, que seria inaugurado em 1892, dando um imponente ar de modernidade à cidade.
O que foi chamado de Bairro do Chá, tinha como proprietário da área o Barão de Itapetininga, que cedeu parte do terreno na encosta, para a construção da Rua Formosa. Posteriormente, a viúva do barão permitiu em suas terras a abertura de novas ruas, como as atuais Xavier Toledo, Barão de Itapetininga e 7 de Abril, formando o que foi chamado de Cidade Nova.
Com a Cidade Nova (ou Centro Novo), o tradicional centro econômico de São Paulo deixa de ser exclusivamente nas ruas do Triângulo (Rua Direita, Rua São Bento e Rua 15 de Novembro), mudando-se para áreas a oeste. Surge a imponente Avenida Paulista, que com o decorrer do século XX, deixa de ser local de palacetes de barões e banqueiros, para dar passagem aos prédios e a tornar-se um importante centro econômico.

São Paulo, Uma Cidade Que Não Pode Parar

Com o fim do ciclo do café, São Paulo transformou-se em uma cidade de grandes indústrias, atraindo para si um imenso número de migrantes de todo o país, especialmente nordestinos, que participaram da vertiginosa verticalização da cidade, gerando grandes arranha-céus que mudaram de vez a paisagem da Paulicéia. Aos poucos, os casarões são demolidos, substituídos por prédios cada vez mais altos, e uma população urbana cada vez maior.
Transformada em metrópole no século XX, São Paulo passa a ser conhecida como a cidade que não pode parar. Em 1916 foi criado o brasão oficial da cidade, que seria oficializado em 8 de março de 1917. O brasão traz o lema em latim “Non ducor, duco” (Não sou conduzido, conduzo), que traduz a imagem exata da Paulicéia como capital de Estado e maior metrópole do Brasil.
Desde que fundada, em 1554, a cidade assumiu vários aspectos. Nascida de um colégio de jesuítas, com a finalidade de catequizar os índios da Serra do Mar, passou a ser uma vila pobre e tacanha, gerando ferozes e ambiciosos caçadores de índios e de pedras preciosas, os bandeirantes, que se adentraram pelo interior das matas brasileiras, derrubando o Tratado de Tordesilhas e alargando as fronteiras da colônia portuguesa. Construída por modestas casas de barro, por dois séculos esteve adormecida, até que sucessivamente, passou a ser a cidade do burgo dos estudantes, a capital dos barões do café, a cidade dos imigrantes (italianos, portugueses, espanhóis, alemães, judeus, japoneses...), a cidade modernista do Brasil, a capital da indústria, o coração econômico do Brasil. Para assumir as várias faces da sua história, São Paulo foi inteiramente construída e demolida várias vezes.
São Paulo da garoa, do trânsito caótico, da poluição institucionalizada, da cultura latente, que transformou o Brasil do século XX, do poder objetivo do concreto das suas construções, dos sonhos realizados e desfeitos dos que ousaram tentar domar a metrópole. São Paulo é a concretização mais perfeita do sonho brasileiro de ser um país do futuro, exercendo este sonho perenemente no presente.

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Quinta-feira, 27 de Agosto de 2009

A TORTURA NO REGIME MILITAR

 

 

O século XX ficou marcado como o século dos genocídios. A presença de regimes opressivos e totalitários, que se mantiveram através da força bruta, originaram os métodos científicos de tortura, disseminados por todas as nações do planeta. Quem pensa que a tortura é fruto do século que passou engana-se, desde os primórdios da história universal que o homem convive com ela. Dos antigos egípcios aos mesopotâmios, da inquisição medieval aos regimes totalitaristas nazistas, fascistas e stalinistas; a tortura foi uma forma que se desenvolveu para extrair depoimentos de oposicionistas, intimidar a população e consolidar os governos ilegítimos, construídos sem a participação ou o consentimento popular.
No Brasil do século XX, a tortura foi praxe nos dois maiores períodos ditatoriais que o país viveu, na época do Estado Novo (1937-1945) e do regime militar (1964-1985), sendo institucionalizada neste último período, banalizando-se e revelando-se como um método eficaz de garantir um Estado de ilegalidade.
Foi durante a ditadura militar que as maiores atrocidades foram cometidas contra os que se opunham ao regime. Neste período os estudantes, os intelectuais, os engajados políticos, foram as principais vítimas do sistema que contestavam. Em plena Guerra Fria, a elite brasileira posicionou-se do lado dos Estados Unidos e da direita ideológica. Ser comunista passou a ser terrorista. Combatê-los era, segundo a visão do regime, defender a pátria de homens que comiam criancinhas, pregavam o ateísmo e destruíam as igrejas e os conceitos familiares. No engodo de proteger o Brasil da ameaça comunista, instalou-se uma ditadura, que para manter os princípios da caserna ortodoxa, calou, torturou e matou sem o menor constrangimento, centenas de brasileiros.
A tortura durante o período do regime militar não livrou o Brasil dos militantes de esquerda, tão pouco destituiu da mente das pessoas o direito à liberdade de expressão que todos sonhavam. Se na sua propaganda o regime salvou o Brasil de terroristas comunistas, nos seus porões ela garantiu a sobrevivência de 20 anos de um Estado ilegítimo, feito sob a força bruta e o silêncio dos seus cidadãos.

Identificação dos Torturados

Para que se perceba os princípios que regeram a tortura na época do regime militar, é preciso que se perceba também quem eram os torturados, ou os que se enquadravam nesse perfil de sórdida arbitrariedade. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a Europa e o mundo foram divididos pelos aliados vencedores e por suas ideologias. Objetivamente, Estados Unidos e União Soviética formaram duas forças antagônicas que ao encerrarem uma guerra, construíram uma outra, a chamada Guerra Fria.
Antes de entrar no turbilhão da Guerra Fria e posicionar-se em um dos lados, o Brasil encerrou a ditadura do Estado Novo, em 1945. Em 1946 o país promulgou uma nova Constituição, entrando numa nova fase democrática. Graças à nova Constituição, o Partido Comunista do Brasil, que se iria tornar Partido Comunista Brasileiro em 1960, o PCB, existente desde 1922, pôde finalmente ser legalizado. Quando da legalização, o PCB era o quarto partido do país, com dezessete deputados, um senador e a maioria dos vereadores da Câmara do Distrito Federal, na época o Rio de Janeiro.
Em 1947 os princípios da Guerra Fria foram estabelecidos, espalhando-se pelo mundo. Neste ano realiza-se a Conferência Interamericana de Manutenção da Paz e Segurança, em Petrópolis; dela participou o então presidente argentino Juan Perón. Na conferência foi assinado o Tratado de Assistência Recíproca, que permitia a intervenção norte-americana onde quer que a paz e a segurança estivessem ameaçadas. O Brasil entrava para a gestação da Guerra Fria, posicionando-se ao lado dos EUA. Já integrado nos princípios da Guerra Fria, neste 1947, deputados do PTB propuseram a cassação do PCB baseado no texto da Constituição, que vedava qualquer partido que contrariasse em seu programa o regime democrático, e os comunistas, contrários às posições difundidas por Washington, passaram a ser vistos como inimigos do regime vigente. Em outubro o Brasil rompe relações diplomáticas com a União Soviética. O PCB, que obtivera o terceiro lugar do total de votos nas eleições estaduais, tem a legenda cassada numa decisão tomada pela diferença de um voto. No começo de 1948 os deputados, senadores e vereadores eleitos pela legenda tiveram seus mandatos cassados e o PCB entrou definitivamente na clandestinidade. Desde então o partido escondeu-se por trás de outras legendas.
No princípio da Guerra Fria, a doutrina francesa do “inimigo interno” é adotada pelos norte-americanos. O inimigo não era mais uma nação expansionista, como na época da Segunda Guerra Mundial, mas o cidadão invisível, que habitava o seu país, mas era contra o regime nele estabelecido. O inimigo era todo aquele cidadão que se opunha aos princípios da democracia desenhada pelos americanos, da sua visão de mundo livre, posicionando-se favorável ao mundo socialista.
Estabelecido o conceito de “inimigo interno” (no caso os comunistas), a ele juntou-se a doutrina da “segurança nacional”. As Forças Armadas do Brasil e da América Latina, formadas por uma elite histórica e de forte conotação de direita, deixaram-se seduzir por estes conceitos. Dentro da caserna, os princípios que identificavam os “inimigos internos” eram passados hierarquicamente, e esses inimigos ganhavam identidades ideológicas: eram os próprios compatriotas comunistas, os de esquerda e todos aqueles que se opunham ao lado ocidental da Guerra Fria, ou seja, ao regime estabelecido pelos norte-americanos.
Os “inimigos internos” do Brasil, especificamente os comunistas, quando estabelecida a ditadura militar em 1964, paradoxalmente eram considerados traidores dos princípios “democráticos” e tornar-se-iam o principal alvo da tortura, os comunistas seriam os torturados.

Atos Institucionais e Órgãos de Informação Moldam a Ditadura e os Princípios da Tortura

Uma vez estabelecida a ditadura militar no Brasil, em 1 de abril de 1964, era preciso sustentá-la e legitimá-la. Apoiada logisticamente pelos EUA, baseando-se principalmente nos princípios anticomunistas da Guerra Fria, será dentro da Escola Superior de Guerra que se formulará os princípios da doutrina da segurança nacional, tendo como alvo o combate à esquerda, à eliminação dos “inimigos internos”. Para que se estabeleçam tais princípios, atos institucionais e leis repressivas dão legitimidade ao regime, e órgãos de informação são criados para que possam vigiar, identificar e eliminar o inimigo.
Em 9 de abril de 1964 é editado o primeiro Ato Institucional, que passaria para a história como AI-1, que legitimava o governo, estabelecendo 60 dias para que se acabasse o regime de exceção. O AI-1 dava poderes ao regime militar para cassar mandatos, suspendendo os direitos políticos por dez anos. João Goulart, Luiz Carlos Prestes, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e Leonel Brizola são os primeiros cassados. O expurgo atingiu governadores, 50 deputados, 49 juízes, 1200 militares e 1400 civis.
Em 27 de outubro de 1965 foi editado o AI-2, estabelecia-se que as eleições para presidente seriam de forma indireta e sem possibilidades de reeleição; dissolvia os partidos existentes desde 1945, criando o bipartidarismo, formado pela Arena (Aliança Renovadora Nacional), partido de base de apoio ao regime, e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), a oposição consentida. Para garantir a maioria do governo no STF (Supremo Tribunal Federal), o AI-2 aumentava o número de ministros de 11 para 16.
O AI-3 é editado em 5 de fevereiro de 1966, reafirmando o regime militar estabelecido em 1964, definindo as eleições indiretas para os governadores dos estados, com votação nominal nas Assembléias Legislativas estaduais. Estabelecia ainda, que os prefeitos de capitais seriam nomeados pelos governadores. Com este último ato, o governo militar, estabelecido na figura do presidente general Humberto de Alencar Castelo Branco, consolida a ditadura no Brasil.
Legitimada através de atos institucionais, ao mesmo tempo a ditadura criava órgãos para vigiar e manter sob controle o pensamento em todos os setores da população. Sob as perspectivas mencionadas, surgiu, em 13 de junho de 1964, o Serviço Nacional de Informações (SNI), com a finalidade de coordenar por todo o território nacional as atividades de informação e contra-informação, assegurando assim, os conceitos estabelecidos pela doutrina da Segurança Nacional. Criado pelo general Golbery do Couto e Silva, o SNI veio à tona com um acervo de três mil dossiês e cem mil fichas com informações sobre as principais lideranças políticas, sindicais, estudantis e empresariais do Brasil. O SNI espalhou os seus tentáculos por toda a parte, funcionando durante a ditadura como uma polícia secreta comparável às SS de Hitler. Seus agentes infiltrados acompanhavam os considerados subversivos, doutrinavam colaboradores, arrebanhando voluntários por todas as partes, vigiando desde as igrejas aos meios de comunicação.
A partir do SNI, um eficiente mecanismo repressivo foi montado, com métodos eficazes de vigilância e controle sobre o cotidiano dos brasileiros, obedecendo a uma hierarquia. O SNI assessorava diretamente ao presidente do Brasil; os ministérios eram atendidos pelas DSIs (Divisões de Segurança e Informação); sendo os ministérios civis, autarquias, empresas e órgãos públicos atendidos pelas ASIs (Assessorias de Segurança e Informações).

Órgãos de Informação Militares e das Polícias Federais e Civis Exercem a Tortura

Subordinados ao SNI, órgãos de repressão e tortura foram estabelecidos. Dentro das Forças Armadas, as três armas montaram individualmente os seus centros de informação.
No governo de Castelo Branco o Exército quis criar o seu centro de informações, mas com as restrições do presidente, o CIEX (Centro de Informações do Exército) só teve o seu projeto implementado no governo Costa e Silva. O CIEX teria grande alcance nacional, tornando-se um dos principais órgãos de tortura e repressão.
A Marinha tinha o seu órgão de informações, o CENIMAR (Centro de Informações da Marinha), desde 1955, para tratar das questões fronteiriças e da diplomacia. Aos poucos o órgão foi perdendo as suas reais funções, enredando-se cada vez mais na política repressiva, especializando-se em combater a luta armada.
Em 1968 a aeronáutica toma a iniciativa de criar o seu órgão de informações, CISA (Centro de Informações da Aeronáutica), sendo os seus mentores treinados no exterior. Mas a sua montagem só ocorreu já no governo Médici, adotando em 1970, a estrutura de combate e repressão à luta armada, tendo grande atuação na repressão aos guerrilheiros.
Ainda subordinados ao SNI estavam a polícia federal e as polícias estaduais e o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). A partir de 1969, surgiu em São Paulo a Operação Bandeirantes (Oban), organização clandestina, formada por militares, agentes e delegados civis e federais, que torturavam e desapareciam com militantes comunistas. A Oban agia à margem da lei, tornando-se poderosa, financiada por grandes empresas como a General Motors, Ford e Ultragaz. A experiência da Oban serviu para unir todos os órgãos repressivos, desde então passaram a atuar em conjunto os órgãos de informação da polícia federal, polícia militar e DOPS. Em janeiro de 1970 foram criados os DOI (Departamento de Operações e Informações) e os CODI (Centro de Operação e Defesa Interna). O DOI-CODI na prática integrava todos os órgãos repressores e legalizava a Oban.
O DOI-CODI transformar-se-ia numa máquina de repressão e tortura, estendendo os seus tentáculos além das fronteiras do país, infiltrando-se no Chile, Uruguai, Bolívia e Argentina. O DOI-CODI, assim como a antiga Oban, recebia grandes recursos financeiros, sendo dotado de tecnologia, tendo as suas atividades orientadas pela lógica da disciplina militar.
Todos estes órgãos institucionalizaram a tortura, constituindo um grande aparelho repressivo que agiria de forma brutal e sanguinária sobre aqueles que contestavam o regime militar. Agentes especiais eram formados na ESNI (Escola Nacional de Informações), criada em 1971. Os melhores alunos eram enviados para o Panamá, cursando a Escola das Américas, mantida pela CIA, lugar onde formaram grandes ditadores militares, que depois de um golpe, assumiram o poder em vários países da América Latina.
Em dezembro de 1968 Costa e Silva fechou o Congresso, o AI-5 foi decretado, dando plenos poderes ao presidente e, entre outras coisas, abolindo o hábeas corpus aos presos políticos, legalizando a tortura. Nos ventos do AI-5, foi promulgado em 1969 o AI-14, que estabelecia a pena de morte, a prisão perpétua e o banimento do país dos que eram considerados terroristas e atentavam contra a nova Lei de Segurança Nacional.

A Tortura Propriamente Dita

A tortura do regime militar instalou-se no Brasil desde o primeiro dia que foi dado o golpe, em 1 de abril de 1964. A primeira vítima de tortura foi o líder camponês e comunista Gregório Bezerra. No dia do golpe, o coronel Vilocq amarrou Gregório Bezerra com cordas, ordenando que soldados o arrastasse pelas ruas de Recife, humilhando-o com vitupérios verbais, espancando-o com uma vareta de ferro. O coronel incitava o povo para ver o “enforcamento do comunista”. Diante do horror, religiosos telefonaram para o general Justino Alves Bastos, que pressionado, impediu um martírio. Gregório Bezerra levou coronhadas pelo corpo, além de ter os pés queimados com soda cáustica. No dia do golpe, Recife foi um dos lugares que mais sofreu atrocidades dos golpistas, tendo civis agredidos e mortos em passeatas que protestavam a favor da democracia.
Um mês depois do golpe, presos políticos eram conduzidos para o navio Raul Soares, rebocado do Rio de Janeiro até o estuário de Santos, litoral paulista. A prisão flutuante era dividida em três calabouços, batizados com nomes de boates famosas da época: El Moroco, salão metálico, sem ventilação, ao lado da caldeira, ali os prisioneiros eram expostos a uma temperatura que passava dos 50 graus; Night in Day, uma pequena sala onde os presos ficavam com água gelada pelos joelhos; Casablanca, lugar que se despejava as fezes do navio. Os três calabouços eram usados para quebrar a resistência dos presos. Sindicalistas e políticos da Baixada Santista passaram pela prisão flutuante do Raul Soares, que foi desativada no dia 23 de outubro de 1964.
Mesmo diante de tantas evidências, o governo militar jamais admitiu que havia tortura no Brasil, o presidente Castelo Branco chegou a negar publicamente a existência de truculência em seu governo. Mas contrariamente às palavras do presidente, no dia 24 de agosto de 1966, foi encontrado boiando no rio Jacuí, afluente do rio Guaíba, em Porto Alegre, o corpo do sargento Manoel Raimundo Soares, já em estado de putrefação, com as mãos amarradas para trás. O sargento fazia parte dos militares expurgados do exército por causa do seu envolvimento com a militância política no governo João Goulart. O seu corpo trazia marcas de tortura, causando grande comoção e revolta da população na época. Este foi o primeiro caso de tortura e morte que causou grande repercussão, ficando conhecido popularmente como o “caso das mãos atadas”. Os militares prometeram investigar as circunstâncias da morte do sargento e punir culpados, mas arquivaram o caso e jamais tiveram o trabalho de investigá-lo.

Os Métodos de Tortura nos Porões Militares

Quanto mais tempo durava o regime militar, mais pessoas faziam oposição às atrocidades por ele cometidas. Estudantes, padres, intelectuais e vários setores da sociedade passaram a contestar o regime. Aumentava a contestação, a resposta era a intensificação da tortura, conseqüentemente, a sofisticação dos métodos ocasionava um grande número de mortos.
Métodos científicos de tortura foram desenvolvidos. Monstros torturadores escreveriam o seu nome em letras gigantes nas páginas pungentes da história do Brasil. Nomes como o de Sérgio Fleury, uma espécie de Torqueimada da ditadura militar. Fleury levou a tortura para as celas do DOPS de São Paulo, situado na Luz, no prédio que é hoje a Pinacoteca do Estado. Outro lugar de tortura em São Paulo era o DOI-CODI do Paraíso, conhecido como a Casa da Vovó. Os prisioneiros chegavam às mãos de Fleury e dos seus homens já espancados e feridos, sangrando e muitos vezes, já agonizantes. Ali eram pendurados no pau-de-arara, recebendo descargas elétricas. Furadeiras elétricas eram usadas para perfurar corpos, navalhas rasgavam a carne, cigarros queimavam órgãos genitais, mulheres sofriam abusos sexuais. Socos, pontapés, afogamentos, eram complementos às torturas, que ficavam cada vez mais elaboradas.
Os métodos de tortura engendrados recebiam diversos nomes simbólicos, entre eles, os mais comuns registrados e confirmados por aqueles que os sofreu, são:
Pau-de-Arara – O preso era posto nu, abraçando os joelhos e com os pés e as mãos amarradas. Uma barra de ferro era atravessada entre os punhos e os joelhos. Nesta posição a vítima era pendurada entre dois cavaletes, ficando a alguns centímetros do chão. A posição causava dores e atrozes no corpo. O preso ainda sofria choques elétricos, pancadas e queimaduras com cigarro. Este método de tortura já existia na época da escravidão, sendo utilizado em várias fases sombrias da história do Brasil.
Cadeira do Dragão – Os presos eram sentados nus em uma cadeira elétrica, revestida de zinco, ligada a terminais elétricos. Uma vez ligado, o zinco do aparelho transmitia choques a todo o corpo do supliciado. Os torturadores complementavam o mecanismo sinistro enfiando um balde de metal na cabeça da vítima, aplicando-lhe choques mais intensos.
Choques Elétricos – O torturador usava um magneto de telefone, acionado por uma manivela, conforme a velocidade imprimida, a descarga elétrica podia ser de maior ou menor intensidade. Os choques elétricos eram deferidos na cabeça, nos membros superiores e inferiores e nos órgãos genitais, causando queimaduras e convulsões, fazendo muitas vezes, o preso morder a própria língua. As máquinas usadas nesse método de tortura eram chamadas de “maricota” ou “pimentinha”.
Balé no Pedregulho – O preso era posto nu e descalço em local com temperatura abaixo de zero, sob um chuveiro gelado, tendo no piso pedregulhos com pontas agudas, que perfuravam os pés da vítima. A tendência do torturado era pular sobre os pedregulhos, como se dançasse, tentando aliviar a dor. Quando ele “bailava”, os torturadores usavam da palmatória para ferir as partes mais sensíveis do seu corpo.
Telefone – Entre as várias formas de agressões que eram usadas, uma das mais cruéis era o vulgarmente conhecido como “telefone”. Com as duas mãos em posição côncava, o torturador, a um só tempo, aplicava um golpe violento nos ouvidos da vítima. O impacto era tão violento, que rompia os tímpanos do torturado, fazendo-o perder a audição.
Afogamento na Calda da Verdade – A cabeça do torturado era mergulhada em um tambor, balde ou tanque cheio de água, urina, fezes e outros detritos. A nuca do preso era forçada para baixo, até o limite do afogamento na “calda da verdade”. Após o mergulho, a vítima ficava sem tomar banho vários dias, até que o seu cheiro ficasse insuportável. O método consistia em destruir toda a auto-estima do torturado.
Afogamento com Capuz – A cabeça do preso era encapuzada e afundada em córregos ou tambores de águas paradas e apodrecidas. O prisioneiro ao tentar respirar, tinha o capuz molhado a introduzir-se nas suas narinas, levando-o a perder o fôlego, produzindo um terrível mal-estar. Outra forma de afogamento consistia nos torturadores fecharem as narinas do preso, pondo-lhe, ao mesmo tempo, uma mangueira ou um tubo de borracha dentro da boca, obrigando-o a engolir água.
Mamadeira de Subversivo – Era introduzido na boca do preso um gargalo de garrafa, cheia de urina quente, normalmente quando o preso estava pendurado no pau-de-arara. Usando uma estopa, os torturadores comprimiam a boca do preso, obrigando-o a engolir a urina.
Soro da Verdade – Era injetado no preso pentotal sódico, uma droga que produz sonolência e reduz as inibições. Sob os efeitos do “soro da verdade”, o preso contava coisas que sóbrio não falaria. De efeito duvidoso, a droga pode matar.
Massagem – O preso era encapuzado e algemado, o torturador fazia-lhe uma violenta massagem nos nervos mais sensíveis do corpo, deixando-o totalmente paralisado por alguns minutos. Violentas dores levavam o preso ao desespero.
Geladeira – O preso era posto nu em cela pequena e baixa, sendo impedidos de ficar de pé. Os torturadores alternavam o sistema de refrigeração, que ia do frio extremo ao calor exacerbado, enquanto alto-falantes emitiam sons irritantes. A tortura na “geladeira” prolongava-se por vários dias, ficando ali o preso sem água ou comida.
As mulheres, além de sofrer as mesmas torturas, eram estupradas e submetidas a realizar as fantasias sexuais dos torturadores. Poucos relatos apontaram para os estupros em homens, se houveram, muitos por vergonha, esconderam esta terrível verdade.

O Que Fazer aos Corpos dos Mortos Pela Tortura

Para que se desenvolvessem métodos tão sofisticados de tortura, praticados com grandes requintes, era preciso que o governo militar desenvolvesse a propaganda do culpado, cada torturado era culpado, era o temível comunista que assaltava bancos, o terrorista que comia criancinhas, que ameaçava a família, assim, era criado o preconceito contra os torturados, que eram culpados e merecedores de todos os suplícios que se lhe eram impostos em uma sala de tortura.
Os recrutados para exercer a tortura eram indivíduos que recebiam favorecimentos dos seus superiores, gratificações e reconhecimento de heróis, pois ajudavam a livrar o país dos terroristas comunistas. Eram pessoas intimamente agressivas, com desvio de personalidade, que legitimadas em seus atos sem limites, tornavam-se incapazes de ter sentimentos por quem torturava.
Se por um lado a tortura coibia, causava medo e terror em quem se deixara apanhar e, principalmente, em quem ainda estava livre, militando na clandestinidade, por outro lado ela causava um grande problema, como esconder os torturados mortos. O que fazer com os corpos, uma vez que o regime militar negava veementemente a existência da tortura nos seus calabouços?
Para resolver o problema dos torturados mortos, médicos legistas passaram a fornecer laudos falsos, que escondiam as marcas da tortura, justificando a morte da vítima como sendo de causas naturais. Muitos dos mortos pela repressão tinham no laudo médico o suicídio como a causa mais comum, vários foram os “suicidas” da ditadura. Outras causas que ocultavam a tortura nos laudos eram a dissimulação de atropelamentos, acidentes automobilísticos ou que tinham sido mortos em tiroteios com a polícia, jamais eram reveladas as torturas.
Muitos legistas chegavam a apresentar laudos de torturados mortos como se desfrutassem da mais perfeita saúde. Quando não se podia ocultar as evidências da tortura, muitos cadáveres eram enterrados como anônimos, sem que os familiares jamais soubessem o que aconteceu aos corpos dos seus mortos. As valas clandestinas dos mortos da ditadura ocultavam dos familiares a marca das torturas neles praticadas. Entre os médicos legistas que assinaram laudos falsos para encobrir a tortura, tornaram-se notórios Harry Shibata, Isaac Abramovitch e Paulo Augusto Queiroz Rocha.
Mas nem sempre os falsos laudos conseguiram esconder a tortura. Em novembro de 1969, Chael Charles Schreier, militante da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), foi preso, torturado e morto. O seu corpo foi enviado para um hospital, portanto ele já estava morto quando lá deu entrada. No relatório do exército, foi dito que Chael Charles Schreier ao ser preso com dois outros companheiros, reagira violentamente com disparos de revólver. Na troca de tiros, os três terroristas saíram feridos, sendo Chael o que estava em estado mais grave, sendo medicado no hospital, entretanto Chael sofreu um ataque cardíaco, vindo a falecer. O que os militares não sabiam é que Chael era judeu, e que para ser sepultado nas tradições da sua família, era realizado o ritual da lavagem do corpo. Durante o ritual, constatou-se que Chael não tinha morrido por um ataque cardíaco, muito menos por ferimentos de balas, mas sim por tortura. O caso veio à tona, tornando-se matéria da revista “Veja” em dezembro daquele ano, a revista trazia na capa o título “Tortura”. Esta exposição constrangeu profundamente o governo do presidente Médici, apesar da reportagem da “Veja” isentá-lo da culpa da tortura e da morte de Chael, responsabilizando os que cercavam o presidente, sem citar nomes ou culpados.
Outro laudo falso, assinado por Harry Shibata, foi o que dizia que a causa da morte do jornalista Vladimir Herzog, ocorrida nos porões da ditadura, em 1975, tinha sido suicídio. Desmascarada a farsa, o assassínio de Herzog por tortura teve grande repercussão, fazendo com que o então presidente, general Ernesto Geisel, admitisse que havia tortura nos porões da ditadura, iniciando um processo para desmantelar a máquina científica da institucionalização de tão vergonhosa e sanguinária prática. Também o caso da morte do operário Manoel Fiel Filho alcançou repercussão nacional, provando que a ditadura torturava e matava os seus opositores.

Conseqüências da Tortura no Brasil do Regime Militar

A tortura na ditadura militar tornou-se um instrumento fundamental para assegurar, através do medo e da repressão, a ideologia da caserna, amparada pela Guerra Fria e justificada pelos militares como necessária numa época de perigo à segurança nacional, ameaçada por terroristas comunistas.
Durante o período da ditadura militar, o povo brasileiro foi excluído do direito de participar da vida nacional. Através da força bruta, refletida na tortura, criou-se o medo na população, que por algumas décadas inibiu-se até mesmo dos direitos civis e de consumidor, formando um pacifismo involuntário que se tornou uma característica manipulada do brasileiro.
O governo instalado no dia 1 de abril de 1964, manteve-se contrariando todos os princípios que regem os direitos humanos, traduzidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948. Estes direitos foram negligenciados pelos Estados Unidos, que para manter a sua ideologia e democracia interna, apoiou e financiou sangrentas ditaduras militares em toda a América Latina, exportando para esses países, seus sofisticados métodos de tortura e combate ao perigo da ideologia soviética.
Na violação dos direitos humanos, americanos ensinavam aos policiais brasileiros a seqüestrarem mendigos, e neles desenvolverem métodos eficazes de tortura, que seriam usados nos inimigos do regime.
No período mais intenso da tortura militar, no início da década de setenta, os brasileiros foram ideologicamente divididos pelo governo em dois grupos: o grupo dos “verdadeiros cidadãos” e o grupo dos “inimigos internos”, tornando o princípio arbitrário a principal arma de propaganda difundida pelo regime.
Oficialmente, os inimigos internos do regime militar no período de intensificação total da tortura, de 1969 a 1974, eram os guerrilheiros e revolucionários de esquerda, vistos como terroristas, e que militavam principalmente, no Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8); Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares); Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), Partido Comunista do Brasil (Pc do B), que promoveu a Guerrilha do Araguaia; Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), liderada por Carlos Lamarca, que se tornou ao lado de Carlos Marighella, os principais inimigos do regime; a Ação Libertadora Nacional (ALN), que de destacou na guerrilha urbana; e, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), combalido por sucessivas divisões que deram origem à maioria dos grupos de resistência à ditadura mencionados. Das organizações citadas, cinco a seis mil pessoas participou da luta armada, um número insignificante quando o país chegava a 100 milhões de habitantes, não justificando a máquina mortífera que as polícias brasileiras e as Forças Armadas criaram, sustentadas na aplicação da tortura como método de repressão.
Além dos mortos e desaparecidos (também mortos, mas jamais tendo sido encontrados os seus corpos), a tortura deixou danos indeléveis aos que sobreviveram a ela, levando alguns ao suicídio, como aconteceu ao dominicano Frei Tito de Alencar Lima. Os que sobreviviam à tortura, eram permanentemente ameaçadas e vigiadas pelo regime opressivo. Até hoje, os torturados têm dificuldade na sua maioria, em falar dos horrores que sofreram nos porões da ditadura.
Os que ousaram a contestar a ditadura eram na sua maioria, jovens idealistas, muitos politizados e engajados, outros em processo de politização, que se atiravam aos ideais, dispostos até mesmo a morrer por eles. A maioria dos torturados que morreram eram jovens.
Mas a ditadura não matou somente os opositores engajados, os chamados comunistas, guerrilheiros e revolucionários, vários foram os inocentes apanhados nas malhas da delação, que pereceram sob tortura sem jamais descobrirem porque estavam a ter tão nefasto destino. Aos inocentes a tortura poderia ser mais intensa, já que nada sabiam, nada podiam revelar.
Findo o regime militar, a tortura foi justificada pelos ex-presidentes ditadores como um mal necessário, como arma de defesa diante de uma guerra que se vivia. Nenhum torturador foi preso ou punido por seus atos, todos foram beneficiados pela lei da Anistia, que em 1979 anistiou os presos políticos, os exilados e os torturadores da ditadura militar. A tortura continua a ser a maior página negra da recente história do Brasil.

Mortos e Desaparecidos

O modelo de tortura empregado pelos órgãos de informação da ditadura militar chegou a ser exportado para alguins países asiáticos, onde governos repressivos assumiram o poder. Curiosamente, países que adotaram regimes socialistas, como o Camboja, foram os que "importaram" os métodos da direita brasileira.
Uma lista oficial dos mortos e desaparecidos no período da ditadura militar (1964-1985), foi divulgada pelo Grupo Tortura Nunca Mais. São considerados desaparecidos casos que se tem dados da tortura cometida contra o militante e da sua eventual morte, mas que o seu corpo jamais foi encontrado ou identificado. Entre os casos está o do Stuart Edgard Angel Jones, que apesar das evidências do seu assassínio, é oficialmente um desaparecido, uma vez que não apareceu um cadáver para oficializar a sua morte. Os mortos foram divididos na lista como militantes políticos e outros, é o caso de Zuleika Angel Jones, mãe de Stuart, cuja morte jamais foi esclarecida. Segue a lista dos mortos e desaparecidos da ditadura militar. Esta lista pode ser encontrada no site do Grupo Tortura Nunca Mais, onde a ficha de cada morto ou desaparecido é divulgada, podendo ser pesquisada.

Mortes Oficiais:

1964

Albertino José de Oliveira
Alfeu de Alcântara Monteiro
Ari de Oliveira Mendes Cunha
Astrogildo Pascoal Vianna
Bernardinho Saraiva
Carlos Schirmer
Dilermando Mello do Nascimento
Edu Barreto Leite
Ivan Rocha Aguiar
Jonas José Albuquerque Barros
José de Sousa
Labib Elias Abduch
Manuel Alves de Oliveira

1965

Severino Elias de Melo

1966

José Sabino
Manoel Raimundo Soares

1967

Milton Palmeira de Castro

1968

Clóvis Dias Amorim
David de Souza Meira
Edson Luiz de Lima Souto
Fernando da Silva Lembo
Jorge Aprígio de Paula
José Carlos Guimarães
Luis Paulo Cruz Nunes
Manoel Rodrigues Ferreira
Maria Ângela Ribeiro
Ornalino Cândido da Silva

1969

Antônio Henrique Pereira Neto (Padre)
Carlos Marighella
Carlos Roberto Zanirato
Chael Charles Schreier
Eremias Delizoikov
Fernando Borges de Paula Ferreira
Hamilton Fernando Cunha
João Domingos da Silva
João Lucas Alves
João Roberto Borges de Souza
José Wilson Lessa Sabag
Luiz Fogaça Balboni
Marco Antônio Brás de Carvalho
Nelson José de Almeida
Reinaldo Silveira Pimenta
Roberto Cietto
Sebastião Gomes da Silva
Severino Viana Colon

1970

Abelardo Rausch Alcântara
Alceri Maria Gomes da Silva
Ângelo Cardoso da Silva
Antônio Raymundo Lucena
Ari de Abreu Lima da Rosa
Avelmar Moreira de Barros
Dorival Ferreira
Edson Neves Quaresma
Eduardo Collen Leite
Eraldo Palha Freire
Hélio Zanir Sanchotene Trindade
Joaquim Câmara Ferreira
Joelson Crispim
José Idésio Brianesi
José Roberto Spinger
Juarez Guimarães de Brito
Lucimar Brandão Guimarães
Marco Antônio da Silva Lima
Norberto Nehring
Olavo Hansen
Roberto Macarini
Yoshitame Fujimore

1971

Aderval Alves Coqueiro
Aldo de Sá Brito de Souza Neto
Amaro Luís de Carvalho
Antônio Sérgio de Matos
Carlos Eduardo Pires Fleury
Carlos Lamarca
Devanir José de Carvalho
Dimas Antônio Casemiro
Eduardo Antônio da Fonseca
Flávio de Carvalho Molina
Francisco José de Oliveira
Gerson Theodoro de Oliveira
Iara Iavelberg
Joaquim Alencar de Seixas
José Campos Barreto
José Gomes Teixeira
José Milton Barbosa
José Raimundo da Costa
José Roberto Arantes de Almeida
Luís Eduardo da Rocha Merlino
Luís Hirata
Luiz Antônio Santa Bárbara
Manoel José Mendes Nunes de Abreu
Marilene Vilas-Boas Pinto
Mário de Souza Prata
Maurício Guilherme da Silveira
Nilda Carvalho Cunha
Odijas Carvalho de Souza
Otoniel Campos Barreto
Raimundo Eduardo da Silva
Raimundo Gonçalves Figueiredo
Raimundo Nonato Paz ou “Nicolau 21”
Raul Amaro Nin Ferreira

1972

Alex de Paula Xavier Pereira
Alexander José Ibsen Voeroes
Ana Maria Nacinovic Corrêa
Antônio Benetazzo
Antônio Carlos Nogueira Cabral
Antônio Marcos Pinto de Oliveira
Arno Preis
Aurora Maria Nascimento Furtado
Carlos Nicolau
Danielli Célio Augusto Valente da Fonseca
Fernando Augusto Valente da Fonseca
Frederico Eduardo Mayr
Gastone Lúcia Beltrão
Gelson Reicher
Getúlio D’Oliveira Cabral
Grenaldo de Jesus da Silva
Hélcio Pereira Fortes
Hiroaki Torigoi
Ismael Silva de Jesus
Iuri Xavier Pereira
Jeová de Assis Gomes
João Carlos Cavalcanti Reis
João Mendes Araújo
José Bartolomeu Rodrigues de Souza
José Inocêncio Pereira
José Júlio de Araújo
José Silton Pinheiro
Lauriberto José Reys
Lígia Maria Salgado Nóbrega
Lincoln Cordeiro Oest
Lourdes Maria Wanderly Pontes
Luís Andrade de Sá e Benevides
Marcos Nonato da Fonseca
Maria Regina Lobo Leite Figueiredo
Míriam Lopes Verbena
Ruy Osvaldo Aguiar Pfitzenreuter
Valdir Sales Saboya
Wilton Ferreira

1973

Alexandre Vannucchi Leme
Almir Custódio de Lima
Anatália de Souza Alves de Mello
Antônio Carlos Bicalho Lama
Arnaldo Cardoso Rocha
Emanoel Bezerra dos Santos
Eudaldo Gomes da Silva
Evaldo Luís Ferreira Sousa
Francisco Emanoel Penteado
Francisco Seiko Okama
Gildo Macedo Lacerda
Helber José Gomes Goulart
Henrique Ornelas Ferreira Cintra
Jarbas Pereira Marques
José Carlos Novaes da Mata Machado
José Manoel da Silva
José Mendes de Sá Roriz
Lincoln Bicalho Roque
Luís Guilhardini
Luís José da Cunha Manoel Aleixo da Silva
Manoel Lisboa de Moura
Merival Araújo
Pauline Philipe Reichstul
Ranúsia Alves Rodrigues
Ronaldo Mouth Queiroz
Soledad Barret Viedma
Sônia Maria Lopes Morais

1975

José Ferreira de Almeida
Pedro Gerônimo de Souza
Vladimir Herzog

1976

Ângelo Arroyo
João Baptista Franco Drummond
João Fosco Penito Burnier (Padre)
Manoel Fiel Filho
Pedro Ventura Felipe de Araújo Pomar

1977

José Soares dos Santos

1979

Alberi Vieira dos Santos
Benedito Gonçalves
Guido Leão
Otacílio Martins Gonçalves
Santo Dias da Silva

1980

Lyda Monteiro da Silva
Raimundo Ferreira Lima
Wilson Souza Pinheiro

1983

Margarida Maria Alves

Outras Mortes:

Afonso Henrique Martins Saldanha
Antônio Carlos Silveira Alves
Ari da Rocha Miranda
Catarina Abi-Eçab
Iris Amaral
Ishiro Nagami
João Antônio Abi-Eçab
João Barcellos Martins
José Maximiniano de Andrade Neto
Luiz Affonso Miranda da Costa Rodrigues
Newton Eduardo de Oliveira
Sérgio Correia
Silvano Soares dos Santos
Zuleika Angel Jones

Mortes no Exílio:

Ângelo Pezzuti da Silva
Carmem Jacomini
Djalma Carvalho Maranhão
Gerosina Silva Pereira
Maria Auxiliadora Lara Barcelos
Nilton Rosa da Silva
Therezinha Viana de Assis
Tito de Alencar Lima (Frei)

Desaparecidos no Brasil:

Adriano Fonseca Fernandes Filho
Aluísio Palhano Pedreira Ferreira
Ana Rosa Kucinski Silva
André Grabois
Antônio “Alfaiate”
Antônio Alfredo Campos
Antônio Carlos Monteiro Teixeira
Antônio de Pádua Costa
Antônio dos Três Reis Oliveira
Antônio Guilherme Ribeiro Ribas
Antônio Joaquim Machado
Antônio Teodoro de Castro
Arildo Valadão
Armando Teixeira Frutuoso
Áurea Eliza Pereira Valadão
Aylton Adalberto Mortati
Bergson Gurjão Farias
Caiupy Alves de Castro
Carlos Alberto Soares de Freitas
Celso Gilberto de Oliveira
Cilon da Cunha Brun
Ciro Flávio Salasar Oliveira
Custódio Saraiva Neto
Daniel José de Carvalho
Daniel Ribeiro Callado
David Capistrano da Costa
Dênis Casemiro
Dermeval da Silva Pereira
Dinaelza Soares Santana Coqueiro
Dinalva Oliveira Teixeira
Divino Ferreira de Souza
Durvalino de Souza
Edgard Aquino Duarte
Edmur Péricles Camargo
Eduardo Collier Filho
Elmo Corrêa
Elson Costa
Enrique Ernesto Ruggia
Ezequias Bezerra da Rocha
Félix Escobar Sobrinho
Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira
Francisco Manoel Chaves
Gilberto Olímpio Maria
Guilherme Gomes Lund
Heleni Telles Ferreira Guariba
Helenira Rezende de Souza Nazareth
Hélio Luiz Navarro de Magalhães
Hiram de Lima Pereira
Honestino Monteiro Guimarães
Idalísio Soares Aranha Filho
Ieda Santos Delgado
Ísis Dias de Oliveira
Issami Nakamura Okano
Itair José Veloso
Ivan Mota Dias
Jaime Amorim Miranda
Jaime Petit da Silva
Jana Moroni Barroso
João Alfredo Dias
João Batista Rita
João Carlos Haas Sobrinho
João Gualberto
João Leonardo da Silva Rocha
João Massena Melo
Joaquim Pires Cerveira
Joaquinzão
Joel José de Carvalho
Joel Vasconcelos Santos
Jorge Leal Gonçalves Pereira
Jorge Oscar Adur (padre)
José Humberto Bronca
José Lavechia
José Lima Piauhy Dourado
José Maria Ferreira Araújo
José Maurílio Patrício
José Montenegro de Lima
José Porfírio de Souza
José Roman
José Toledo de Oliveira
Kleber Lemos da Silva
Libero Giancarlo Castiglia
Lourival de Moura Paulino
Lúcia Maria de Sousa
Lúcio Petit da Silva
Luís Almeida Araújo
Luís Eurico Tejera Lisboa
Luís Inácio Maranhão Filho
Luiz Renê Silveira e Silva
Luiz Vieira de Almeida
Luíza Augusta Garlippe
Manuel José Nurchis
Márcio Beck Machado
Marco Antônio Dias Batista
Marcos José de Lima
Maria Augusta Thomaz
Maria Célia Corrêa
Maria Lúcia Petit da Silva
Mariano Joaquim da Silva
Mario Alves de Souza Vieira
Maurício Grabois
Miguel Pereira dos Santos
Nelson de Lima Piauhy Dourado
Nestor Veras
Norberto Armando Habeger
Onofre Pinto
Orlando da Silva Rosa Bonfim Júnior
Orlando Momente Osvaldo Orlando da Costa
Paulo César Botelho Massa
Paulo Costa Ribeiro Bastos
Paulo de Tarso Celestino da Silva
Paulo Mendes Rodrigues
Paulo Roberto Pereira Marques
Paulo Stuart Wright
Pedro Alexandrino de Oliveira Filho
Pedro Carretel
Pedro Inácio de Araújo
Ramires Maranhão do Vale
Rodolfo de Carvalho Troiano
Rosalino Souza
Rubens Beirodt Paiva
Ruy Carlos Vieira Berbert
Ruy Frazão Soares
Sérgio Landulfo Furtado
Stuart Edgar Angel Jones
Suely Yumiko Kamayana
Telma Regina Cordeiro Corrêa
Thomaz Antônio da Silva Meirelles Neto
Tobias Pereira Júnior
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Terça-feira, 25 de Agosto de 2009

... E TUDO O VENTO LEVOU

 


Há sete décadas começavam as filmagens do mais bem sucedido dos filmes feito pelo cinema, “... E o Vento Levou(Gone With The Wind), monumental obra de um dos mais célebres produtores da época de ouro de Hollywood, David O. Selznick, o fabricante de sonhos. De um esplendor mítico, trazendo uma beleza fotográfica avançada para a época, uma trilha sonora que se tornou parte dos clássicos do cinema, um elenco carismático e interpretações inesquecíveis; “... E o Vento Levou” é o filme que mais tempo demorou a ser exibido na televisão, e um dos poucos que ainda hoje obtém lucro ao ser exibido.
Baseado no romance homônimo da escritora Margaret Mitchell, escrito entre 1926 e 1929, o filme traz a história da saga da voluntariosa Scarlett O’Hara (Vivien Leigh), filha de um rico fazendeiro do sul dos Estados Unidos. Mimada e atrevida, Scarlett vive na fazenda do pai, a sonhar com o amor de Ashley Wilkes (Leslie Howard), que se casa com a doce Melanie Hamilton (Olivia de Havilland). É através desse amor platônico que ela encontra forças para enfrentar uma guerra civil, que leva a família à ruína. Por dez anos Scarlett O’Hara segue a sua paixão, sobrevive à guerra, mente, trai, casa-se três vezes para fugir à miséria. Na trajetória, envolve-se com o cínico Rhett Buttler, homem audaz, único que lhe conhece a verdadeira essência. É nas nuances do casal Scarlett e Buttler que se constrói um dos mais belos romances do cinema, numa arrebatadora história que prende gerações, sem nunca perder a grandiosidade de épico, construindo o maior filme feito pelo cinema americano.
Vivien Leigh vive uma inesquecível Scarlett O’Hara, a força que traz ao falar com os olhos, dá a intensidade perfeita à personagem. Mais de 1400 atrizes foram entrevistadas para viver o papel e cerca de 400 chegaram a fazer a leitura do roteiro. A procura pela atriz que daria rosto e corpo a Scarlett O’Hara ainda não tinha chegado ao fim, e as filmagens foram iniciadas. Sem saber quem seria a protagonista, a primeira cena do filme foi feita, trazia um grande incêndio em Atlanta, com 113 minutos rodados. Para produzir a cena que se tornaria antológica, foi posto fogo em cenários de filmes antigos da MGM (como os da primeira versão de King Kong). O incêndio foi tão intenso, que vizinhos do estúdio pensaram que ele estava pegando fogo, acionando os bombeiros. Assim, no dia 26 de janeiro de 1939, sob um grande incêndio, iniciava-se a saga daquele que seria considerado o mais grandioso de todos os filmes de Hollywood. 70 anos depois, “... E o Vento Levou” nada perdeu do seu glamour épico, muito menos a sua capacidade de conquistar um público que, mesmo diante das quatro horas da duração do filme, não se deixa cansar, fascinando-se com a sua beleza narrativa.

O Rosto de Scarlett O’Hara

Na procura de um rosto para Scarlett O’Hara, mais de 1400 atrizes foram candidatas à intérprete da heroína de Margaret Mitchelll. No meio da intensa disputa pelo papel, Bette Davis deu-se ao luxo de recusá-lo, por não querer contracenar com Errol Flynn, ator que acabou não fazendo parte do elenco. Katharine Hepburn fez de tudo para ganhar o papel, mas David O. Selznick teria comentado ironicamente, que não conseguia ver um homem correndo atrás dela por dez anos. Mesmo achando que a atriz não servia para o papel, Selznick estava inclinado aceitá-la, quando surgiu pelas mãos de Laurence Olivier, a atriz britânica Vivien Leigh, sua mulher na época. Ao fazer o teste, Vivien Leigh conquistou o tão cobiçado papel, apesar de severas críticas contra uma atriz de sotaque britânico a fazer o papel de uma mulher do sul dos Estados Unidos.
No corpo de Vivien Leigh surgiu Scarlett O’Hara, que começa o filme como uma mimada adolescente de 16 anos, filha mais velha de um fazendeiro sulista, plantador de algodão no norte da Georgia. É em Tara, propriedade dos O’Hara, onde Scarlett vive os seus sonhos juvenis. Vive inquieta ao lado dos pais, de duas irmãs e dos fiéis escravos. O pai explica a ela o valor da terra, a força que Tara exerce na vida de quem a lavrou e dela colheu as plantações.
A bela jovem nutre uma paixão platônica por Ashley Wilkes, filho de um fazendeiro vizinho do seu pai. Mas a sua paixão é atravessada pela súbita notícia do casamento do amado com a doce e aristocrática Melanie Hamilton. Durante a festa na casa dos Wilkes, na qual será anunciado o casamento, Scarlett decide declarar-se a Ashley, na esperança de que ele a ame e desista da noiva, para isto espera que todos tirem a sesta, encontrando-se furtivamente com Ashley na biblioteca. Mesmo depois de ouvir a declaração de amor, o rapaz está decidido a casar, diz amá-la como irmã, que ama a noiva Melanie. Irritada, Scarlett joga um vaso sobre Ashley, que a deixa sozinha. É neste momento que um misterioso cavalheiro, Rhett Buttler, visto como um homem de péssima reputação pelas mulheres, revela estar escondido na sala, e que acompanhou a revelação do segredo de Scarlett. Rhett sente-se irremediavelmente atraído por aquela bela e voluntariosa mulher. Começa o jogo de ódio e amor que os irá unir por toda a vida.
No meio de todos os imprevistos, a guerra civil bate às portas dos fazendeiros plantadores de algodão. A festa na casa do Wilkes traz a atmosfera do perigo e da conspiração dos sulistas, que se rebelariam contra o norte.
Menosprezada por Ashley, ironizada por Buttler e falada pelas moças que estão na festa, intempestivamente Scarlett decide, na esperança de atingir o amado e provocar-lhe ciúmes, seduzir Charles Hamilton, irmão de Melanie. Assim, ela rouba o pretende de India Wilkes, irmã de Ashley, aceitando casar-se com ele. Um cavaleiro surge no meio da festa, anunciando que a guerra chegara àquelas bandas. Os homens montam os seus cavalos, com a intenção de alistarem-se e seguirem para o conflito. Melanie e Ashley casam-se no meio do tumultuado momento. O casamento de Scarlett e Charles Hamilton realiza-se minutos antes do jovem partir para a guerra, onde morrerá, deixando uma viúva sem o mínimo apego e que jamais verterá uma lágrima por ele.
As seqüências da jovem e sonhadora Scarlett O’Hara, as cenas da festa na casa dos Wilkes, assim como o grande incêndio da primeira cena gravada, são dirigidas por George Cukor, que se desentenderia com o produtor, afastando-se das filmagens. 4% do filme foi dirigido por Cukor, mas o seu nome não consta nos créditos. Ele ainda dirigiria secretamente as atrizes Vivien Leigh e Olivia de Havilland, que perdidas a certa altura, procurou-o para orientações sobre as suas personagens.

Cenas Épicas de uma Guerra Sangrenta

Com a saída de George Cukor, a realização do filme passou a ser feita por Victor Fleming. Sua direção não agradaria a Vivien Leigh, com quem teve um desgaste, e nem a Olivia de Havilland.
Na precipitação que se casara, Scarlett O’Hara jamais se sentiu como esposa. Um casamento feito alguns minutos antes do marido partir para a guerra ao lado do seu amor, Ashley. Ao voltar da festa, Scarlett percebe que tudo mudara, pois como mulher casada, já não lhe era permitido qualquer diversão. Entediada em Tara, ela consegue convencer a mãe a deixá-la partir para Atlanta, para ajudar a cunhada Melanie. As intenções de Scarlett não são tão nobres, ela aproxima-se da mulher de Ashley com o objetivo de reencontrá-lo, podendo dele ficar mais próxima. Melanie está grávida. Num breve intervalo da guerra, Ashley visita a família em Atlanta, conseguindo a promessa de Scarlett que ela cuidará da mulher até que lhe nasça o filho.
A guerra chega a Atlanta, destruindo a cidade, balas de canhões explodem por todos os lados, inicia-se uma fuga em massa. Quando Scarlett está pronta para a fuga, Melanie entra em trabalho de parto. Presa à promessa que fizera a Ashley, ela fica, mesmo a odiar a cunhada.
A nesta parte do filme, a destruição de Atlanta, que surgem as míticas cenas que dão a dimensão de um grande épico. Desesperada, Scarlett caminha entre milhares de corpos dos sobreviventes da batalha de Gettysburg. Mais de mil figurantes misturam-se com bonecos de cera, dando a dimensão de milhares de mortos e feridos, numa tomada da câmera que acompanha a personagem numa grande viagem aérea, conseguida pela utilização de um guindaste de 43 metros de altura, que rolava por uma rampa de cimento armado. A seqüência pioneira foi desenvolvida por William Cameron Menzies, com efeitos especiais de Jack Cosgrove e Lee Zavits, entre outros.

Amargo Regresso a Tara

Nos tumultuados labirintos da guerra, encontros esporádicos entre Rhett e Scarlett prendem o público, num verdadeiro desafio de amor e ódio que os une. Será o capitão Buttler que retirará Scarlett, Melanie e o filho recém-nascido do meio do furacão das balas de canhões.
Depois de testemunhar os horrores da guerra, Scarlett só quer voltar para Tara, para o recanto da família. Rhett conduz Scarlett para fora de Atlanta, mas no meio do caminho, decide finalmente ir lutar na guerra, ao lado dos confederados. Toma Scarlett nos braços, roubando-lhe um beijo, para que tenha coragem de partir para o conflito, deixando-a sozinha com Melanie no meio da estrada. Scarlett tem medo, grita, chora, amaldiçoa Rhett por deixá-la ali, perdida no meio do caminho.
Enfrentando chuva, frio e os saqueadores das estradas, Scarlett só tem um objetivo, chegar a Tara. Quando finalmente consegue, encontra a fazenda do pai em ruínas, totalmente destruída pela guerra. Não há frutos no pomar, não há suprimentos na dispensa, não há alimentos plantados nos campos, animais nos pastos. Não há mais escravos a servir. Há apenas a miséria da guerra, a fome e a dor da perda. No meio da tragédia, Scarlett descobre que a mãe está morta, o pai ficara perturbado, perdendo a sanidade mental.
Os sonhos de Scarlett O’Hara sucumbem diante da tragédia que se abateu sobre Tara. Faminta, ela sai durante a noite, procurando por algum alimento que tenha restado nas plantações da fazenda. Encontra um único pé de cenoura. Arranca-a da terra e a come. Chora sobre a terra, depois se levanta. É neste momento que uma nova Scarlett nasce, Com o braço erguido, ela jura que jamais voltará a passar fome, que reerguerá Tara, que sobreviverá a todas as diversidades, que tirará daquela terra não só o sustento, como a força que a manterá viva. Uma nova fase da sua saga será contada. Uma nova Scarlett O’Hara surgiu.

Outra Vez Casada, Novamente Viúva

A guerra chega ao fim. Voltam os seus sobreviventes, entre eles Ashley. Scarlett, como filha mais velha dos O’Hara, luta para conseguir reerguer Tara. Para defender a sua terra, fora capaz de tudo, inclusive de matar um saqueador de guerra. É este clima que Ashley encontra ao retornar. Encontra a mulher, Melanie, agradecida a Scarlett por tudo que ela fez. Também Ashley perdera as suas terras. A mulher convence-o a ficar ao lado de Scarlett e ajudá-la a reerguer a fazenda. Com a volta de Ashley, Scarlett declara novamente o seu amor a ele, propondo que fugissem. Mas ele diz que não pode abandonar a mulher e o filho. Scarlett vê na recusa de Ashley apenas uma gratidão a Melanie, não o amor. Pensa que ele pode amá-la, apesar de não o fazer em respeito à mulher. É nesta esperança que mais uma vez, Scarlett conduz a sua vida e a expectativa do amor.
Scarlett descobre que Tara tem uma grande dívida de impostos com a união, que se não saldá-la, perderá as terras. Tenta seduzir Rhett para que lhe empreste o dinheiro, mas ao saber das intenções, o capitão mais uma vez é irônico, mandando-a embora. Scarlett descobre que o noivo da sua irmã Suellen, Frank Kennedy, agora um próspero comerciante, tem o dinheiro que ela precisa. Ela não pensa duas vezes, rouba o noivo à irmã, casando-se com ele e salvando Tara dos impostos.
Scarlett consegue convencer o marido a abrir uma serraria, onde passa a explorar os miseráveis da guerra. Torna-se uma mulher importante e odiada por todos. Para ela trabalham Ashley e o marido. Numa noite, ao voltar para casa, Scarlett é assaltada por dois homens, sendo salva por um antigo escravo do seu pai. Ao reportar os acontecimentos, Ashley e Frank decidem vingar a honra de Scarlett, atacando aqueles que planearam o assalto a ela. Mas Ashley é ferido e Frank morto. Scarlett está viúva novamente.
Sentindo-se culpada pela morte do marido, Scarlett entra em depressão, passando a beber. É assim que Rhett reencontra a mulher pela qual se apaixonara há muitos anos. Encontrando-a frágil, o capitão a beija mais uma vez, propondo-lhe casamento. Scarlett aceita, apesar de confirmar que não o ama. Scarlett casa-se pela terceira vez.

Amor e Ódio Unem Rhett Buttler e Scarlett O’Hara

Uma nova fase de riqueza surge na vida de Scarlett. O marido refaz Tara, deixando-a com o fausto de antes da guerra. Rhett compra uma mansão em Atlanta, para onde se muda com a mulher. O casal tem uma filha, Bonnie Blue Buttler.
Scarlett torna-se uma mulher fútil, fria e distante. Ao nascer a filha, para não perder a beleza do corpo, decide que não mais irá engravidar. Friamente comunica a Rhett que decidiu pela abstinência sexual, pois não deseja ter outro filho dele. Distanciam-se cada vez mais.
Mesmo casada, Scarlett jamais abandonou a ilusão do seu amor por Ashley. Em visita a serraria, ela encontra o amado melancólico. Juntos, eles relembram as suas vidas, antes e depois da guerra. Ashley abraça Scarlett em um tom fraternal, que é visto por sua irmã. Interpretando mal aquele ato, India Wilkes conta a Rhett o que presenciara, despertando-lhe o ciúme, a descrença em um dia conquistar o coração da mulher.
A irmã de Ashley espalha o que viu para todos. O amor de Scarlett por Ashley torna-se público. Todos comentam. Ao saber dos comentários, Scarlett recusa-se a ir ao aniversário de Ashley, temendo que Melanie soubesse dos boatos e a sua reação. Mas Rhett obriga Scarlett a ir à festa e enfrentar a todos. Melanie recebe Scarlett como uma irmã, de braços abertos, escandalizando a todos com a sua atitude.
Ao voltar da festa, Rhett e Scarlett discutem, brigam, num ato de fúria, ele a beija, leva-a a força para o quarto. Na manhã seguinte Scarlett acorda feliz, depois daquela noite de amor, ela começa a ver o marido com outros olhos. Mas Rhett diz à mulher que está pensando no divórcio, que viajará para Londres com a filha Bonnie, quando voltar, será para consolidar o divórcio.
Mas a noite de amor entre os dois deixou as suas conseqüências, quando Rhett volta, sabe que a mulher está grávida. Têm uma nova discussão, que termina com Scarlett a rolar pelas escadas, abortando o filho durante a queda. Melanie ajuda Scarlett a recuperar as forças. Entre ela e Rhett a distância é cada vez maior. Uma outra tragédia abate-se sobre o casal, a filha Bonnie cai de um cavalo, quebra o pescoço e perde a vida. O sentimento de culpa do casal leva-os a uma agressão mútua. Mais uma vez Melanie é chamada para intervir, para confortá-los e ajudá-los a superar a tragédia.
Tempos depois Melanie adoece. No leito de morte, as pessoas tentam impedir que Scarlett a visite, por considerá-la indigna da moribunda. Mas Melanie recebe Scarlett, num ultimo suspiro, pede a ela que cuide de Ashley. Ao ouvir o pedido final de Melanie, Rhett, que estava próximo, vai embora, sem que Scarlett perceba. Melanie morre.
Ashley desespera-se, chora a morte da esposa, afirmando o seu amor por ela. Scarlett percebe que ele jamais teve olhos que não fossem para a mulher. Percebe que o seu amor por Ashley fora uma ilusão juvenil, consumida pelo tempo, que não o ama. Ashley está livre, e ela também, livre daquela ilusão. Percebe que o amor que sente é pelo marido, Rhett. Procura por ele, mas não o encontra. Rhett retirara-se silenciosamente do quarto de morte de Melanie. Scarlett precisa dizer ao marido que o ama. Sai correndo desesperada pelas ruas, cobertas por um denso nevoeiro.
Ao chegar em casa, chama por Rhett, tem pressa em declarar o seu amor por ele. Encontra Rhett a arrumar as malas, pronto para partir. Por dez anos correra atrás daquela mulher, estava cansado de mendigar-lhe o amor. Por mais que ela, aos prantos, declare o seu amor, ele está decidido a deixá-la. Já à porta, Scarlett chora, pergunta a Rhett o que vai ser dela, que ficará sozinha. Ouve-se a frase que se perpetuaria pela história do cinema:
Francamente querida, eu não me importo.”
Rhett parte, desaparece no meio de um denso nevoeiro. Scarlett chora. De repente pára, pensa em como trazer o marido de volta, como resposta repete a frase que sempre dissera durante todo o filme, durante toda a sua vida: “Não quero pensar agora, penso amanhã.”
Mas não consegue deixar de pensar. Já não consegue adiar as decisões e o encontro com a sua consciência, com os seus sentimentos, já não pode deixá-los para o outro dia. Deixa-se cair de joelhos nas escadas, a chorar. De repente ouve as vozes dos homens que passaram por sua vida, de Rhett e do pai. Ambos dizem que é em Tara que retira as suas forças. As vozes tornam-se cada vez mais altas, repetem –se várias vezes, um eco ecoa um nome: Tara... Tara... Tara...
Scarlett ergue-se do desespero que o abandono de Rhett lhe deixara. Percebe que Tara é o ponto de partida da sua vida. É lá que ela encontra a sua força. Será para lá que voltará, e será lá que, se reconquistar Rhett, conseguirá fazê-lo. Ela repete em voz alta:
Tara! ... Lar! Irei para o meu lar e pensarei numa forma de tê-lo de volta! Afinal, amanhã é um novo dia!”
Numa última cena, Scarlett aparece debaixo da imensa árvore plantada em Tara, de onde a sua história foi vista, o vento bate sobre as folhas, formando uma grande silhueta daquela que passara por toda a saga da sua história sem jamais se deixar vencer. Num plano com um imenso céu laranja, com as silhuetas negras da árvore e de Scarlett O’Hara, encerra-se o maior de todos os filmes da época de ouro de Hollywood, ou talvez, o maior da sua história.

Os Bastidores das Filmagens

No dia 1 de julho de 1939 foram encerradas as filmagens de “... E o Vento Levou”. No final, o produtor David O. Selznick tinha 28 horas de projeção, com cerca de 60.000 metros de filme.
Diante de tanto material, Selznick trancou-se por vários dias com o montador Hal C. Kern e o seu assistente James Newcom. A montagem foi feita sem que nenhum dos cinco diretores (Victor Fleming, George Cukor, Sam Wood, William Cameron Menzies e Sidney Franklin), fosse consultado. Feita a montagem final, Selznick chamou Vivien Leigh de volta aos sets e filmaram a cena que Scarlett, abandonada por Rhett durante a fuga de Atlanta, esconde-se com a carroça debaixo de uma ponte, durante uma tempestade, enquanto uma tropa de nortistas passava sobre a mesma.
Estava concluído o filme que se tornou símbolo do glamour do cinema na sua época de ouro. Vários foram os que o dirigiram. Primeiro foi George Cukor, responsável por 4% do filme, principalmente pelo início. Victor Fleming substituiu Cukor, dirigindo 45% de “... E o vento Levou”. A sua direção foi contestada pelas atrizes Vivien Leigh e Olivia de Havilland, que passaram a ensaiar em sigilo na casa de Cukor. Diante dos aborrecimentos com as atrizes e da pressão das reclamações de Selznick, Fleming teve um colapso nervoso, sendo substituído por Sam Wood, que assumiu a direção em 1 de maio de 1939, dirigindo 15% do filme. Fleming recuperou-se, quando voltou, Wood continuou na direção, ambos em horários diferentes das filmagens. Também dirigiram “... E o Vento Levou”, William Cameron Menzies e Sidney Franklin. Somente o nome de Fleming foi creditado. Apesar de tantas trocas na direção, o filme, em momento algum, perdeu a coerência, tornado-se um patrimônio do cinema. Graças a uma montagem coesa, estas diferenças de estilos de direção desaparecem ao longo das quatro horas de duração, sem deixar que se torne cansativo.
Os diálogos de “... E o vento Levou” produziram frases célebres e antológicas, disseminadas por todos aqueles que o assistiram. A trilha sonora, composta por Max Steiner, é símbolo de reconhecimento aos ouvidos das mais diferentes gerações que se deixaram seduzir pela saga de Scarlett O’Hara. Finalmente, a fotografia, pioneira na época, traz uma concepção pictórica, traduzida em um fenomenal uso do Technicolor, fazendo do filme um primor técnico que não se desgastou ao longo das décadas.
Nunca uma escolha, diante de centenas de opções, de uma atriz foi tão perfeita quanto à de Vivien Leigh para interpretar Scarlett O’Hara. O olhar de fogo da atriz deu ênfase ao temperamento da personagem, uma mulher mimada, voluntariosa, manipuladora e de uma sedução irresistível. Reza a lenda que a atriz não suportava as cenas de beijos com Clark Gable, culpando um suposto mau hálito do ator. Intrigas a parte, a química dos atores fez do filme uma história apaixonante, mesmo diante de um amor que se distancia cada vez mais das personagens, que quando aumenta de uma das partes, repele a outra, criando um jogo de impossibilidades diante dos sentimentos. A atriz recebeu vinte e cinco mil dólares pela atuação no filme, em contrapartida com os cento e vinte mil dólares recebidos por Clark Gable. Mesmo diante da diferença salarial, Vivien Leigh viveu a mais fascinante das mulheres do cinema, ganhando o Oscar de melhor atriz por esta excepcional atuação.
Além do Oscar de melhor atriz, o filme arrebatou mais nove estatuetas: melhor filme, melhor diretor (Victor Fleming), melhor atriz coadjuvante (Hattie McDaniel), melhor direção de arte, melhor edição, melhor fotografia, melhor roteiro, Oscar honorário para William Cameron Menzies e Oscar técnico para Don Musgrave. Além dos prêmios, recebeu outras cinco indicações, entre elas a de melhor ator (Clark Gable) e melhor atriz coadjuvante (Olívia de Havilland). Hattie McDaniel foi a primeira atriz negra a receber um Oscar, ironicamente ela não pôde comparecer à estréia do filme em Atlanta, justamente por ser negra. “... E o Vento Levou” foi o primeiro filme colorido a receber um Oscar.
À época, a produção de “... E o Vento Levou” custou mais de cinco milhões de dólares, tendo alcançado quatro anos depois do seu lançamento, uma bilheteria de mais de trinta e dois milhões de dólares. Continua a ser o filme que ainda gera lucros em suas exibições pelo mundo.
Outros filmes foram lançados como continuação de “...E o Vento Levou”, mas passaram despercebidos diante da sua mediocridade e ante a grandiosidade do original. Acadêmico, repleto de mensagens de racismo, duração quilométrica, nada disso ofuscou o carisma do filme, a sua beleza épica, tão pouco diminuiu a força telúrica das suas personagens. O filme é o mais pleno retrato de uma Hollywood repleta de glamour, e é principalmente, a face iluminada de um fabricante de sonhos, o genial produtor David O. Selznick.

Ficha Técnica:

... E Tudo o Vento Levou

Direção: Victor Fleming
Ano: 1939
País: Estados Unidos
Gênero: Drama
Duração: 241 minutos / cor
Título Original: Gone With The Wind
Roteiro: Sidney Howard, baseado no livro de Margaret Mitchell
Produção: David O. Selznick
Música: Max Steiner
Direção de Fotografia: Ernest Haller e Ray Rennahan
Desenho de Produção: William Cameron Menzies
Direção de Arte: Lyle R. Wheeler
Figurino: Walter Plunkett
Edição: Hal C. Kern
Estúdio: Selznick International Pictures
Distribuição: MGM
Elenco: Clark Gable, Vivien Leigh, Leslie Howard, Olivia de Havilland, Hattie McDaniel, Thomas Mitchell, Barbara O’Neil, Evelyn Keys, Ann Rutherford, George Reeves, Fred Crane, Butterfly McQueen, Victor Jory, Everett Brown, Howard C. Hickman, Alicia Rhett, Rand Brooks, Carrol Nye
Sinopse: Uma reunião social acontece numa grande plantação na Georgia, Tara, cujo dono é Gerald O'Hara (Thomas Mitchell), um imigrante irlandês. Na mansão está Scarlett (Vivien Leigh), sua bela e teimosa filha adolescente. Scarlett ama obsessivamente Ashley (Leslie Howard), o primogênito do patriarca de Twelve Oaks. Ashley está comprometido com Melanie Hamilton (Olívia de Havilland). Scarlett acha a vida em Tara monótona, mas seu pai diz que Tara é uma herança inestimável, pois só a terra é um bem que dura para sempre. Ela revela um inapropriado comportamento nas festas, apesar das objeções de Mammy (Hattie McDowell), sua protetora escrava. Em Twelve Oaks Scarlett é o centro das atenções, em razão dos vários pretendentes que lhe ladeiam. Mais tarde Scarlett ouve os cavalheiros discutindo acaloradamente sobre a guerra eminente que acontecerá entre o norte e o sul, crendo que derrotarão em meses os ianques. Só Rhett Buttler (Clark Gable), um aventureiro que tem o hábito de ser franco, não concorda com estas declarações movidas mais pelo orgulho do que pela lógica. Um jovem, Charles Hamilton (Rand Brooks), sentindo-se insultado, tenta desafiar Rhett para um duelo, mas ele se esquiva. Scarlett procura Ashley, declarando-se a ele. Ashley diz que ama Melanie, entretanto admite que ama Scarlett fraternalmente. Ela fica irritada, esbofeteando-o. Ashley deixa a biblioteca. Ela lança um vaso contra a lareira e descobre que atrás de um sofá estava Rhett. Quando Scarlett lhe diz que não é um cavalheiro, Rhett retruca dizendo que ela não é uma dama. Rhett fica atraído pela beleza de Scarlett. Em Twelve Oaks chega um cavaleiro, para dizer que a guerra começou. Charles vai dizer a Scarlett que a guerra foi declarada, com todos os homens indo se alistar. Enquanto via Ashley se despedir de Melanie, Scarlett ouve Charles lhe pedir em casamento. Movida pela mágoa, ela aceita e diz que quer casar antes que ele parta. Melanie e Ashley casam-se num dia e Scarlett e Charles no outro. O que Scarlett desconhecia é que o futuro lhe reservava dias muito mais amargos, pois durante a Guerra Civil Americana, várias fortunas e famílias seriam destruídas.
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Domingo, 23 de Agosto de 2009

DIVINDADES SIDERAIS

 

 

Os astros sempre foram motivos de atenção, adoração e estudos das civilizações mais remotas. Antes de alcançar o apogeu intelectual e filosófico que se espalhou pelo mundo antigo, os gregos em seus primórdios, tinham dificuldade em explicar a origem do movimento dos astros. Como tinham poucas informações concretas sobre eles, desprovidos de estudos científicos, transformaram em deuses o Sol, a Lua, a Aurora e outros, criando as divindades siderais e atmosféricas.
As divindades siderais estão divididas em dois grupos, sendo o primeiro composto pelos deuses Hélios (Sol), Selene (Lua) e Eos (Aurora), considerados como prole da segunda geração de deuses, os Titãs. O segundo grupo é formado por Eósforo (o portador da manhã); Fósforo (o portador da luz), nomes primitivos do planeta Vênus, que em Roma identificava-se com Lúcifer; e, Héspero (Vésper), o astro da tarde, invocado como guia dos cortejos nupciais. Héspero é tido como o pai das Hespérides, as ninfas da tarde.
Hélios, com os seus cabelos dourados, corpo atlético e olhos serenos, era o filho mais belo do titã Hipérion e da titânia Teia. Hipérion em grego significa “o que se move no alto”, sendo ele um epíteto do próprio Sol. Em uma das versões sobre o mito, Hélios, por sua beleza e serenidade, despertou a inveja dos seus tios, os outros Titãs. Este sentimento de ódio levou a que cometessem um ataque de fúria contra o sobrinho, atirando-o às águas do rio Erídano. Apesar de lutar contra a fúria das correntezas, Hélios teria sido tragado por elas. Ao saber da morte do irmão, Selene não teria suportado a dor e arremessou-se do alto do palácio dos pais, também perecendo. Mas os irmãos não tinham morrido, ascenderam ao Olimpo, ao lado dos imortais, transformando-se nos poderosos deuses Hélios e Selene, que iluminavam o mundo, chamados agora de Sol e Lua. Ao lado da irmã Eos, a Aurora, eles traziam a claridade para a humanidade.

Hélios, o Sol

O deus Sol foi cultuado por todas as civilizações antigas. Numa época bastante remota, estendeu-se pela Grécia o culto a Hélios, divindade que tinha como função iluminar os deuses e os homens, fazendo brotar as plantas e amadurecer os frutos. O culto a Hélios ter-se-ia originado na Ásia, com paralelos similares a Samas, divindade solar da Mesopotâmia.
No mito de Hélios encontramos o deus a percorrer o céu sobre um carro de ouro, fabricado pelo artesão dos deuses e senhor do fogo, Hefestos (Vulcano). Hélios traz o seu carro atrelado a quatro velozes cavalos brancos, que soltam fogo pelas narinas. Os nomes dos cavalos do Sol sofrem alterações de acordo com as várias versões da sua lenda, sendo os mais tradicionais Eôo (oriental), Éton (cor de fogo), Pírois (eu queimo) e Flégon (eu brilho). Noutras versões, há os cavalos Etíope e Lampo (resplandecente).
Conduzindo o seu carro de ouro, Hélios percorre uma longa viagem pelo mundo, partindo de um pântano formado pelo Oceano, no longínquo país da Etiópia, no Oriente. Hélios cavalga o céu envolto em um leve manto, trazendo um reluzente capacete. Percorre o azul celeste em uma corrida veloz, trazendo luz e calor para todas as partes do universo. Ao meio-dia Hélios alcança o ponto mais alto da sua trajetória, então o carro começa a descer na direção do Ocidente. Ao chegar no país das ninfas Hespérides, submerge no Oceano, onde os cavalos se banham, indo descansar na ilha dos Bem-Aventurados. Hélios reúne-se a sua família, que o espera em um barco, no qual navega toda a noite, até atingir no dia seguinte, o ponto de partida e recomeçar o vôo pelo céu.
Hélios tem a sua residência na ilha de Ea, é dono de sete rebanhos de bois e sete rebanhos de ovelhas, que segundo Aristóteles, os animais representam os 350 dias e as 350 noites do antigo calendário solar. Hélios é o deus que tudo vê, que tudo sabe, descobrindo delitos e punindo os culpados, exercendo assim, o controle ético sobre os homens.
Das lendas que envolveram o mito de Hélios, a mais famosa é a do seu filho Faetonte. Para provar a Épafo que era filho do Sol, Faetonte consegue convencer o pai a deixá-lo dirigir os quatro cavalos pelo céu. Preso a uma promessa, Hélios permite que o filho o faça. Cavalgando os céus, Faetonte perde o controle sobre os cavalos, que começam a galopar sem direção, bem próximos da terra, queimando-a e tirando a respiração dos homens. Perdidos pelos céus, os cavalos passam pela Etiópia, aproximam-se tanto dos homens que se lhe mudam a cor, passando de brancos a negros. Faetonte continua perdido pelo céu, causando grandes estragos à humanidade. Ao ver a imprudência do filho do Sol, Zeus (Júpiter), o senhor dos deuses, fulmina Faetonte com um raio, o jovem cai morto nas águas do rio Erídano. A Hélios só resta prantear o filho.
Na Grécia, o local principal do culto a Hélios era na ilha de Rodes, onde todos os anos eram celebradas as festas Helíacas, que traziam jogos, certames musicais, culminando no sacrifício de quatro cavalos atirados ao mar. Em 291 a.C. o escultor Cares fez a imagem mais popular do deus, a estátua que ficou conhecida como o Colosso de Rodes, uma das sete maravilhas do mundo antigo.
Com o tempo (a partir do século V a.C.), o culto a Hélios começou a declinar por toda a Grécia, sendo substituído por Apolo, o deus solar e da luz, que passou a ser identificado ao Sol, assumindo as suas principais características.

Selene, a Luz de Prata das Trevas

Selene, a Lua, irmã de Hélios e Eos, traz uma coroa de ouro na cabeça, veste trajes fulgurantes, iluminando a atmosfera em trevas. O seu trabalho começa quando Hélios, ao entardecer, termina a sua viagem pelo mundo. Então Selene parte em um carro de prata, puxada por belos cavalos brancos, emanando luz por toda a escuridão da noite. Há versões da lenda que não lhe conferem um carro de prata, mas apenas um cavalo que ela monta em sua viagem pelo céu.
O culto à Lua é mais antigo entre as civilizações do que o culto ao Sol. O mito de Selene é anterior ao mito de Hélios. Apesar de não ter grandes cultos, os povos associavam a Lua com a fertilidade, com o crescimento das plantas, sendo responsável pela fecundidade dos humanos e dos animais.
O culto à Selene perdeu as características diante da deusa Ártemis (Diana), irmã gêmea de Apolo, deusa da caça e da castidade, assumindo também a função de deusa da Lua. Em Roma Luna era a deusa lunar, sendo cultuada em um templo construído no monte Aventino, sendo também assimilada a Diana. Selene foi associada também a Hécate, a deusa que ronda os túmulos.
A lenda que caracterizou o mito, foi a sua paixão por Endimião, o jovem pastor mergulhado em um sono eterno. Obcecado pelo desejo de agarrar a juventude eterna, Endimião pede a Zeus que lha conserve para sempre. O senhor dos deuses concede-lhe o desejo, desde que ele concorde em dormir um sono infinito. Assim, quando Endimião cansado da labuta com os animais de seu rebanho, deita-se sobre a relva para descansar um instante, é envolvido em um sono do qual jamais irá despertar. Selene, ao passar pelos campos, apaixona-se pela beleza serena daquele homem adormecido. Desce ao mundo e deita-se ao lado de Endimião, por quem está irremediavelmente apaixonada. Afaga-lhe os cabelos, beija-lhe as faces, a boca, mas ele não acorda. Todas as noites, após caminhar pelo mundo distribuindo luz, Selene regressa aos campos onde está o amado, deita-se ao seu lado, adormecendo encostada no seu peito, a sonhar com o dia que Endimião se irá erguer daquele sono eterno e abraçá-la e beijá-la. Endimião representa o carinho da Lua a iluminar os homens docemente, sem despertá-los do sono e do repouso que se lhes infringe o Sol.

Eos, a Aurora

Eos, a Aurora, é irmã de Hélios e Selene, completando a tríade das grandes divindades siderais. É uma deusa de róseos dedos, que abre a porta do céu ao carro de Hélios. É a primeira luz da manhã, trazendo consigo a primeira brisa, que esparge o orvalho sobre os campos, desperta os animais e os homens, trazendo-lhes o primeiro calor do dia, que estava envolto na frieza da noite.
Eos movimenta-se pelo céu conduzindo um carro púrpuro, guiado por dois cavalos, Lampo e Faetonte, que trazem arreios multicoloridos. Quando Eos passa pelo céu, o mundo, por breves minutos, enche-se de cores. O fenômeno das auroras no céu é típico apenas do hemisfério norte, daí a importância que os gregos davam a ele, como a promessa das primeiras luzes da manhã.
O mito de Eos é descrito pelos poetas como uma bela e jovem mulher de cabelos esvoaçantes, ágil e graciosa, movida de asas nos ombros e nos pés. A lenda refere-se a Aurora como uma deusa de amores intensos e fugazes, presos na inconstância dos seus caprichos. É mãe de alguns ventos e astros, frutos do seu casamento com Astreu (“o homem estrela” ou “o céu estrelado”).
O caráter inconstante de Eos teria sido provocado depois que se apaixonara por Ares (Marte), o que despertou o ciúme de Afrodite (Vênus), deusa do amor, e amante do deus da guerra. Desde então, Afrodite transformou Eos em uma criatura inquieta e atormentada por paixões efêmeras e insaciáveis. Ser amado pela Aurora significava uma maldição, pois o amado logo seria abandonado ao desespero e à solidão.
O amor de Eos por Titono, irmão do rei Príamo, de Tróia, é a lenda mais famosa do mito. Ao apaixonar-se pelo mortal troiano, Eos decidiu raptá-lo, levando-o para terras distantes da Etiópia, em um lugar próprio para os grandes amores. Para não perder o amado, pede a Zeus que o torne imortal, mas se esquece de pedir a juventude eterna. Assim, Titono envelhece como todo ser humano, mas não morre, pois se tornara imortal. A velhice consome o pobre Titono, que atravessa os séculos senil, cansado, sem forças e inútil. Titono vai definhando, até que Eos penalizada com a decrepitude do amante, transforma-o em uma cigarra.
Em épocas posteriores da cultura grega, com a chegada dos grandes filósofos e matemáticos, os grandes segredos siderais passam a ser motivos de estudos e avanços da ciência, o que eliminou o seu caráter mitológico. Com a evolução dos estudos filosóficos, o mito esvai-se, cedendo lugar à teoria e às hipóteses. As divindades siderais perdem, aos poucos os seus mistérios, enquanto que Apolo e Diana, deuses solares e lunares respectivamente, ganham espaço na literatura e no teatro grego.

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Quinta-feira, 20 de Agosto de 2009

OS TEMPLÁRIOS

 

 

No decorrer dos séculos, três grandes religiões politeístas, com as mesmas raízes foram formadas, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Apontando Abraão como o pai de todas elas, cada uma, ao seu modo, elegeu a região atual da Palestina e do Estado de Israel, como Terra Santa, obrigatória na peregrinação dos seus fiéis.
Considerada sagrada por três religiões, Jerusalém sempre foi motivo da cobiça de cada uma delas, que reclamavam para si os direitos de administrá-la. A cidade sagrada esteve sob o controle dos judeus até 70 a.D., ano que foram massacrados pelos romanos, sendo levados como escravos, ou iniciando pelo mundo uma grande diáspora. Com a separação do cristianismo do judaísmo e o surgimento do islamismo, a cidade aumentou a sua importância sagrada, sendo palco constante de guerras por sua disputa. As chamadas guerras santas, originaram as cruzadas do século XI, movimento beligerante que tinha como objetivo conquistar e manter Jerusalém sob o domínio cristão. Esta guerra duraria alguns séculos.
Após a conquista de Jerusalém pelos cruzados, a peregrinação dos cristãos tornou-se freqüente na vida do homem medieval. Vindos de longe, os peregrinos eram constantemente assaltados por caravanas de sarracenos. Para proteger os peregrinos na Terra Santa, surgiu em 1119, “Os Pobres Soldados de Jesus Cristo”, que futuramente seriam conhecidos como “Os Cavaleiros do Templo de Salomão” ou simplesmente, “Os Templários”.
Com o tempo os Templários constituiriam a maior ordem religiosa e militar do mundo medieval, ajudando à expulsão dos muçulmanos da Europa, e às cruzadas, dando apoio e logística militar aos cristãos. Destemidos, os Templários alcançaram por dois séculos um apogeu em poder, riquezas e conhecimentos, o que despertou para si a cobiça e inveja de vários monarcas europeus, que passaram a ter menos poder do que os cavaleiros da ordem. Quando Jerusalém caiu novamente nas mãos dos sarracenos, os Templários foram acusados de culpados. Desgastados, passaram a ser alvo de lendas e difamações, sendo acusados de sodomia, bruxaria, heresia e escárnio à adoração da cruz e de Cristo. Perseguidos pelo poderoso rei francês Filipe IV, que os entregou à inquisição, os Templários foram presos, torturados e levados a confessar os mais hediondos crimes, sendo expropriados e queimados na fogueira. Sob pressão do monarca francês, o papa Clemente V declarou a ordem extinta em 1312. Jacques de Molay, o último grão-mestre do Templo, foi executado na fogueira em 1314.
Culpados ou não dos crimes que se lhe foram imputados, os Templários reuniram ao seu redor as mais calorosas lendas, deixaram um patrimônio arquitetônico vastíssimo por onde passaram. Os mistérios da ordem, ainda hoje, suscitam a imaginação de historiadores, escritores e leigos.

O Monte do Templo

Jerusalém, a cidade sagrada do cristianismo, do islamismo e do judaísmo, foi palco de grandes conquistas ao longo dos tempos. Foi nesta cidade que, em um afloramento de rocha no monte Moriá, local indicado por Deus, Abraão levara o filho Isaac para sacrificá-lo em holocausto ao criador. Impedido por um anjo de Deus, Abraão consolidou a sua aliança com o criador, seria pai de muitas nações e religiões.
Na virada do primeiro milênio antes de Cristo, David, rei dos judeus, descendente de Abraão, conquistou Jerusalém aos jebuseus. No local próximo às imediações do afloramento da rocha onde Abraão teria feito os preparativos para o sacrifício do seu filho Isaac, no monte Moab, existia uma eira de propriedade do jebuseu Onã. Por ordem de Deus, o rei David comprou-a para que ali se erguesse um templo para abrigar a Arca da Aliança. Um grande Templo seria erguido no local pelo rei Salomão, filho de David, em 950 a.C.
Conhecido como o Templo de Salomão, este foi destruído em 586 a.C., pelos caldeus, que sob o comando Nabucodonosor, invadiram Jerusalém, fazendo os judeus escravos, levando-os para a Babilônia. A Arca da Aliança desapareceria para sempre. Os filhos de Abraão só voltariam à Palestina quando os persas conquistaram e subjugaram os caldeus, tendo a permissão do rei Ciro para voltarem e reconstruírem um novo Templo, em 516 a.C. O segundo Templo foi aumentando por Herodes, alcançado o seu apogeu arquitetônico. Foi deste Templo que Jesus Cristo expulsou os infiéis, tornando-o assim, sagrado para os cristãos. Em 70 d.C., o segundo Templo seria totalmente destruído pelos romanos, como propósito de esmagar uma grande rebelião dos judeus, que a partir de então, deixaram a Palestina, iniciando uma grande diáspora pelo mundo antigo. No monte do Templo, no ano de 135, foram erguidos santuários a Zeus e ao imperador romano Adriano. Com a conversão de Roma ao cristianismo, no século IV, os templos pagãos foram abandonados ou destruídos. Bizâncio, cidade estratégica entre a Europa e o Mar Negro, foi rebatizada com o nome de Constantinopla, tornando-se a capital do império romano do oriente. Jerusalém e o restante da Palestina ficariam sob a jurisdição da cristã Constantinopla.
Com o surgimento do islamismo, no século VII, Jerusalém passaria a ser considerada cidade santa do islã. Maomé, o profeta fundador do islamismo, era descendente de Ismael, filho de Abraão e da escrava Hagar. Em 620, o profeta teve uma visão, na qual cavalgava um corcel celestial, ao lado do anjo Gabriel, até o monte do Templo, em Jerusalém, para reunir-se a Abraão, Moisés e Jesus, ascendendo ao trono de Deus, passando pelos sete céus. Quando Maomé morreu na Arábia, em 632, os seus seguidores viram na visão do profeta a sua transfiguração aos céus, fazendo assim, a cidade de Jerusalém sagrada ao islamismo.
O cristianismo consolidou-se por todos os reinos da Europa, só vindo a ser ameaçado pela expansão do islamismo, que chegou à península Ibérica, dominando-a por séculos. Aos poucos a língua árabe, assim como a sua cultura e religião, foram disseminadas por todas as terras conquistadas, substituindo o grego e aramaico na Palestina e na Síria. Quando o califa Omar entrou em Jerusalém, foi orar no monte do Templo, que desde a sua destruição, tornara-se um lugar de depósito de lixo dos bizantinos. Omar considerava o local da rocha sagrado, por ser o “Templo da viagem noturna do profeta”, construindo ali uma mesquita, al-Aqsa, transformando Jerusalém, ao lado de Meca e Medina, em uma das três cidades sagradas do islã. Cinqüenta anos depois, o califa omíada Abd al-Malik, construiu uma segunda mesquita sobre a rocha na qual Abraão sacrificaria o filho, e da qual Maomé havia ascendido o céu. Com a sua cúpula dourada, foi a primeira grande mesquita construída, sendo de uma beleza arquitetônica que chegou imponente aos dias atuais. No monte estava erguido um novo Templo, desta vez com a marca do islamismo.

As Cruzadas

Vários grupos de mercenários foram convertidos ao islamismo, o que facilitava a sua expansão pelo mundo antigo. No século XI, os turcos seljúcidas conseguem unificar uma parte dos territórios convertidos pelos mercenários. Na sua expansão, os seljúcidas tornam-se a maior ameaça ao império Bizantino. Em 1071 eles derrotam os exércitos bizantinos em Manzikert, conquistando o leste e o centro da Anatólia. Em 1078, os seljúcidas tomam Jerusalém.
Enfraquecido, o império Bizantino pede ajuda ao ocidente. Diante da ameaça de uma expansão islâmica, de uma possível repressão turca aos peregrinos cristãos à Terra Santa, o ocidente decide ajudar os irmãos bizantinos. Em 1095, o papa Urbano II convoca o concílio de Clermont, no qual exorta todos os reis cristãos e toda a população a libertar a Terra Santa dos “infiéis” sarracenos, devolvendo Jerusalém à soberania cristã. A multidão presente ao concílio fica eufórica, aceitando de imediato o desafio de libertar Jerusalém.
A primeira caravana partiria em 1097. Contando com o apoio de toda a população cristã, homens que levavam como símbolo uma cruz vermelha sobre as suas roupas, seguiram rumo ao oriente, com o objetivo de libertar a Terra Santa. As cruzes vermelhas nas roupas e nas bandeiras fizeram com que esses exércitos ficassem conhecidos como “cruzados”. Assim, as cruzadas foram iniciadas, tornando-se um movimento que atraía jovens em busca não só da santidade dos lugares sagrados, mas também de fortunas diante das pilhagens que se sucediam pelo caminho.
Após uma longa viagem e intensas batalhas, em 7 de junho de 1099 o exército cruzado levantou acampamento diante dos muros de Jerusalém. Na noite de 13 de julho teve início o assalto à cidade. Após alguns dias de batalha, o cruzado Tancredo e os seus cavaleiros normandos, lutaram com os muçulmanos, abrindo caminho até o monte do Templo, tomando a Cúpula da Rocha, pilhando os seus tesouros. Derrotado, o governador muçulmano Iftikhar e a sua guarda pessoal, entregou a cidade a Raimundo de Toulouse, em troca do tesouro da cidade e de um salvo-conduto que lhe permitisse sair com o seu séquito de Jerusalém. Feitas as negociações, os muçulmanos que restaram, refugiados na mesquita de al-Aqsa, foram todos mortos. Os judeus refugiados na sinagoga foram queimados dentro dela, incendiada pelos cruzados. Graças aos cruzados, Jerusalém estava novamente sob o comando dos cristãos.

Surge a Ordem do Templo

O conde Hugo de Champagne governava de Troyes, um rico e próspero principado em terras francesas. Em 1104 foi com um séquito de cavaleiros à Terra Santa, entre eles estava Hugo de Payns. Natural de Payns, era administrador na casa do conde. Quando Hugo de Champagne voltou à Europa, Hugo de Payns continuou em Jerusalém.
Mesmo estando sob o comando dos cristãos, Jerusalém era cercada por mercenários muçulmanos que atacavam os peregrinos pelas estradas, roubando-os e causando-lhes suplícios físicos. Diante do problema, Hugo de Payns e o cavaleiro Godofredo de Saint-Omer propuseram ao rei Balduíno II a criação de uma organização de cavaleiros que seguiriam a regra de uma ordem religiosa, e que se devotariam a proteger os peregrinos. A regra religiosa que seguiriam seria a de Agostinho de Hipona, adotada pelos cônegos da Igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém.
Balduíno II e o patriarca de Jerusalém, Warmund de Picquigny, aprovaram a proposta. No dia de natal de 1119, Hugo de Payns e outros oito cavaleiros, entre eles Godofredo de Saint-Omer, Payen de Montdidier, Geoffroy Bissot, Archambaud de Saint-Aignan e Rossal (ou Rolando), fizeram votos de pobreza, castidade e obediência perante o patriarca na Igreja do Santo Sepulcro. Os cavaleiros chamaram a si mesmos de “Os Pobres Soldados de Jesus Cristo”, não ostentando a princípio um hábito, usando simplesmente as suas roupas seculares. Balduíno II e Warmund de Picquigny proporcionaram aos cavaleiros benefícios que lhes possibilitavam uma boa renda. O rei deu-lhes para viver a mesquita de al-Aqsa, que a esta altura, tinha sido transformada em um palácio, situado no lado sul do monte do Templo, local que os cruzados chamavam Templum Salomonis (Templo de Salomão). Por habitarem neste sítio, vieram a ser conhecidos sucessivamente como “Os Pobres Soldados de Jesus Cristo e do Templo de Salomão”, “Os Cavaleiros do Templo de Salomão”, “Os Cavaleiros do Templo”, os “Os Templários” ou ainda, “O Templo”.
Em janeiro de 1129, Hugo de Payns compareceu ao concílio da igreja reunindo em Troyes, na França, para assegurar a aprovação da nova ordem pela igreja. Aprovado no concílio, a ordem foi confirmada pelo papa Honório II. A ela foi concedido o hábito branco com uma cruz vermelha no peito. Como símbolo, foi adotado um cavalo montado por dois cavaleiros, numa clara alusão à pobreza. O Salmo de David, “Non nobis, Domine, non nobis, sed Nomini Tuo da Gloriam” (“Não para nós, Senhor, não para nós, mas para Glória de Teu Nome”), passou a ser o lema dos Templários.
Com o passar do tempo, fundiram-se as habilidades militares com a vocação religiosa. Os Templários mediante a grandes doações, passaram a sustentar-se por uma grande fortuna e um amplo poder sobre o mundo cristão. A estrutura da ordem foi organizada por uma hierarquia que abrigava de sacerdotes a soldados. Nobres deixavam a vida secular para integrarem a ordem, transferindo para ela as suas fortunas.

O Declínio dos Templários

Por quase dois séculos, os Templários transformaram-se na maior organização militar-religiosa do mundo cristão. Com amplos treinamentos bélicos, os cavaleiros combatiam os sarracenos não só na Terra Santa, como também nos reinos europeus ocupados, como os ibéricos, ajudando os cristãos a tomarem a península aos mouros. Como recompensa, os reis davam-lhes fortalezas, privilégios e poderes ilimitados, além de grandes doações financeiras. A presença dos Templários podia ser vista por toda parte, administravam povoados, construíam castelos, igrejas, catedrais. Além dos combates seculares contra os inimigos mouros, ajudavam na fiscalização dos cumprimentos das leis, adquiriam grande influência sobre reis e nobres que conduziam a política dos reinos cristãos. Paralelamente, desenvolviam estudos secretos de astronomia, matemática e medicina, mantendo suas reuniões em absoluto segredo. Com o tempo, os poderes dos Templários superaram os da igreja e dos monarcas.
As sucessivas derrotas sofridas pelos cruzados no século XIII, culminando com a volta de Jerusalém ao domínio muçulmano, enfraqueceu o prestígio da ordem. O desgaste com os reveses das guerras, o imenso poder da ordem, a sua fortuna, os princípios trancados secretamente, tudo suscitou um isolamento, despertando sobre os Templários a ira de alguns monarcas, e a vontade desses recuperarem o poder diante da igreja e do mundo cristão.

Torturados e Queimados nas Fogueiras

Felipe IV, o Belo, rei da França, devia terras e imensas somas de dinheiro aos Templários. Em 1305, o ambicioso rei pensou que com a ascensão do francês Beltrão de Got ao papado, com o nome de Clemente V, a quem apoiara, teria um papa submisso a suas ordens.
Filipe IV tinha em mente levar o poder e glória da França além do mediterrâneo, organizando uma cruzada sob as suas ordens que recuperasse de vez a Terra Santa. Mas para isto, teria que limitar o poder das ordens religiosas militares. Para isto, convenceu Clemente V a fazer a fusão das ordens do Templo e do Hospital, sendo ele o comandante da nova ordem resultante da fusão. O grão-mestre do Templo, Jacques de Molay, opôs-se à fusão, recusa que resultou no seu fim e no fim da própria ordem.
Diante da recusa do grão-mestre, o rei francês iniciou um processo de difamação dos Templários, fazendo espalhar por todas as terras cristãs as mais infames acusações contra os templários. Panfletos anônimos eram impressos e espalhados, eles traziam ataques aos Templários e ao próprio papa, que os defendia. Entre as difamações disseminadas, estavam as acusações de que a ordem entregara-se à adoração do diabo; aos iniciados seria dito que Jesus Cristo era um falso profeta, crucificado para punir os próprios pecados, não para redimir o mundo; aos iniciados era ordenado que negasse Cristo, escarrasse, pisasse e urinasse em uma cruz; o postulante era obrigado a beijar o templário que o recebera na boca, no umbigo, nas ancas, na base da espinha dorsal e no pênis; teriam que ter relações sexuais entre si, sendo espancado caso recusasse; em cerimônias secretas, eles veneravam um demônio chamado Baphomet.
As acusações horrorizaram ao povo e mesmo ao clero. Quando Jacques de Molay chegou a Paris, no dia 12 de outubro de 1307, foi preso no dia seguinte, sexta-feira 13, a mando de Filipe IV. Três semanas antes, o rei tinha enviado ordens secretas a seus súditos, ordenando a prisão de todos os membros do Templo em seus reinos. Quinze mil cavaleiros foram presos em toda a França em um único dia, sendo entregues à inquisição, submetidos a torturas. Sofrendo com as mais torpes torturas, em janeiro de 1308, 134 dos 138 Templários presos em Paris tinham admitido algumas ou todas as acusações feitas contra eles, entre os confessos, estava o próprio Jacques de Molay.
Mas os Templários estavam diretamente sob o julgo do papa, não podendo ser entregues à inquisição ou às ordens de um rei, sem que fosse autorizado pelo sumo sacerdote. Assim, Clemente V tirou os Templários das mãos da inquisição. Ao se ver livre das torturas, Jacques de Molay e muitos outros, revogaram a confissão diante do papa.
Mas o estrago na ordem e na sua idoneidade diante dos cristãos já tinha sido feito de forma indelével. Pressionado, Clemente V, em acordo com Filipe IV, decidiu em novembro de 1309, reunir uma comissão para ouvir novamente os acusados Templários. Em 1310, a decisão de dissolver a ordem já estava selada, um concílio para este fim foi convocado para outubro, mas teve que ser adiado por um ano, porque a comissão não havia apresentado um relatório. Nos reinos fora da França, havia uma certa resistência ao fim da ordem. Para justificar este fim, em março de 1311, Clemente V ordenou ao arcebispo de Tarragona e ao bispo de Valência que usassem a tortura para extrair confissões dos Templários. Em 16 de outubro de 1311, após um ano de atraso, um concílio da igreja reuniu-se em Vienne, cidade junto ao Ródano. No dia 3 de abril de 1314, Clemente V leu a bula Vox in excelso, que abolia a Ordem do Templo. A sua extinção propagou-se por toda a Europa, os seus bens e fortuna foram diluídas em outras ordens. No dia 18 de março de 1314, Jacques de Molay, o último grão-mestre dos Templários, então um velho com mais de setenta anos, em julgamento, pronunciou-se inocente, e inocentando também a ordem, mesmo sabendo que ao agir assim, terminaria na fogueira. Ao lado de Geoffroy de Charney, foi conduzido no fim da tarde a Île-des-Javiaux, uma pequena ilha no rio Sena, sendo ambos amarrados a um poste e queimados. De noite, frades do mosteiro agostiniano situado à beira do Sena, recolheram os ossos carbonizados dos dois templários como se fossem relíquias de santos.
Mais tarde foi dito que antes de morrer, Jacques de Molay lançou um último desejo a Clemente V e a Filipe IV, convocou-os a comparecer diante do tribunal de Deus antes que o ano terminasse. Clemente V morreu pouco mais de um mês, no dia 20 de abril. Filipe IV, seguiu-o para o túmulo no dia 29 de novembro do mesmo ano, depois de um acidente durante uma caçada. Estava cumprida a maldição de Jacques de Molay, o último dos Templários.

Grão-Mestres da Ordem do Templo

1119-1136 – Hugo de Payns
1137-1149 – Roberto de Craon
1149-1152 – Everardo de Barres
1152-1153 – Bernardo de Trémélay
1153-1156 – André de Montbard
1156-1169 – Bertrand de Blanquefort
1169-1171 – Filipe de Nablus
1171-1179 – Odon de Saint-Amand
1180-1184 – Arnoldo de Torroja
1185-1189 – Gérard de Ridefort
1191-1193 – Roberto de Sablé
1194-1200 – Gilberto Erail
1201-1209 – Filipe de Plessiez
1210-1219 – Guilherme de Chartres
1219-1232 – Pedro de Montaigu
1232-1244 – Armando de Périgord
1244-1247 – Ricardo de Bures
1247-1250 – Guilherme de Sonnac
1250-1256 – Reinaldo de Vichiers
1256-1273 – Tomás Bérard
1273-1291 – Guilherme de Beaujeu
1291-1293 – Teobaldo Gaudin
1293-1314 – Jacques de Molay (gravura)
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Terça-feira, 18 de Agosto de 2009

REVOLUÇÃO CUBANA - OS BARBUDOS DA SIERRA MAESTRA

 

 

Em janeiro de 1959, guerrilheiros liderados por Fidel Castro, desciam da Sierra Maestra, entravam em Havana e derrubavam a corroída ditadura de Fulgencio Batista, fazendo não só uma revolução, mas mudando para sempre a história da América Latina, ignorando a geografia, dando um novo rumo à Guerra Fria.
Mais do que mudar o curso da história de um país pobre e corrompido por sucessivos governos corruptos, a Revolução Cubana rompeu com as elites latifundiárias que sempre dominaram os países latino-americanos, desafiou a hegemonia dos Estados Unidos, em pleno auge da Guerra Fria, formando um país de governo socialista a escassos 150 quilômetros da península da Flórida. A saga de Fidel Castro, Che Guevara e dos guerrilheiros da Sierra Maestra, percorreu o mundo, transformando Cuba no sonho de modelo social com que o povo do Terceiro Mundo se identificava. A imagem mítica de Fidel Castro e Che Guevara como heróis que venceram os opressores, libertando os oprimidos, alimentou os sonhos de muitos dos jovens idealistas dos anos sessenta, alguns deles protagonistas do Maio de 1968 em Paris.
Cinqüenta anos depois, Cuba, moeda de troca entre a extinta União Soviética e os Estados Unidos, é um país devastado pelos embargos sofridos por décadas, pobre e às margens das lembranças da revolução. Com o fim da Guerra Fria, a queda do muro de Berlim, o desmembramento da URSS, o país foi deixado à deriva, isolado em um regime que se extinguiu no mundo.
Fidel Castro manter-se- ia no poder até agosto de 2006, quando uma doença intestinal o afastou provisoriamente, sendo substituído definitivamente em 24 de fevereiro de 2008, pelo irmão Raúl Castro. Quando entrou em Havana, a 8 de janeiro de 1959, mudando parte da história do século XX, Fidel Castro trajava um uniforme verde-azeitona e um boné de guerrilheiro que jamais deixou de usar. Muitos anos no poder e a constante mudança dos ventos históricos, foram aos poucos, tirando a imagem jovial e tenaz do guerrilheiro vencedor, a fumar o seu charuto, sendo substituída pelo semblante do homem envelhecido, visto como o último caudilho da América Latina. Assim como Fidel Castro, a revolução envelheceu, desgastou-se e foi aos poucos, esquecida com as ideologias mortas pela história.

Surge Um Novo Líder Cubano Contra a Ditadura de Fulgencio

Em 1952, um golpe militar em Cuba frustrou todas as esperanças das eleições previstas para aquele ano. Em 10 de março, Fulgencio Batista, à frente do golpe militar, subiria ao poder, construindo um governo corrupto, repressivo e sem qualquer compromisso com os setores populares, favorecendo aos interesses estadunidenses na ilha.
Diante da inércia dos partidos políticos em enfrentar o regime opressivo, eclodiriam movimentos de jovens que se opunham ao ditador. Das fileiras desses movimentos, surgiu um novo líder, Fidel Alejandro Castro Ruz, jovem advogado que desde a época de estudante na universidade de Havana, militava politicamente. Fidel Castro instigou o direito do povo à rebelião contra os tiranos do poder, preconizando a estratégia da luta armada contra a ditadura.
O novo líder preparou a luta armada e, em 26 de julho de 1953, foi proclamada uma insurreição popular, com ataques em simultâneo aos quartéis de Moncada, em Santiago de Cuba e de Carlos Manuel de Céspedes, em Bayamo. A operação resultou em um grande fracasso, com dezenas de combatentes presos, muitos assassinados. Fidel Castro foi preso, julgado e condenado. No julgamento, o jovem revolucionário pronunciou uma frase em sua defesa, que se converteria no programa da revolução: “A história me absolverá”.

Os Meandros de Uma Revolução

Exilado no México, Fidel Castro fundou, em 1954, o MR-26 (Movimento Revolucionário 26 de Julho), uma homenagem à data do frustrado ataque ao quartel de Moncada. O movimento propagava a revolta armada contra a repressão do governo cubano.
Em 1955 Cuba foi assolada por grandes movimentos de massas, o que obrigou o governo do ditador Fulgencio Batista a endurecer e a negar a anistia aos presos políticos, entre eles os combatentes de Moncada.
Em 2 de dezembro de 1956, Fidel Castro voltou a Cuba, desembarcando na província do Oriente. Já em terra, conquistaria ao lado de muitos combatentes, o território da Sierra Maestra, concentrando nas montanhas o núcleo inicial do exército rebelde, que rapidamente, aumentaria significativamente.
Em julho de 1957, Frank País foi assassinado, e uma greve em protesto à sua morte, paralisou quase todo o país. O governo cubano terminaria o ano com o fracasso do exército em sua ofensiva contra os guerrilheiros de Sierra Maestra, que a esta altura, já tinha formado duas novas colunas guerrilheiras, comandadas por Raúl Castro, irmão de Fidel, e Juan Almeida.
Em 1958, Fulgencio Batista decidiu exterminar de vez a insurreição dos guerrilheiros, lançando no verão dez mil homens em ofensiva sobre Sierra Maestra. Travaram-se combates ferozes e batalhas sangrentas, que resultaram na vitória dos guerrilheiros contra os homens do governo, que acossados, retiraram-se derrotados.
Outras colunas partiram de diversos pontos do país, entre elas as comandadas por Ernesto Che Guevara e Camilo Cienfuegos. Fidel Castro firmava-se como líder por toda a ilha, inclusive diante dos partidos da oposição. Aos poucos, os guerrilheiros conquistaram e tomaram vários povoados e pontos estratégicos.
No dia 1 de janeiro de 1959, Fulgencio Batista abandonava Cuba. Em uma última manobra, a embaixada norte-americana apoiava o general Eulogio Cantillo, que tentou criar uma junta civil e militar para assumir o poder. Fidel Castro pediu à guarnição de Santiago de Cuba que se rendesse, e ao povo que fizesse uma greve geral. A 8 de janeiro os guerrilheiros barbudos entravam em Havana. A Revolução Cubana estava consolidada.

Os Princípios da Revolução Cubana

Aos 32 anos, Fidel Castro entrava em Havana com o seu exército de barbudos, discursando ao país, sendo transmitido pela televisão. O povo cubano assistia deslumbrado àquele homem que sequer tivera tempo de despir o uniforme militar que usou durante os anos da guerrilha. Dono de uma oratória magnífica, o líder passou a ser chamado pelo povo apenas pelo nome de Fidel, sendo transformado em um Robin Hood, um José Martí, transfigurando-se em um herói revolucionário não só dentro de Cuba, mas internacionalmente. Enquanto discursava, uma pomba branca pousou-lhe no ombro.
O eco da vitória da revolução cubana espalhou-se rapidamente pelo mundo, sendo responsável pelo surgimento de movimentos de guerrilha na América Latina, e em alguns países da Ásia e da África. A vitória de um povo sobre a ditadura de Fulgencio Batista justificava a luta armada, a guerrilha, lema que alentou vários povos do mundo que sofriam com ditaduras seculares.
Diante da vitória, Fidel Castro trazia em sua oratória o compromisso da obrigação do novo regime de empreender uma obra social que trouxesse a saúde para todos, a alfabetização, a educação, a distribuição de terras e de casas gratuitas. O não cumprimento dessas obrigações resultaria na perda da legitimidade revolucionária.
Na consolidação da revolução, os guerrilheiros usaram as armas, mas davam mostras de humanidade.

Distanciamento dos EUA, Aproximação com a URSS

A princípio, o novo governo de Cuba furtou-se em abraçar qualquer lado dos dois blocos da Guerra Fria. Washington, apesar de reconhecer o governo castrista, tramava silenciosamente sabotagens a ele, financiando e preparando exilados cubanos para uma ação armada contra Fidel Castro. Uma dessas ações resultou numa força invasora de 2500 exilados cubanos, que desembarcam na baía dos Porcos (praia Girón para os cubanos), entre 17 e 19 de abril de 1961, com a proposta de acabar com a revolução. Fidel Castro esmagou a ação, abatendo oito aviões B-56, afundando dois barcos; a retirada dos invasores terminaria com o saldo de 1189 presos e apenas 14 assaltantes voltando para os EUA.
Logo Fidel Castro percebe que a revolução só iria sobreviver se pendesse para o lado soviético. Em 26 de outubro de 1959, o líder cubano pronuncia, pela primeira vez, um discurso hostil aos americanos. Ainda neste ano, os castristas pedem secretamente armas a Moscou, recebendo-as via Tchecoslováquia e Polônia.
As relações entre Havana e Washington continuam a degradar-se visivelmente em 1960, ano que são confiscadas terras de cidadãos estadunidenses em Cuba (hotéis, bancos, telefones, petróleo), em nome da soberania nacional. A cada retrocesso nas relações com os norte-americanos, o regime cubano aproximava-se dos soviéticos. Em fevereiro, a visita do vice primeiro ministro soviético Anastas Mikoyan a Havana, tornou pública a aproximação dos dois países. Em 8 de novembro daquele ano, pela primeira vez, Fidel Castro proclamava-se marxista, mas sem aceitar as diretrizes ideológicas e doutrinárias de Moscou.
Com a deterioração completa das relações entre Cuba e os Estados Unidos, o governo castrista temia que os norte-americanos tentassem erradicar a revolução, que a esta altura, a União Soviética já se sentia obrigada a defender. Para não correr riscos de retaliações vindas de Washington, Moscou toma a decisão de instalar em solo cubano mísseis soviéticos com ogivas nucleares. Descobertos pela CIA, este episódio tornar-se-ia o mais tenso e famoso da época da Guerra Fria, quando o mundo esteve à beira de uma catástrofe. O presidente John Kennedy, após ameaçar invadir Cuba, iniciando uma guerra nuclear, consegue que os soviéticos retirem os mísseis apontados para o seu país. Khrustchov justificaria em carta a Kennedy:
Se você garantisse que os Estados Unidos não vão invadir Cuba, nem apoiar nenhuma força que possa ter a mesma pretensão, deixaria de existir qualquer motivo que justificasse a presença dos nossos peritos militares em Cuba.”
O presidente norte-americano aceitava a proposta sem que ninguém desse conhecimento dela a Fidel Castro. No furacão da Guerra Fria, Cuba era motivo dos jogos de poder entre as duas potências. Era a única representante no meio das Américas, de um sistema definido por Moscou, portanto, era preciso que os países da cortina de ferro a defendesse.

Cuba Treina Guerrilheiros

Mesmo diante da influência de Moscou, Fidel Castro aceita a sua ajuda econômica e a sua proteção, mas nega que segue a sua diretriz. Em 1963, Cuba cria um sistema de preparo e apoio às guerrilhas de toda a América Latina.
Em 1967, esta via castrista para a revolução é proclamada em uma conferência de solidariedade latino-americana, realizada no verão, em Havana. Na conferência o líder cubano afirma: “O dever de todo o revolucionário é fazer a revolução”.
Espalhados pelas selvas da Bolívia, vários guerrilheiros treinados em Cuba seriam mortos em combate, logo a seguir à conferência. Em outubro, Che Guevara, o único guerrilheiro cujo carisma rivalizava com o de Fidel Castro, seria morto nas selvas bolivianas, pondo fim simbolicamente, ao sonho da revolução pelas armas na América Latina, pretendida pelos barbudos guerrilheiros.
Nos anos setenta, Fidel Castro volta o seu apoio às guerrilhas na África, especificamente em Angola, para onde envia vários guerrilheiros do seu exército. Será em Cuba que os líderes brasileiros da esquerda, perseguidos pela ditadura militar, refugiar-se-ão, tendo por lá treinamento militar e prática de guerrilhas, obtendo após esses preparos, apoio logístico e econômico para retornarem clandestinamente ao Brasil. Este apoio estender-se-ia ao longo da década de setenta, até a abertura política e à promulgação da lei da anistia.

A Revolução Cubana no Século XXI

Isolada pelos embargos econômicos promovidos pelos Estados Unidos, Cuba sobrevivia graças ao apoio soviético. A ilha do Caribe servia de paraíso turístico para os países do bloco soviético, sendo muito procurada por eles.
Nos primeiros vinte anos da revolução, o castrismo erradicara da ilha o analfabetismo, a prostituição, a miséria e a desigualdade social. Cuba transformara-se num sonho e exemplo para os países do Terceiro Mundo.
Com o a queda do muro de Berlim em 1989, a Guerra Fria começou a agonizar, sendo a sua morte uma realidade iminente. Desfez-se o bloco soviético, desmoronou-se a própria União Soviética. Sem a proteção econômica de Moscou, isolada do mundo pelo embargo americano, a fartura esvaiu-se da ilha de Fidel Castro. Os ventos da miséria, da desigualdade social, a mão pesada do castrismo para combater os seus opositores, tudo isto tirou a legitimidade da revolução cubana diante da história e da comunidade internacional. Em 1993, no apogeu da crise econômica cubana, Fidel Castro foi obrigado a legalizar o dólar, moeda do seu maior inimigo, proporcionando a primeira reforma econômica que contradisse todos os princípios da revolução.
Cinco décadas no governo de um país desfaz qualquer utopia, porque meio século é muito tempo diante da história. Che Guevara, um dos líderes da revolução cubana, morreu em combate, jovem e no fulgor dos sonhos dos seus ideais, tornando-se um ícone para o mundo, ironicamente um mito dentro dos símbolos capitalistas que tanto repudiou. A Fidel Castro restou a passagem dos anos, o envelhecimento, a luta para manter viva a revolução, ou o seu espírito revolucionário. Ironicamente o castrismo ficou sozinho num despovoado campo socialista. A imagem do herói cubano jovem deu passagem ao velho combalido pela doença e pela história. A revolução cubana, hoje, ultrapassada pelos tempos, foi sem dúvida um marco que mudou a história da Guerra Fria.
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Domingo, 16 de Agosto de 2009

WOODSTOCK - QUATRO DÉCADAS DE UM FESTIVAL

 

 
No verão do hemisfério norte de 1969, os mais representativos cantores e músicos da juventude da época, subiram ao palco improvisado de uma fazenda próxima ao vilarejo de Woodstock, na cidade rural de Bethel, próxima a Nova York. O evento, feito para gerar divisas para os organizadores, recebeu mais de 500 mil pessoas, que quebraram as cercas isolantes da fazenda e dos costumes, fazendo do festival a imagem de uma geração mergulhada na contracultura e na essência do seu tempo. Mais do que um festival de música popular, Woodstock foi um grito aos costumes, às guerras e a um sistema velho e pernicioso que oprimia e matava em nome da ideologia limitada da Guerra Fria.
Em 1969, a disputa entre os Estados Unidos e a União Soviética pela hegemonia ideológica do planeta levou o homem a pisar na lua. A internet foi inventada para garantir a espionagem no mundo. Uma carnificina humana era travada nos campos do Vietnã. A pílula, símbolo da liberdade corporal da mulher e da sua opção entre a maternidade e o prazer, era condenada pelo papa Paulo VI. O amor livre, uma descoberta recente, que ia além dos princípios da procriação catequizadora, pulsava na sexualidade dos jovens. As velhas ideologias e costumes já não condiziam com a revolução sociológica que acontecia no mundo. Os costumes morais ocidentais entraram em colapso diante da hipocrisia que o sustentava. Em 1968, gritos de contestação assolaram o mundo, de Paris à Praga, fazendo tremer as ideologias da Guerra Fria.
Foi diante da quebra de costumes e tabus, que surgiram os hippies, herdeiros da Geração Beat, que com suas barbas e cabelos longos, pregavam a paz no mundo, o culto ao amor livre, à contracultura e à plenitude da alma humana, traduzida na essência psicodélica da música e no misticismo importado de divindade e gurus orientais.
Em Woodstock, do dia 15 a 18 de agosto de 1969, 500 mil jovens puderam viver a essência do comportamento hippie e o seu apogeu de idealizado. Regados de drogas que se legitimaram durante o festival, ouvindo a música dos seus ídolos, dançaram nus, fizeram amor, conviveram pacificamente. Durante quatro dias tudo foi permitido, 500 mil pessoas fizeram de Woodstock o maior e mais mítico dos festivais da história da música no planeta. Era o apogeu do movimento hippie, e também o seu grande final, o último fôlego de um sonho que mergulharia na psicodelia do inicio dos anos setenta, tendo vários dos seus ídolos tragados pela droga. Várias foram às vezes que se tentou repetir o festival, mas Woodstock foi único, ficou preso nos sonhos daqueles jovens cabeludos de roupas coloridas ou nus, que debaixo de chuva e lama, conseguiram fazer dos homens de ideais velhos, senhores de corações novos.

Da Geração Beat aos Hippies

A contracultura, que assolaria a segunda metade do século XX, teve o seu início demarcado pela publicação do poema “Howl”, de Allen Ginsberg, em 1956. Ginsberg foi o representante máximo do que ficou conhecido como a beat generation (geração beat) e pode ser considerado um dos progenitores do movimento hippie.
Os Beats usavam as palavras de forma que exprimissem as frustrações cotidianas e existenciais, servindo de protesto contra aquilo que consideravam estar errado no mundo. O movimento cresceu nos últimos anos da década de 1950, expandindo-se por clubes e cafés de jazz, onde os seus componentes juntavam-se para longas tertúlias e declamação de poesia. Neste ambiente de espaços intelectuais emergentes, homens de barbas, vestindo roupas informais caracterizadas, conhecidas como shabby; usando óculos escuros a qualquer hora do dia, passaram a ser conhecidos como os “Beatniks”.
Os beatniks tinham uma expressão freqüente com a qual se apresentavam: “I’m hip”. Com o seu modo “hip” de expressão, passaram a ser chamados de “hipsters”, de onde teria evoluído para o termo “hippies”, conforme o movimento entrava em decadência e fora dos modismos.
Nascido nos Estados Unidos, o movimento hippie espalhou-se pelo mundo, levando a contracultura aos jovens de todo o planeta nos últimos anos da década de 1960. A contracultura hippie atingia na sua essência, os jovens estudantes das universidades, que reprimidos entre os velhos costumes e conceitos judaico-cristãos da sociedade em que se inseriam, entre a ameaça de se ter que lutar e morrer pelos ideais da Guerra Fria nas batalhas do Vietnã; assumiam a utopia da paz, a contestação das funções da sexualidade, trocando o vazio deixado pelos preceitos falidos da igreja cristã pelo misticismo de crenças milenares de deuses hinduístas.

Faça Amor Não Faça Guerra

Jovens hippies abandonavam o conforto dos seus lares, que se revelava opressivo, rumando para os centros urbanos, principalmente para São Francisco, na Califórnia. A cidade da costa californiana tornara-se o maior centro do movimento hippie, onde se concentrou um imenso número de comunidades hippies. Foi em São Francisco que, em 1967, Scott Mc Kenzie gravou a canção “San Francisco”, de John Phillips, que se tornou o grande hino do movimento. A canção dizia, em seus versos de melodia suave e doce, para os que rumavam à cidade dos hippies: “Be sure to wear some flowers in your hair” (“Não te esqueças de usar algumas flores no teu cabelo”). Estava estabelecido o estilo hippie, seus integrantes vestiam-se com túnicas e roupas coloridas, traziam sandálias, cabelos compridos (homens e mulheres) e barba (homens). A flor passou a ser um dos símbolos do movimento, sendo chamado por alguns de movimento “Flower Power”.
Os hippies opunham-se às guerras; defendiam a paz e o amor no mundo; o amor livre e de todas as formas, quer no sentido de amar ao próximo e na forma mais libertária de praticar o sexo. Tudo era partilhado, os bens materiais, a comida, os companheiros, ninguém era de ninguém. A palavra de ordem do movimento ecoou pelo mundo: “Make Love Not War” (Faça Amor Não Faça Guerra).
Seguidores das filosofias orientais e pacifistas de Ghandi, as comunidades hippies utilizavam-se do consumo de drogas, em especial do então recém descoberto LSD, que na época não era considerado perigoso, não tendo o seu uso proibido. Através das drogas, os hippies achavam que a mente era aberta mais rapidamente.
Era através da música pop e do rock, movidas por baladas melodiosas e ritmos frenéticos, que a cultura hippie alcançava a sua expressão máxima. Feitas sob o efeito das drogas, as músicas que traduziam a filosofia hippie eram ouvidas por todos, que também drogados, assimilavam nas canções o princípio da mente sem amarras, libertada. Este momento lúdico produzido por químicos, foi chamado de psicodélico. O clima psicodélico estendeu-se da música para a arte, evidenciando-se na composição das capas dos discos e dos cartazes, muito coloridos, com letras fluídas e deformadas, com desenhos caleidoscópicos, reproduzindo a deformação e o alongamento de imagens que se refletiam durante o efeito de certas drogas.
O professor universitário Timothy Leary tornou-se o grande líder espiritual do movimento hippie, resumindo os principais aspectos da contracultura daquela geração no slogan: “Turn On, Tune In, Drop Out”.
Turn On (ligar), significava, através do consumo das drogas, ligar a luz da mente, tornando-a uma grande dimensão libertária.
Tune In (sintonizar), era estar atento ao mundo e ao rompimento com o estabelecido, aderindo ao estilo de vida hippie.
Drop Out (sair, abandonar), era a palavra de ordem do movimento para que se abandonasse o estilo de vida tradicional, rompendo com os costumes morais da família, com as expectativas das carreiras estabelecidas. Foi nos meandros da filosofia drop out que se estabeleceu o movimento do desbunde no Brasil do início dos anos 1970.
Foram cerca de 500 mil desses jovens hippies que, no dia 15 de agosto, rumaram para o interior de Nova York, atrás de um festival de música que se intitulava como “Uma Exposição Aquariana”. Lá, quebraram as cercas da fazenda e, em um momento lúdico da expressão hippie e da música popular, entraram para a história com o mítico festival de Woodstock.

Projetando o Festival

Em 1969, John P. Roberts e Joel Rosenman, empresários em busca de um negócio que lhes trouxesse lucro, puseram um anúncio no “New York Times” e no “Wall Street Jounal”, sob o nome de Challenge International, Lda, que dizia: “Jovens com capital ilimitado buscam oportunidades legítimas e interessantes de investimento e propostas de negócio”. Michael Lang e Artie Kornfeld responderam ao anúncio. Estava formado o quarteto que iria realizar o lendário festival de Woodstock.
Após reunirem-se, Michael Lang, John P. Roberts, Joel Rosenman e Artie Kornfeld pensaram na criação de um estúdio de gravação em Woodstock. Aos poucos, a idéia foi sendo abandonada, evoluindo para a de um festival de verão de música e arte ao ar livre. Vencidas as dúvidas de Roberts, que procurava investir em um projeto lucrativo, e ao ludismo de Lang, que queria criar um evento atrativo e de diferente proposta juvenil, foram erguidas as bases para que se realizasse um festival de música ao ar livre no verão daquele ano.
Longe dos princípios da contracultura hippie, o projeto de Woodstock, embora arriscado, concebia um festival com fins lucrativos a favorecer quem o empresariasse. Para financiá-lo, foi criada a empresa “Woodstock Ventures”.
Inicialmente, foi agendado um concerto para ser realizado no Parque Industrial de Wallkill, Orange County, no nordeste de Middletown. O local chegou a ser alugado pela Woodstock Ventures durante a primavera, por cem mil dólares. Mas os moradores do lugar fizeram forte oposição, e as autoridades de Wallkill proibiram o concerto em julho de 1969.
Com a proibição, entrou em cena Eliot Tiber, que ofereceu a sala 80 do El Mônaco Motel, em White Like, Bethel, Nova York, para que o festival fosse realizado. Mas a idéia ficou inviável diante do tamanho do local. Tiber foi quem apresentou os produtores ao fazendeiro Max Yasgur, que concordou, em 20 de julho de 1969, em alugar, por setenta e cinco mil dólares, seiscentos acres da sua fazenda de produção leiteira, situada na vila rural de Bethel, em Sullivan County, a sudoeste do vilarejo de Woodstock, Nova York.
Estava definido o local que receberia o grande festival, inicialmente programado para um público máximo de duzentas mil pessoas.

Quase Meio Milhão de Pessoas Rumam para o Festival

Definido o local do festival, foram postos à venda antecipadamente, cerca de cento e oitenta mil bilhetes, vendidos em lojas de discos e na zona metropolitana de Nova York, ou ainda, através de uma caixa postal. Custavam dezoito dólares comprados antecipadamente e, vinte e quatro dólares adquiridos no dia nos portões do evento. Os cartazes anunciavam os três dias do festival 15, 16 e 17 de agosto de 1969, como um evento de música e arte de “Uma Exposição Aquariana” (An Aquarian Exposition).
As expectativas de juntar uma platéia de duzentas mil pessoas, foram absolutamente superadas, quando, imprevisivelmente acederam ao local cerca de quinhentas mil pessoas. Com eles vinha o furor da juventude hippie, os sonhos e os ideais da geração “Flower Power”, e todas as licitudes do que dantes parecia ser proibido.
Assim, no dia 15 de agosto de 1969, uma sexta-feira de verão no hemisfério norte, uma legião de jovens cabeludos assolou a fazenda de Max Yasgur. A primeira regra a ser quebrada foram as cercas da fazenda que ladeavam o palco, postas abaixo, tornando o evento gratuito. Mediante o acesso de tantas pessoas, as vias que ligavam Nova York ao local tornaram-se caóticas, intransitáveis, com um dos maiores congestionamentos da história da cidade. Bethel foi transformada em área de calamidade pública, diante da deficiência na infraestrutura logística, que não comportava tanta gente. Milhares de pessoas viram-se sem instalações sanitárias, preparos para que se efetuassem os primeiros socorros médicos a quem necessitasse, comida para todos, e, para piorar a situação, o local sofreu com uma grande tempestade, que fez do chão um rio de lama. As pessoas tiveram que enfrentar a fragilidade da higiene local, a chuva que caia sem perdão, e ainda racionar a comida.
Mesmo diante de uma catástrofe iminente, o festival trouxe um encontro pacífico, com jovens a enfrentar não somente as adversidades climáticas e de infraestrutura, como aos preconceitos e aos costumes da sociedade da sua época. Vestidos ou nus, receberam com um calor jamais repetido, aos ídolos que marcaram com brilho o nome da música popular do século XX. Entre a chuva e a música, jovens em busca de um sonho e de um tempo novo, derrubavam os costumes, faziam amor entre si, envoltos na psicodelia das suas mentes, que se abriam através da farta quantidade de drogas ingeridas e do prazer em quebrar os tabus.
No final do festival, após o susto da possível catástrofe, apenas duzentas pessoas foram presas no local, por ofensas menores e sem gravidades, profundamente minimizadas diante do estado incontestável do efeito das drogas por eles ingeridas. No meio da multidão, apenas duas mortes foram registradas, sendo uma delas em conseqüência de uma overdose de heroína; a outra envolveu um atropelamento de uma pessoa por um trator. No meio da psicodelia do festival, quatro abortos foram provocados; e dois partos foram efetuados, um dentro de um helicóptero de resgate, outro dentro de um carro preso ao grande congestionamento da principal via que conduzia a Nova York.
O festival entraria para a história não pelas pequenas catástrofes, quase insignificantes diante de meio milhão de pessoas juntadas em um local com condições precárias, mas pela empatia entre o artista e o público, que juntos acalentavam a ideologia contestadora dos anos de 1960, que quando consumada, traria aos costumes novos e definitivos códigos morais. A sexualidade seria desbravada, trazendo uma liberdade ao corpo que só seria freada com o surgimento da Aids no início da década de 1980. Mais do que um dos encontros mais ricos de grandes artistas da música, Woodstock desenhou um quadro de pintura realista diante de uma utopia, diante de um comportamento social de um público que por quatro dias, cumpriu com uma harmonia arrebatadora os seus sonhos de juventude e de um novo mundo.

O Festival e os Seus Bastidores

Grandes nomes compuseram o um mítico espetáculo, entre eles Jimi Hendrix, Richie Havens, Joan Baez, John Sebastian, The Who, Joe Cocker.
Alguns nomes históricos da música internacional ficaram de fora, muitos por motivos pessoais, como os The Doors, que inicialmente concordaram em fazer parte do festival. Conversas de bastidores apontam para o cancelamento de ultima hora da banda em razão de o espetáculo não ter sido feito no Central Park, e sim em um local rural. Outros dizem que foi devido ao medo de Jim Morrison, vocalista da banda, em cantar ao ar livre, pois a sua voz sairia inexpressiva. Há ainda a versão de que o vocalista, acometido por uma paranóia psicodélica, entrou em pânico, com medo de ser morto em público. Anteriormente, Morrison tinha sido preso em um show por postura indecente. Da mítica banda ausente, John Densmore, seu guitarrista, foi o único que compareceu ao festival.
Os Beatles não compareceram ao festival devido à produção não chegar a um acordo com John Lennon. Para levar a banda inglesa, Lennon exigiu que a Plastic Ono Band, da sua mulher Yoko Ono, também tocasse. A recusa dos produtores invalidou a presença dos Beatles.
Outra banda que declinou ao convite de última hora foi a canadense Lighthouse, pois temeram que o evento pudesse denegrir a sua imagem. Mais tarde, diante das evidências históricas do festival, alguns membros da banda declararam-se arrependidos de não terem ido.
Led Zeppelin também foi convidada para tocar no festival, mas Peter Grant, empresário da banda, declinou ao convite, por pensar que a apresentação não lhes traria lucros ou visibilidade, pois seriam mais um em uma extensa lista. Decidiram seguir em turnê.
O mesmo aconteceu a Frank Zappa e The Mothers of Ivention, que alegaram haver muita lama em Woodstock. The Jeff Beck Group teve que cancelar a sua apresentação, pois a banda terminou uma semana antes do festival. Os Iron Butterfly ficaram presos no aeroporto.
Assim, seja qual tenha sido a razão pela qual algumas bandas ou cantores declinaram de tocar em Woodstock, maior foi o arrependimento de não ter participado de um evento considerado como um daqueles que mudaram a história do rock.

O Primeiro Dia, 15 de Agosto (Sexta-Feira)

Assim, com uma platéia de cerca de quinhentas mil pessoas, com o som projetado por Bill Hanley, naquela tarde de verão de 1969, às 17h00, Richie Havens abria oficialmente o festival de Woodstock.
O primeiro dia teve como característica a apresentação de um elenco de músicos mais leves, em que se subiu ao palco a maior parte dos artistas folks convidados. Após a apresentação de Richie Havens, Swami Satchidananda deu a invocação ao festival. Country Joe McDonald tocou separado da sua banda, os The Fish.
Uma chuva incessante começou a cair durante a atuação de Ravi Shankar, que apresentou um repertório de cinco músicas debaixo da água. Joan Baez, grávida de seis meses, foi quem fechou o primeiro dia do festival.
Naquele dia apresentaram-se:

Richie Havens

1 High Flyin’ Bird
2 I Can’t Make it Any More
3 With a Little Help from My Friends
4 Strawberry Fields Forever
5 Hey Jude
6 I Had a Woman
7 Handsome Johnny
8 Freedom / Sometimes I Feel Like a Motherless Child

Swami Satchidananda (invocação)

Country Joe McDonald

1 I Find Myself Missing You
2 Rockin All Around the World
3 Flyin’ High All Over the World
4 Seen a Rocket Flyin’
5 The Fish Cheer / I Feel Like I’m Fixin’ To Die Rag

John Sebastian

1 How Have You Been
2 Rainbows Over Your Blues
3 I Had a Dream
4 Darlin’ Be Home Soon
5 Younger Generation

Sweetwater

1 What’s Wrong
2 Motherless Child
3 Look Out
4 For Pete’s Sake
5 Day Song
6 Crystal Spider
7 Two Worlds
8 Why Oh Why

The Incredible String Band

1 Invocation
2 The Letter
3 This Moment
4 When You Find Out Who You Are

Bert Sommer

1 Jennifer
2 The Road to Travel
3 I Wondered Where You Be
4 She’s Gone
5 Things are Going My Way
6 And When it’s Over
7 Jeanette
8 America
9 A Note that Read
10 Smile

Tim Hardin

1 If I Were a Carpenter
2 Misty Roses

Ravi Shankar

1 Raga Puriya-Dhanashri / Gat in Sawarital
2 Tabla Solo In Jhaptal
3 Raga Manj Kmahaj
4 Iap Jor
5 Dhun In Kaharwa Tal

Melanie

1 Tuning My Guitar
2 Johnny Boy
3 Beautiful People

Arlo Guthrie

1 Coming Into Los Angeles
2 Walking Down the Line
3 Story About Moses and the Brownies
4 Amazing Grace

Joan Baez

1 Story About How the Federal Marshals Came to Take David Harris Into Custody
2 Joe Hill
3 Sweet Sir Galahad
4 Drugstore Truck Driving Man
5 Sweet Sunny South
6 Warm and Tender Love
7 Swing Low, Sweet Chariot
8 We Shall Overcome

O Segundo Dia, 16 de Agosto (Sábado)

No segundo dia, o festival foi aberto às 12h15 da tarde, com a banda Quill. A característica desse dia de sábado foi marcada pela apresentação dos principais artistas psicodélicos e de rock do festival.
Destaque para a apresentação da banda Grateful Dead, que enfrentaram problemas técnicos, como um pedaço do palco com o chão defeituoso. A banda tocou debaixo de chuva, o que levou dois dos seus integrantes, Jerry Garcia e Bob Weir a sofrerem com choques constantes todas às vezes que se encostavam às guitarras. Phil Lesh, o baixo, diz ter ouvido o rádio de transmissão de um helicóptero através do amplificador do contrabaixo enquanto tocava.
No seu repertório de uma hora, Moutain incluiu “Theme For Na Imaginary Western”, de Jack Bruce. Janis Joplin voltou em dois bis, “Piece of My Heart” e “Ball & Chain”.
As apresentações entraram pela madrugada. Os The Who começaram a tocar às 4h00 da madrugada, trazendo no seu repertório a ópera rock “Tommy”. O dia foi encerrado com a apresentação da banda Jefferson Airplane, que subiram ao palco às 6h00 da manhã, com oito músicas.
No sábado apresentaram-se:

Quill

1 They Live the Life
2 BBY
3 Waitin’ for You
4 Jam

Keef Hartley Band

1 Spanish Fly
2 Believe in You
3 Rock me Baby
4 Medley
5 Leavin’ Trunk
6 Sinnin’ for Yoy

Santana

1 Waiting
2 You Just Don’t Care
3 Savor
4 Jingo
5 Persuasion
6 Soul Sacrifice
7 Fried Neckbones

Country Joe McDonald

1 The Fish Cheer

Canned Heat

1 A Change is Gonna Come / Leaving this Town
2 Going Up the Country
3 Let’s Work Together
4 Woodstock Boogie

Mountain

1 Blood of the Sun
2 Stormy Monday
3 Long Red
4 Who Am I But You and the Sun
5 Beside the Sea
6 For Yasgur’s Farm
7 You and Me
8 Theme for an Imaginary Western
9 Waiting to Take You Away
10 Dreams of Milk and Honey
11 Blind Man
12 Blue Suede Shoes
13 Southbound Train

Janis Joplin

1 Raise Your Hand
2 As Good as You’ve Been to this World
3 To Love Somebody
4 Summertime
5 Try (Just a Little Bit Harder)
6 Kosmic Blues
7 Can’t Turn You Loose
8 Work me Lord
9 Piece of My Heart
10 Ball & Chain

Grateful Dead

1 St. Stephen
2 Mama Tried
3 Dark Star / High Time
4 Turn on Your Love Light

Creedence Clearwater Revival

1 Born on the Bayou
2 Green River
3 Ninety-Nine and a Half (Won’t Do)
4 Commotion
5 Bootleg
6 Bad Moon Rising
7 Proud Mary
8 I Put a Spell On You
9 Night Time is the Right Time
10 Keep on Chooglin’
11 Suzy Q

Sly & The Family Stone

1 M’Lady
2 Sing a Simple Song
3 You Can Make it if Your Try
4 Everyday People
5 Dance to the Music
6 I Want to Take You Higher
7 Love City
8 Stand!

The Who

1 Heaven and Hell
2 I Can’t Explain
3 It’s a Boy
4 1921
5 Amazing Journey
6 Sparks
7 Eyesight to the Blind
8 Christmas
9 Tommy Can You Hear Me?
10 Acid Queen
11 Pinball Wizard
12 Abbie Hoffman Incidente
13 Do You Think It’s Alright?
14 Fiddle About
15 There’s a Doctor
16 Go to the Mirror
17 Smash the Mirror
18 I’m Free
19 Tommy’s Holiday Camp
20 We’re Not Gonna Take It
21 See Me, Feel Me
22 Summertime Blues
23 Shakin’ All Over
24 My Generation
25 Naked Eye

Jefferson Airplane

1 Volunteers
2 Somebody to Love
3 The Other Side of This Life
4 Plastic Fantastic Lover
5 Won’t You Try / Saturday Afternoon
6 Eskimo Blue Day
7 Uncle Sam’s Blues
8 White Rabbit

O Terceiro Dia, 17 de Agosto (Domingo)

Programado para ser o último dia do festival, os eventos sofreriam um atraso de nove horas, o que fez com que as apresentações continuassem pela madrugada do dia 18, alcançando o pôr do sol, apesar da maioria do público já ter ido embora.
O festival abriu o dia às 14h00, com a apresentação antológica de Joe Cocker, que cantou entre outras músicas, o hino lisérgico “Let’s Go Get Stoned”. Após a apresentação de Joe Cocker, iniciou-se um forte temporal, o que levou à interrupção do festival por várias horas, só sendo reiniciado às 18h00, com a apresentação de Country Joe And The Fish.
Entre as curiosidades daquele dia, destaca-se a apresentação de Johnny Winter, que trouxe o irmão Edgard Winter a participar de duas canções. Crosby, Stills, Nash & Young começaram a apresentação por volta das 3h00 da manhã, com um set acústico e outro set elétrico, separados.
Mas o grande destaque do dia foi Jimi Hendrix, que fechou o festival. Graças aos imprevistos que levaram ao atraso das apresentações, Hendrix só pôde tocar na manhã da segunda-feira, para um público restante de apenas trinta e cinco mil pessoas. Durante a execução de “Red House”, uma corda da guitarra do artista quebrou, mas ele continuou a tocar com apenas cinco cordas.
No último dia, de 17 para 18 de agosto, apresentaram-se:

Joe Cocker

1 Dear Landlord
2 Something Comin’ On
3 Do I Still Figure In Your Life
4 Feelin’ Alright
5 Just Like a Woman
6 Let’s Go Get Stoned
7 I Don’t Need a Doctor
8 I Shall Be Released
9 With a Little Help From My Friends

Country Joe And The Fish

1 Rock and Soul Music
2 Thing Called Love
3 Love Machine
4 The Fish Cheer / I Feel Like I’m Fixin’ To Die Rag

Ten Years After

1 Good Morning Little Schoolgirl
2 I Can’t Keep From Crying Sometimes
3 I May Be Wrong, But I Won’t Be Wrong Always
4 Hear me Calling
5 I’m Going Home

The Band

1 Chest Fever
2 Tears of Rage
3 We Can Talk
4 Don’t You Tell Henry
5 Don’t Do It
6 Ain’t No More Cane
7 Long Black Veil
8 This Wheel’s on Fire
9 I Shall Be Released
10 The Weight
11 Loving You is Sweeter Than Ever

Blood, Sweat & Tears

1 More and More
2 I Love You More Than You’ll Ever Know
3 Spinning Wheel
4 I Stand Accused
5 Something Comin’ On

Johnny Winter

1 Mama, Talk to Your Daughter
2 To Tell the Truth
3 Johnny B. Goode
4 Six Feet in the Ground
5 Leland Mississippi Blues / Rock me Baby
6 Mean Mistreater
7 I Can’t Stand It – Com Edgard Winter
8 Tobacco Road – Com Edgard Winter
9 Mean Town Blues

Crosby, Stills, Nash &Young

Set Acústico

1 Suite: Judy Blue Eyes
2 Blackbird
3 Helplessly Hoping
4 Guinnevere
5 Marrakesh Express
6 4 + 20
7 Mr. Soul
8 Wonderin’
9 You Don’t Have To Cry

Set Elétrico

1 Pre-Road Downs
2 Long Time Gone
3 Bluebird
4 Sea of Madness
5 Wooden Ships
6 Find the Cost of Freedom
7 49 Bye-Byes

Paul Butterfield Blues Band

1 Everything’s Gonna Be Alright
2 Driftin’
3 Born Under a Bad Sign
4 Morning Sunrise
5 Love March

Sha-Na-Na

1 Na Na Theme
2 Yakety Yak
3 Teen Angel
4 Jailhouse Rock
5 Wipe Out
6 Book of Love
7 Duke of Earl
8 At the Hop
9 Na Na Theme

Jimi Hendrix

1 Message to Love
2 Hear My Train a Comin’
3 Spanish Castle Magic
4 Red House
5 Mastermind – Cantada por Larry Lee
6 Lover Man
7 Foxy Lady
8 Jam Back At the House
9 Izabella
10 Fire
11 Gypsy Woman / Aware of Love - Medley cantado por Larry Lee
12 Voodoo Child (Slight Return) / Stepping Stone
13 The Star-Spangled Banner
14 Purple Haze
15 Woodstock Improvisation / Villanova Junction
16 Hey Joe

Jimi Hendrix encerrava com chave de ouro o mítico festival. O cantor teria, brevemente, a vida ceifada pela droga. Outros, como Janis Joplin, seguiriam o mesmo destino trágico.
As imagens históricas do evento foram transformadas em um documentário, “Woodstock”, lançado no ano seguinte, em 1970. O evento também foi registrado em disco, numa trilha sonora dos melhores momentos. Quatro décadas depois de ter ocorrido, Woodstock representa um movimento que se extinguiu, mas que deixou uma marca indelével nos costumes morais e sociais da sociedade que se construiu nos últimos anos do século XX.


 
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Quarta-feira, 12 de Agosto de 2009

NASCI COM PASSAPORTE DE TURISTA E OUTROS CONTOS - ALVES REDOL

 

 

Alves Redol deixou para o acervo da literatura portuguesa uma vasta obra que incluí desde escritos para o teatro, roteiros para filmes, livros para crianças, estudos, notas ensaístas, contos, romances, pequenas novelas e crônicas. É um dos representantes mais sólido do neo-realismo em Portugal. Por anos, graças à perseguição política, a sua extensa obra esteve dispersa, tendo sido feito nos últimos tempos um trabalho minucioso desses seus dispersos, onde podemos encontrar volumes intitulados de “Obras Completas”. É justamente um destes volumes que aqui tomamos como base: “Nasci Com Passaporte de Turista e Outros Contos” (1ª edição - Editorial Caminho - 1991). Através desta coletânea teremos uma noção da representatividade de Alves Redol como escritor neo-realista, embora nos fuja a sua importância como figura histórica da época em que fez delirar as crianças nas escolas com os seus contos, marcando uma vasta geração.
A coletânea traz-nos os contos de Alves Redol selecionados cronologicamente de 1940 a 1968. Num período de vinte e oito anos essenciais na história da Europa e de Portugal, vamos conseguir transportar-nos para aquele momento através do seu universo revelador e de denúncia latente. Numa viagem de tirar o fôlego nas páginas neo-realistas de Alves Redol, a descoberta da sua obra através dos contos é gratificante, empolgante. Percorrer quase três décadas da sua narrativa, é redescobrir uma página virada da história portuguesa, mas que as marcas ainda se fazem recentes, compondo sem máscaras a essência de um povo.

Os Contos da Década de 1940

1940 foi o ano do auge da Segunda Guerra Mundial, com uma Alemanha armada e temível, uma França de rastos, uma Inglaterra a resistir, uma Espanha num caos, totalmente desfeita pela guerra civil, uma Itália fascista e totalitarista, um Portugal neutro, mas com uma política de melhor situação diante do conflito. Apesar da neutralidade do país, a miséria da guerra era sentida pelas classes menos favorecidas.
É justamente da miséria humana que nos fala os contos de 1940. A mais profunda miséria do ser humano, retratada de uma forma dramática, muitas vezes a tocar no melodrama. Os contos de Alves Redol são recheados de personagens sem saída, marcadas pelo fatalismo da vida e, principalmente, pela condição social. Talvez seja este o ponto fulcral dos seus contos, ao contrário de Manuel da Fonseca que descreve as suas personagens cobertas de um saudosismo infindável e melancólico, cuja fatalidade não trespassa o estado inerte da melancolia e o olhar latente da saudade; Alves Redol cria um ambiente angustiado, tenso, denso, quase a mergulhar no caos da sobrevivência social e humana, como o ambiente vivido pelos anos de guerra, onde estar vivo hoje é o futuro de amanhã, mas a incerteza do agora.
Nos seis títulos escritos em 1940 (“A Marca”, “Aquela História”, “A Corneta de Barro”, “Lua de Pé”, “Rafeiros” e “Nasci Com Passaporte de Turista”), que encontramos no livro, a sombra da guerra está por detrás deles, sempre refletidos pela miséria do tempo. Também a linguagem é a mais diversificada, o estilo de Alves Redol é inconfundível, por talvez fugir de criar estilizações e técnicas, pois a linguagem muda de ambiente para ambiente, onde o universo das palavras do cotidiano das personagens é cabalmente retratado, podemos assim, encontrar termos populares, diálogos com os erros do português falado diante do escrito, portanto a linguagem é diferente se uma história é de pescadores e outra é de um empregado de escritório. Para compreendermos melhor, vejamos as palavras de José Manuel Mendes, que fez o prefácio de “Nasci Com Passaporte de Turista e Outros Contos”:

“(...) De “A Marca” a “Tatuagem” ou “Dois Pássaros Nocturnos” não surpreendemos só o transcurso de decênios de inconformismo oficinal, na constância de um núcleo ideológico de reiterações; apreendemos o universo compósito de uma atitude que se não deixou muralhar pela esclerose nem alijou o convívio com linguagens, técnicas e movimentos que ousavam além do mimético neonaturalista, do representativismo esquemático, da própria consecução mais perdurável dos neo-realistas.(...)”

Também as personagens de Alves Redol têm características muito próprias. As mulheres vêem sempre sem dote para o casamento, trazendo sempre uma estrutura forte para o trabalho, são normalmente mulheres sem a vaidade feminina habitual, são mais companheiras do que esposas. O universo feminino traz-nos sempre a matriarca da família, pobre, resignada, submissa e colaboradora do homem. A vida para elas é o suor do trabalho, o sorriso dos filhos, a angústia com as aflições do marido, normalmente explorado, desempregado, quase frágil diante delas, mas sempre com a última palavra.
As crianças do universo de Alves Redol são inteligentes, trazendo maliciosamente a marca do inconformismo do autor. Não são raras às vezes que o mundo é visto pela óptica de uma criança (“A Corneta de Barro”, “Os Sonhos” ou “O Comboio das Seis”), onde mergulhamos nos seus sonhos e esperanças diante das limitações sociais e econômicos.
Também o Ribatejo é uma constante na sua obra, já que ali nasceu (Alves Redol é vilafranquense). As histórias passam-se normalmente entre o Vale do Tejo nas mediações de Vila Franca de Xira, da Chamusca, da Golegã, de Salvaterra dos Magos, de Samora Correia, de Alverca, enfim, de uma zona ainda pouca urbana como é atualmente. Para dar mais impacto dramático, normalmente repete parágrafos inteiros, onde traduz-nos uma idéia da consciência ou ironia do tema. O seu explicit é dado em duas linhas, sem maiores reflexões ou meditações.
Dos contos de 1940, podemos dividi-los em três universos de espaço: o mar, o campo e a cidade. Nos contos do mar ou com a temática sobre a miséria dos pescadores, se assim quisermos designá-los, encontramos “A Marca” e “Lua de Pé”. No primeiro - mais uma noveleta do que um conto -, encontramos a descrição das lotas do Tejo, do seu movimento de comércio. Aqui os pescadores sofrem na carne os perigos da profissão, a exploração social é ideologicamente descrita, apesar dos condicionalismos político-ideológicos vividos na época, onde a apertada censura fazia com que o autor usasse de artifícios melodramáticos para fugir talvez dos olhos da repressão. O texto é coberto por metáforas que fogem do naufrágio da redundância para, como já foi dito, o melodrama, a densidade deixa no ar uma sombra de tragédia iminente, como se um acidente fosse acontecer a qualquer momento e a morte tragar a vida de qualquer uma das personagens ultrajadas, exploradas, humilhadas. É como se uma revolução social estivesse próxima de acontecer, mas a força do poder é mais tenaz e a revolta é engolida, mastigada, quase com um gosto de veneno. Logo o clímax da revolta é substituído pelos gritos dos vendedores, das varinas, o anúncio do preço do peixe a mostrar o dia a dia, levando embora qualquer revolta:

A Gracinda do Manco vem à lota pela primeira vez, depois que o marido se finou. Traz com ela os dois filhitos, ensonados e rabugentos. O mais velho, agarrando-lhe as saias, a tiritar, encolhido, camisita rota a cobrir-lhe a barriga bojuda e tostada das soalheiras, sexo destapado, pernas finas e arqueadas. O mais novo - poucos meses ainda - enrola-se-lhe no xaile, rosto sujo de quanta porcaria lhe veio à mão, rameloso, olhos azuis a fixarem-se no Tejo, como retendo lá dentro a miragem de uma tragédia que um dia lhe contarão, quando começar na labuta do rio, como moço de fragata ou aprendiz de pescador.

A linguagem é a do dia a dia dos pescadores, muitas vezes coberta de erros gramaticais pouco inteligíveis para alguém que não viva naquele cotidiano. Encontramos em “Lua de Pé”, o Manco vivo e sem dinheiro, sem pão, sem peixe para pescar. A Gracinda a dar aos filhos o último pedaço de pão, no dia seguinte não iria às compras, pois o crédito nas mercearias tinha-lhe sido cortado. É no meio de todo esse melodrama que o Manco sai para pescar. Numa noite que ninguém se atreveria a sair, lá vai ele, desafiando a todos os perigos para trazer o pão do dia seguinte. A miséria está diante de cada movimento das personagens. A fome é uma sombra devastadora das limitações do mundo e da ideologia da cada personagem. A mulher que sem saída apenas reza aos santos, sem convicção, mas com fé, porque a fé vence as convicções quando estas não superam o vazio da sobrevivência humana. Uma gente abandonada pelo mundo, à deriva dos ventos:

Nossa Senhora na moldura de conchas com o seu menino ao colo. A lamparina a iluminá-la no seu pingo de claridade. E Nossa Senhora sorria-lhe.
Cerrou as portas e caiu de joelhos defronte da cômoda. Silêncio em toda a casa. Os rapazes adormecidos, a pêndula do relógio sem movimento.
Ela e Nossa Senhora. Nossa Senhora a sorrir-lhe.”


Ao deixarmos os contos do mar, vamos encontrar os contos do campo: “Rafeiros” e “A Corneta de Barro”. No primeiro surge-nos a figura de um capataz (Feliciano) e de um cão rafeiro (Tejo), ambos fiéis servidores de um patrão latifundiário. Feliciano e Tejo eram denominados de rafeiros por toda a Vila, devido à sua fidelidade ao patrão. É o exemplo típico da repressão e do canalizador da repressão. O patrão é a repressão e Feliciano o executor da mesma. Novamente a ideologia a ser invocada, de uma forma ainda que velada, mas muito fácil de ser percebida. Feliciano é odiado por todos, até pelas mulheres consideradas da noite, que paradoxalmente entregam-se não a ele, mas àqueles que ele oprime. Ao canal da repressão resta o paradoxo da solidão, compensada pela fidelidade que lhe deposita Tejo, o cão. Daí os dois rafeiros:

Um trazia-lhe as carícias das patas e da língua, e os seus ladridos de júbilo. O outro vinha dar-lhe novas de searas e gados ou de algum alugado mais respingão ou mais sorna no trabalho.”

Em “A Corneta de Barro” novamente o tema do desemprego, do homem agricultor sem terra para cavar. Retrato vivo da época da guerra, onde o trabalho daqueles que serviam nas quintas dos senhores de posse era cada vez mais escasso. No meio de todo o drama social, encontramos a figura obstinada de uma criança que, após ganhar algum dinheiro na vindima, sonha em ter uma corneta de barro. Agarra este sonho com ansiedade e obsessão. Vai até a feira com o pai na mais completa embriaguez do sonho. Finalmente compra com o seu dinheiro o seu primeiro brinquedo. Mas como a fatalidade é a constante nos contos de Alves Redol, ao correr para abraçar a mãe cai e parte a corneta, partindo também o seu sonho. É um conto que poderíamos comparar com “O Cavaquinho” de Miguel Torga, onde uma criança sonha com uma prenda de natal, que o pai, também miserável trabalhador do campo, promete trazer-lhe quando voltar. Como no conto de Alves Redol, o de Torga também termina em tragédia, pois o pai morre quando trazia um cavaquinho para o filho. As duas vertentes dos anos difíceis de Portugal retratadas em temas semelhantes por dois autores contemporâneos: Miguel Torga e Alves Redol.

‘Caminho comprido. Mais comprido que na vinda. Era o primeiro brinquedo seu. E ganho por ele. Bem empregadas canseiras no rabisco. Na Boiça haveria mais brincadeira. Tocaria para o toiro e como os militares. E como o homem do circo, a chamar todo o mundo para a entrada. Mandaria nas brincadeiras, porque a corneta era sua. Acabavam-se os empurrões do Pipio. Se quisessem corneta seria homem da unha, capinha e até cavaleiro. Estava farto de ser boi. Deitado para o chão nas pegas, picado nas esperas. Agora a coisa mudara.’

O Conto dos Sobreviventes da Guerra

E nesse tumultuado 1940 que surge a surpresa do conto “Nasci Com Passaporte de Turista”. Aqui um tema que na época estava no limiar daquela que seria a maior catástrofe da guerra, o anti-semitismo do nazismo. Momento dramático da história, a fuga de judeus da Alemanha de Hitler para os países da Europa Ocidental estava a ser duramente controlada e limitada pelas fronteiras, nenhuma autoridade dos países do ocidente quiseram saber das conseqüências que teria esta recusa, colaborando de uma forma indireta com o grande holocausto. Em Portugal, que devido a sua localização geográfica era o principal país de fuga para o Novo Mundo (América do Norte e América do Sul), Salazar limitou vistos de entrada aos flagelados da Europa ocupada pelos nazistas. Houve um comboio cheio de judeus que ao chegar à fronteira portuguesa, foi selado e mandado de volta para a Alemanha, o seu destino todos nós sabemos qual foi. Em Bordéus, o cônsul português na altura, Aristides de Sousa Mendes, contrariando as ordens de Salazar, forneceu vários vistos que salvaram a vida de muitos judeus. O cônsul foi desonerado pela insubordinação e morreu no desemprego em Portugal, vítima do sistema repressivo que nunca o perdoou, mesmo a saber do extermínio de seis milhões de judeus nos campos de concentração alemães, quando a guerra acabou.
Alves Redol conta-nos a história de Edith, uma jovem judia que é vítima da mudança dos ventos na Alemanha, quando vê da noite para o dia o seu povo ser responsável por todos os males do país. É o conto mais psicológico de Redol, a personagem central é uma mulher diferente das habituais do universo redoliano. A personagem é intimista, o psicológico vai além do ambiente que a gera. A morte da mãe, a prisão no tempo através das lembranças, a sua forma de recomeçar longe do prédio e da janela de onde viu o mundo transformar-se. A linguagem já não é a dos pescadores ou a dos homens do campo. É uma linguagem de uma mulher inteligente, da cidade e do mundo. Edith foge da Alemanha, mas não consegue visto de trabalho para outro país, só consegue visto de turista. É com a amargura da desilusão (não a da guerra, pois o ano é de 1940 e as atrocidades cometidas contra o povo judeu ainda não tinham vindo à luz) que ela vê que jamais irá obter um visto de trabalho, e será nas ruas, com uma identidade qualquer que poderá trabalhar, nas ruas, nas noites, como companheira de ninguém. Certamente se o conto fosse escrito cinco anos depois a denuncia seria outra, a tragédia também. Neste conto a tragédia habitual dá passagem para a realidade da guerra, mais melancólica aqui do que trágica.

Naquela janela da esquerda passei longas horas de meditação, devorando páginas de livros que me emprestavam. Que abismo se abria, se me debruçava no parapeito da janela e olhava os que iam e os que vinham. Aqueles livros não me diziam dos que voltavam a casa de camisolas ensopadas, rostos negros e mãos a abanar.”

Retratos da Miséria Portuguesa na Época do Salazarismo

E os anos quarenta corriam. A guerra exigia definições de posturas de Salazar. Só a partir da invasão da Normandia pelas forças aliadas é que Salazar deixou a neutralidade, apoiando os aliados. Em 1944 surge-nos o conto “Espólio”, onde vamos encontrar a figura caricata e decadente de um velho montado na sua égua, também velha e sem forças. O velho sonha com a mulher morta, nele há a vontade de juntar-se a ela. Do seu espólio só lhe restara a égua Judia e uma casa a ruir. Sonha com a morte, mas não tem coragem para tanto, sonha em vender ou matar a égua, também não tem coragem. Surge-nos um Dom Quixote ribatejano, sem sonhos bons, sem moinhos para voar, sem guerras para fazer, apenas com a companhia da égua:

“Que passassem os outros e se rissem. Ele também se ria deles, pois bem conhecia da vida para ter a certeza que iam enganados. Fossem andando agora, a folgar enquanto era tempo. 'Atrás de tempo, tempo vem'.

Em 1945 iremos encontrar o conto “Os Sonhos”. Um vadio escreve uma carta imaginária da prisão onde está para a sua mãe. Na suposta carta ele relembra da infância miserável, da noite em que a mãe fez sonhos para que ele fosse vender pelo Cais do Sodré. A criança vai vender os sonhos, única fonte que iria gerar comida para o dia seguinte. No caminho encontra um velho mendigo que tem fome, com ele divide os sonhos. Ao chegar em casa sem os sonhos e sem o dinheiro, é castigado pela mãe. Na prisão ele ri da ironia da única vez que fora bondoso e que fora castigado por ser bondoso. Longe de ser um conto de Dickens, é uma ironia portuguesa, sem paga, onde a prisão parece ser a única recompensa:

Diz lá, não te confranjas em confessá-lo. O que lá vai, lá vai. Mas tu achas realmente que eu fui malandro e mereci aquela tareia, quando dei sonhos a um velho desiludido?... Quando dei sonhos a uma criança sem jantar e cheia de tentações?...”

Outra noveleta nos surge em 1946: “O Comboio das Seis”. O comboio é a personagem central. O mesmo comboio que atravessa o Ribatejo, indo parar em Lisboa. Personagens do dia a dia são nos atiradas página a página. Por fim, concentra-se na figura de um menino e a sua primeira viagem de comboio. Primeira e última, pois ao tentar descer do comboio, a criança cai na linha e é atropelada pela máquina, a tragédia novamente faz o explicit da história.
Chegamos a 1949 com dois contos: “O Cravo” e “Romaria”. No primeiro, um rapaz do campo é levado por uma mulher para Lisboa, sendo enfiado nas obras a trabalhar e em um pátio a viver. A inadaptação à vida da cidade é visível, mas ele nada diz. Por fim fica desempregado. Passa o seu tempo de vadiagem a cultivar um cravo, com o qual sente-se transportado outra vez para a vida do campo. A mulher acha-o um vagabundo, e num momento de mesquinhez da alma, parte-lhe o cravo. E toda a revolta do homem concentra-se no cravo despedaçado, que faz com que agrida violentamente a mulher. Em conseqüência ao ato de violência, vai preso por agressão e fica sem os filhos e sem a mulher.
Romaria” traz-nos as festas das aldeias Ribatejanas e a sua importância cultural. Aqui o relato de uma procissão, com todos os seus rituais, crenças e costumes; descrita cabalmente. Assim termina a década de 1940 para o nosso estudo.

A Ebulição dos Tempos no Último Conto

Em 1950 “Tatuagem” traz-nos o inconformismo de Alves Redol. Dez anos depois e as personagens continuam fiéis a si próprias, e o autor mais mordaz na descrição da miséria da comédia humana. O conto retrata os homens que são levados presos para longe das suas aldeias. No caminho encontram um deles que passa o tempo a fazer tatuagens, o que dá uma outra “marca” na vida dos homens. Aqui o paradoxo de “A Marca” e “Tatuagem”, todas elas a cravar na pele a dor da miséria.
Finalmente chegamos a 1968. Tal como a guerra, o salazarismo também começava a ser cercado. A doença do ditador traz esperanças para um momento de liberdade e democracia, mas o povo português teria que passar pela humilhação de uma feroz guerra colonial por mais alguns anos, até que uma primavera de Abril encerrasse de vez um mundo antigo. O último conto de Alves Redol a ser analisado é justamente deste ano, “Três Contos de Dentes Para o Ofício 4001”. Ao contrário da tragédia que sempre utilizou nos seus contos, aqui a sátira aos costumes é o ponto principal. Um presidente de câmara que terá a visita de um governador, mas que não pode sorrir porque tem os dentes em estado lastimável. Daí resolve tirar todos os dentes e pôr uma placa, que irá lhe custar três contos. É justamente a adaptação à placa que é satirizada, quando este tenta fazer um discurso, não conseguindo, pois a placa ou foge-lhe da boca ou quase é engolida. Alves Redol está atento ao tempo e às mudanças, o filho do presidente de direita, que é de esquerda, pois tem um retrato de Che Guevara no quarto. O pai que espanca o filho por este ‘sacrilégio’, mas este foge para a França, justamente a França de 1968. O conto traduz de uma forma brilhante uma época em ebulição, à procura de futuras primaveras democráticas. Assim chegamos à conclusão da importância de Alves Redol como representante do neo-realismo e de uma época que soube sempre se mostrar inconformista, utilizando a escrita, literária ou não, como veículo.

Alves Redol

António Alves Redol é o escritor que sintetiza o movimento Neo-Realista em Portugal, sendo o seu principal representante. Nasceu no dia 29 de dezembro de 1911, em Vila Franca de Xira, distrito de Lisboa. Filho de uma família pobre e humilde, começou a trabalhar muito cedo para manter o seu sustento. Aos 16 anos migrou para Angola, em busca de maiores oportunidades. Ficaria três anos na então colônia portuguesa da África.
Em Portugal, Alves Redol faz oposição ao regime salazarista, integrando-se ao MUD (Movimento de Unidade Democrática). Mais tarde filia-se ao PCP (Partido Comunista Português). Em 1936 passa a colaborar com o jornal “O Diabo”, para o qual escreve contos e crônicas.
Em 1939 publica o seu primeiro romance, “Gaibéus”, nome dado aos camponeses que faziam a ceifa do arroz no Ribatejo, em meados do século XX. Para escrever o livro, o autor chegou a morar no campo, colhendo dado sobre o trabalho daqueles homens. A obra revela uma profunda preocupação social, ainda que restringida pela censura e perseguição política do regime do Estado Novo. “Gaibéus” além de marcar oficialmente o início da carreira de escritor de Alves Redol, consolida também, o Neo-Realismo em Portugal.
Alves Redol tem em suas obras a denúncia das injustiças sociais, transformando-as em um retrato fiel da sociedade que viveu. Graças à militância simpatizante ao PCP, à denúncia latente que ele insistia em acusar para transformar uma sociedade injusta, chegou a ser preso e torturado. Foi o único autor português a ter os seus livros revisados por uma censura prévia. Mesmo perseguido, jamais deixou de militar contra o salazarismo, o que lhe custou a restrição da sua obra, tendo que recorrer a outras atividades para sobreviver.
Alves Redol morreu em 29 de novembro de 1969, sem ver o fim do Estado Novo.

OBRAS:

Romance

1939 – Gaibéus
1941 – Marés
1942 – Avieiros
1943 – Fanga
1945 – Anúncio
1946 – Porto Manso
1949 – Horizonte Cerrado
1951 – Os Homens e as Sombras
1953 – Vindima de Sangue
1954 – Olhos de Água
1958 – A Barca dos Sete Lemes
1959 – Uma Fenda na Muralha
1960 – Cavalo Espantado
1962 – Barranco de Cegos
1966 – O Muro Branco
1972 – Os Reinegros (Publicação Póstuma)

Teatro

1945 – Maria Emília
1948 – Forja
1967 – O Destino Morreu de Repente
1972 – Fronteira Fechada

Contos

1940 – Nasci com Passaporte de Turista
1943 – Espólio
1946 – Comboio das Seis
1959 – Noite Esquecida
1962 – Constantino, Guardador de Vacas e de Sonhos
1963 – Histórias Afluentes
1968 – Três Contos de Dentes

Literatura Infantil

1956 – Vida Mágica da Sementinha
1968 – A Flor Vai Ver o Mar
1968 – A Flor Vai Pescar Num Bote
1969 – Uma Flor Chamada Maria
1970 – Maria Flor Abre o Livro das Surpresas

Argumentos de Filmes

1952 – Nazaré
1975 – Avieiros

Estudos

1938 – Glória – Uma Aldeia do Ribatejo
1949 – A França – Da Resistência à Renascença
1950 – Cancioneiro do Ribatejo
1952 – Ribatejo (Em Portugal Maravilhoso)
1964 – Romanceiro Geral do Povo Português

Conferência

Le Roman de Tage (Edição da Union Française Universitaire – Paris)

CRONOLOGIA

1911 – Nasce, em Vila Franca de Xira, em 29 de dezembro, António Alves Redol.
1927 – Conclui o Curso Comercial.
1928 – Em 5 de abril, parte para Angola, onde fica por três anos.
1932 – Em 5 de junho, é publicado em “O Notícias Ilustrado” de Lisboa, a sua primeira novela, “Drama na Selva”.
1934 – Realiza no Grêmio Artístico Vilafranquense a sua primeira palestra, “Terra de pretos, ambição de brancos”.
1936 – Casa-se com Maria dos Santos Mota. Passa a colaborar para o jornal “O Diabo”. Participa da Conferência sobre arte em Vila Franca de Xira.
1939 – Publica o primeiro romance, “Gaibéus”, consolidando o movimento Neo-Realista em Portugal.
1943 – Nasce o seu único filho, António, em 13 de março, data que coincide com o lançamento do seu livro “Fanga”.
1944 – Preso pelo Estado Novo, em 12 de maio. Durante alguns anos, é o único escritor português a ter a obra submetida a uma censura prévia.
1945 – Em 10 de novembro, é pedido que faça parte da comissão central do MUD (Movimento de Unidade Democrática). Encenada a sua primeira peça, “Maria Emília”.
1947 – Nomeado Secretário Geral da Secção Portuguesa do Pen Club.
1948 – Integra a delegação portuguesa que intervém no Congresso dos Intelectuais para a Paz, em Wroclaw, Polônia. Encenada “Forja”.
1949 – Publica o romance “Horizonte Cerrado”, primeiro volume de uma trilogia sobre os vinhateiros do Douro, conhecida como “Ciclo Portwine” (“Horizonte Cerrado” – 1949, “Os Homens e as Sombras” – 1951, e “Vindima de Sangue” – 1953).
1950 – Recebe o prêmio Ricardo Malheiros pelo romance “Horizonte Cerrado”.
1962 – Publica o romance que é considerado pela crítica como o melhor da sua obra, “Barranco de Cego”.
1963 – Em outubro é preso novamente.
1964 – Mesmo a despeito do regime salazarista em relação à obra de Alves Redol, é iniciada em Vila Franca de Xira grandes comemorações para marcar os 25 anos do lançamento de “Gaibéus”, considerado o marco do Neo-Realismo português. As comemorações estendem-se por todo o país.
1969 – Morre em Lisboa, no dia 29 de novembro.
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Sexta-feira, 7 de Agosto de 2009

ÍNDIA - OS ÚLTIMOS AGUDOS DO DESBUNDE DE GAL COSTA

 

 

Depois de passar pelo sucesso do show “Gal a Todo Vapor”, que deu origem ao disco de 1971, Gal Costa só voltaria a lançar um novo álbum em 1973. E para os cabeludos undergrounds que encheram a platéia do show, Gal Costa voltava mais uma vez renovada, em outra atmosfera além das limitações do desbunde e da contracultura. Com o fim do milagre brasileiro e a crise econômica mundial gerada pelo petróleo, os tempos já não eram de abundância, e a repressão cultural e ideológica era acirrada. Sem a fartura do milagre, desbundar já não era tão agradável para mascarar a falta de liberdade da ditadura. A morte do estudante de geologia da USP Alexandre Vanucchi Leme (o Minhoca), reacende o movimento estudantil, que convida Gilberto Gil para uma apresentação na Politécnica. O show, uma homenagem ao estudante morto e um protesto à repressão, teria 30 minutos, durou 3 horas, apesar da vigilância da polícia. Gilberto Gil apresentou a sua nova canção de protesto feita em parceria com Chico Buarque “Cálice”.
Em 1973 a Phonogram realizou com todo o seu elenco o festival Phono 73, no Palácio de Convenções do Anhembi, de 11 a 13 de maio. “Cálice” foi proibida, na hora da apresentação a censura cortou o som e não se ouviu a interpretação de Chico Buarque e Gilberto Gil. Ficaria proibida até 1978, quando Chico Buarque finalmente a gravou, tendo a participação especial de Milton Nascimento. No Phono 73 Gal Costa canta em duo com Maria Bethânia “Oração de Mãe Menininha” (Dorival Caymmi), seu maior sucesso de massas daquele ano.
Ainda no fatídico e agitado ano de 1973, Gal Costa grava o compacto com a canção “Três da Madrugada” (Torquato Neto – Carlos Pinto), que acompanhava o livro “Os Últimos Dias de Paupéria”, poemas de Torquato Neto, o Anjo Torto da Tropicália, que se matara em novembro de 1972, em homenagem póstuma. 1973 registra, ainda, o fenômeno “Secos e Molhados”, banda sob o comando de Ney Matogrosso, que parou o Brasil.
É nesse clima que numa atmosfera folk-glitter o álbum “Índia” é lançado no segundo semestre. Gal Costa que naquele ano traz a sensualidade à flor da pele, faz um ensaio seminua na praia com Marisa Alvarez Lima, para a revista Pop.
Já a distanciar-se do desbunde, “Índia” é um álbum definitivo, traz nove faixas essenciais no universo galcostiano, com interpretações de uma cantora que crescia a cada novo álbum, surpreendendo sempre.

Intimismo Telúrico

Sensual também é a capa do álbum “Índia”, com fotografias de Antonio Guerreiro, traz um close frontal de Gal Costa vestida com um pequeno biquíni vermelho, na contra capa a cantora aparece de seios nus, vestida como uma índia. A censura vetou a exposição da capa e o disco foi vendido nas lojas dentro de um plástico opaco, azul, a esconder a beleza sensual das fotos.
Longe dos holofotes de musa do desbunde, Gal Costa surpreende logo na abertura do álbum, ela resgata um antigo sucesso guarani do repertório de duplas sertanejas: “Índia” (J. A. Flores – M. O. Guerrero – versão José Fortuna). Em 1973 a musa do underground a cantar uma canção sertaneja era além de inusitado, um ato de coragem em arriscar. Numa recriação musical de Rogério Duprat, a canção sofre uma ruptura histórica. Deixa de ser assimilada a interpretações masculinas e de duas vozes, perde a sua verve sertaneja para ganhar a voz definitiva de Gal Costa e dos seus agudos, como se a música tivesse sido feita para ela, e nunca tivesse existido antes da sua interpretação. Os arranjos dão um tom épico à canção, quase que lembram um filme. Gal Costa começa com uma interpretação contida, intimista, depois vai crescendo, até encontrar o apogeu da música. “Índia” passou a ser definitiva no repertório de Gal Costa, tamanha assimilação que quando a cantora foi dar shows em Portugal em 1986, teve que incluir a canção no repertório por exigência do público português. Gal Costa revisitaria “Índia” por mais duas vezes, em “Gal Tropical” (1979) e “De Tantos Amores” (2001). Anos mais tarde a cantora declararia que esta era a música preferida do pai, e que esta gravação era uma singela homenagem a ele.
Uma canção genuinamente do folclore lusitano, “Milho Verde” (Folclore Português – adaptação Gilberto Gil), perde a essência básica lusitana e adquire aqui um agradável som africano, e Gal Costa homenageia as suas raízes portuguesas.
Após o sucesso de “Pérola Negra”, Gal Costa ganha uma canção inédita do seu autor : “Presente Cotidiano” (Luiz Melodia), a canção traz um certo gosto de existencialismo do desbunde, traz uma conotação da força do sexo que perturba a censura. Momento telúrico do álbum, num intimismo revelador da cantora. A música é proibida de ser executada em público (nas rádios), segunda censura sobre o álbum. Numa época de muita tortura, achar o corpo natural da cama era ofensivo para quem pensava em sangue, não em sexo. Talvez pela proibição, a canção não teve o impacto de “Pérola Negra”, mas traz uma Gal Costa visceral, provocadora.

Últimos Agudos do Desbunde

Percorrendo uma interpretação intimista, temos “Volta” (Lupicínio Rodrigues), mostrando a cantora em um universo que a gíria da época chamava de fossa ou dor-de-cotovelo, e o mundo lupiciniano é o puro sofrimento dos amores infelizes (ele mesmo é chamado de compositor da dor-de-cotovelo). Na sua voz doce, Gal Costa canta o abandono como uma menina triste e solitária, quase como um cálido gemido.
Mas como a musa do desbunde ainda reina em Gal Costa, duas canções de um existencialismo mais leve permeiam o álbum: “Relance” (Caetano Veloso – Pedro Novis) e “Pontos de Luz” (Jards Macalé – Waly Salomão), a primeira é um animado jogo de palavras que dão dois sentidos propostos e opostos, numa interpretação frenética, de uma jovialidade existencial contagiante.

“Prove, reprove
Clame, reclame
Negue, renegue
Salte, ressalte
Bata, rebata
Fira, refira
Quebre, requebre
Mexa, remexa
Bole, rebole
Volva, revolva
Corra, recorra
Mate, remate
Morra, renasça”

“Pontos de Luz” é um quase bem-estar de torpor delirante, talvez a canção mais fraca da dupla Macalé-Salomão gravada pela cantora, que faz aqui quase que uma despedida definitiva de Gal Costa com o desbunde.

De Caetano Veloso a Tom Jobim

Da Maior Importância” (Caetano Veloso) nos devolve Gal Costa caetaneando da forma que só ela pode e sabe fazer. Um dos melhores momentos do disco. A música traz uma letra longa, com expressões acentuadamente datadas (“Deve haver uma transa qualquer” – na época a gíria “transa” não se referia ao que hoje está relacionada ao ato sexual, uma pessoa transada, uma transa, uma roupa transada, nos anos setenta, era algo ou alguém que estava bem, na moda, de bom gosto – ou “você não teve pique” – não teve garra, enfim, expressões típicas dos anos setenta) que não diminuem a beleza perene da canção. Segundo Gal Costa, a música teria nascido de uma tarde de sol no famoso Píer, num affair relâmpago entre ela e o autor, que não foi além das dunas da Gal, mas se perpetuou nas dunas da MPB e da interpretação da sereia.
Lírica, bucólica, doce é Passarinho” (Tuzé de Abreu), canção que Gal Costa transforma em singela, terminando com “pios” de um pássaro livre, sem a melancolia da acauã ou a cegueira do assum preto, apenas um passarinho na hora do vôo em águas limpas da voz da cantora:

“Cantar Como um passarinho
De manhã cedinho
Lá na galha do arvoredo
Na beira do rio
Bate as asas, passarinho
Que eu quero voar”

E Gal Costa voou. Voou do underground, da mística do desbunde e da contracultura e pousou na sua primeira interpretação do mestre soberano, “Desafinado” (Tom Jobim – Newton Mendonça). Termina o álbum totalmente, belissimamente bossa nova. Casamento perfeito da sua voz com o violão de Roberto Menescal, e o universo jobiniano. Fecha o ciclo do desbunde e avisa como voltará no próximo álbum, leve e reciclada, eternamente índia, eternamente Gal Costa.

Ficha Técnica:

Índia
Philips
1973

Direção de produção: Guilherme Araújo
Direção de estúdio e coordenação: Edu Mello e Souza
Técnicos de som: Luigi (Rio), Marcus Vinícius (São Paulo)
Estúdios: Phonogram (Rio), Eldorado (São Paulo)
Fotos externas: Antonio Guerreiro
Fotos internas: Mario Luiz T. de Carvalho
Capa: Edinizio Ribeiro
Palavras destaque: Waly Salomão
Direção musical: Gilberto Gil
Violão e violão 12 cordas: Gilberto Gil
Violão em “Desafinado”: Roberto Menescal
Acordeom: Dominguinhos
Guitarra: Toninho Horta
Contrabaixo: Luiz Alves
Bateria: Roberto Silva
Percussão e efeitos: Chico Batera
Percussão em “Milho Verde”: Chacal
Órgão: Wagner Tiso (“Pontos de Luz”, “Presente Cotidiano”)
Órgão em “Volta”: Tenório Jr
Arranjos e regências: Arthur Verocai (“Pontos de Luz”, “Presente Cotidiano”)
Regência das Cordas em “Índia”: Mário Tavares
Recriação de “Índia”: Rogério Duprat

Faixas:

1 Índia (J. A. Flores - M. O. Guerrero - versão José Fortuna), 2 Milho verde (Folclore português – adaptação Gilberto Gil), 3 Presente cotidiano (Luiz Melodia), 4 Volta (Lupicínio Rodrigues), 5 Relance (Pedro Novis - Caetano Veloso), 6 Da maior importância (Caetano Veloso), 7 Passarinho (Tuzé de Abreu), 8 Pontos de luz (Jards Macalé - Waly Salomão), 9 Desafinado (Newton Mendonça - Tom Jobim)
 
publicado por virtualia às 17:18
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