Terça-feira, 30 de Junho de 2009

MARIDO E OUTROS CONTOS - LÍDIA JORGE

 

 

Cronologicamente, a obra de Lídia Jorge faz parte da literatura portuguesa mais recente. Começa exatamente nos últimos vinte anos do século XX. O seu primeiro livro “O Dia dos Prodígios”, foi publicado em 1980. Também a sua obra mais conhecida, “A Costa dos Murmúrios”, data de 1988. Nos anos oitenta a história portuguesa, sofreria as alterações que se explodiram pelo mundo. Apesar da década começar com a ameaça de um novo conflito entre as potências, devido às disputas da já tão desgastada guerra fria, onde a invasão do Afeganistão por tropas soviéticas fez o mundo tremer, será nos anos oitenta que uma das duas ideologias que dividem o mundo irá ruir. Com a morte de Brejnev em 1982, o império da União Soviética será totalmente reformulado. Em 1985 o líder soviético Mikhail Gorbachev viabiliza um programa de reformas econômicas e políticas que conduz ao fim do comunismo soviético. Com a queda do Muro de Berlim em 1989, a Revolução Bolchevique de 1917 no leste europeu é definitivamente enterrada. A Alemanha é reunificada em 1990. Em 1991 a União Soviética sofre um colapso econômico-político e desaparece como país, deixando à deriva e independentes de Moscou as ex-repúblicas da antiga potência. O mapa da Europa é refeito. A Iugoslávia é desmantelada e em 1992, assistimos uma das mais violentas guerras feitas no continente, a Guerra da Bósnia.
Em Portugal, depois de anos de instabilidade política (nenhum governo teve maioria na Assembléia desde o 25 de Abril de 1974), eis que na década de 1980 surge um governo estável e de maioria, liderado por Aníbal Cavaco Silva. Este período conhecido por “cavaquismo”, iria durar dez anos (1985-1995). Também nos anos oitenta os militares deixam de vez o governo, o “eanismo” é encerrado com o fim político do ex-presidente, o General Ramalho Eanes. Mário Soares assume durante o cavaquismo a presidência da República, tornando-se naqueles dez anos, o maior estadista português da época democrática. A estabilidade de governo é possibilitada pela entrada definitiva de Portugal na União Européia, concretizada no dia 1 de Janeiro de 1986. Uma vez incluído definitivamente na Europa, é preciso rever os valores culturais e históricos. É preciso ter consciência de que o idioma português é falado por mais de duzentos milhões de pessoas em todo o mundo. Pela primeira vez os países de língua portuguesa sentam-se na mesma mesa e tentam chegar a um acordo ortográfico para preservar a hegemonia lingüística. A segunda metade dos anos oitenta é toda voltada para uma adaptação à economia comunitária, e uma europarização crescente. Surgem os anos do consumismo de massas, dos grandes empreendimentos imobiliários, afinal o panorama arquitetônico português ainda tinha o seu auge na época da monarquia, com algumas realizações pouco artísticas nas construções do Estado Novo. A paisagem urbanística é recuperada, sem grandes danificações do patrimônio histórico. Nas periferias das cidades surge o império dos grandes centros comerciais, dos hipermercados, cada vez mais inseridos no quotidiano português. A bolsa de valores, apesar do grande susto de 1987, é uma nova fonte de investimento. As privatizações são cada vez mais comuns. As grandes obras urbanas da segunda metade dos anos noventa são efetuadas em grandes construções aparecem: Ponte Vasco da Gama, expansões metropolitanas em Lisboa, criação do metropolitano do Porto e, principalmente a Expo’98, a grande obra iniciada na época do cavaquismo e a grande realização do Portugal pós União Européia.
É nesse período que nos surge a obra de Lídia Jorge, profundamente marcada por esses anos, apesar de totalmente alheia aos fatos históricos, mas presa aos resultados sociais dos mesmos. Portanto não conseguimos imaginar as personagens dos contos que aqui analisaremos, a transitarem em outros tempos, os mesmos contos a serem escritos em outra época, pois se tornam frutos irremediáveis dos dias atuais e só o tempo irá poder provar-nos a intemporalidade histórica da autora sem que, no século XXI, quando sentirmos necessidade de reler Lídia Jorge, não nos depararmos com a sensação de encontrarmos uma literatura datada.
É a partir dos sete contos reunidos em “Marido e Outros Contos” (1ª edição - Publicações Dom Quixote - 1997), que traçaremos um breve perfil da contista. São contos escritos ao longo de quase uma década: “António” (1988), “Marido” (1989), “A Instrumentalina” (1992), “Testemunha” (1993), “A Prova dos Pássaros” (1993), “O Conto do Nadador” (1994) e “Espuma da Tarde” (1996).

Duas Crônicas Metamorfoseadas de Conto

Foi no “Jornal de Letras” de 9 de Agosto de 1988 que “António” veio a ser publicado pela primeira vez. O conto fala-nos da importância psicológica que pode exercer um cabeleireiro nas clientes dos dias atuais. Quase de uma forma sádica, Antínoo ou António, o cabeleireiro, afugenta as clientes que ele, por um capricho da sua personalidade egocêntrica, não suporta. O salão do António é freqüentado por figuras públicas, por gente famosa, daí ser um privilégio ser atendida por ele. A personagem central sujeita-se a todas as humilhações para passar no teste do cabeleireiro. Aqui a vida e o universo das personagens não vão além da futilidade, onde a crítica consegue ser mais superficial do que brilhante, e as personagens tornam-se banais, dentro de atitudes psicológicas de pouco carisma:

“«Mal?» - António suspendeu a tesoura como se surpreso ou ofendido. Quem melhor do que ele tem o sonho da absoluta beleza colocado sobre o crânio das mulheres? Quem melhor do que ele entende como os filhos da carne são escolhidos antes da nascença para serem filhos dos deuses ou seus desconhecidos? Ele é um mediador, a joalheira ofende-o. Mas António só diz - «Madame, a mulher portuguesa é encolhida, e a européia, ousada! A portuguesa não sabe usar a cabeça! Deixe-me modelá-la.» E a pouco e pouco, o crânio da joalheira começou a aparecer sob a tesoira. «Com um brinquinho longo, Madame, a sua cabeça e um brinquinho longo, Madame.» A joalheira entendeu. «É para eu não voltar mais, é ou não é, António?» Antínoo nunca foi um verdadeiro cínico, e num momento de franqueza disse - «Sim, é, Madame.» (...)”

Este conto não poderia representar melhor a idéia mediática da época, em que a Europa e Portugal eram dois mundos à parte, tão distanciados desde a forma de pensar à de vestir ou mesmo cortar o cabelo. O conto é fútil, a linguagem, apesar de literariamente bem elaborada, não consegue trazer personagens sólidas, apenas esboços humanos, quase caricatos. Apesar de uma certa estética, longe estão da estética perfeita de Sophia de Mello Breyner Andresen, e do carisma - apesar de maniqueístas - das personagens de “Contos Perfeitos”.
O conto que dá título à coletânea, “Marido”, veio publicado na revista Vértice, em abril de 1989. Aqui vamos encontrar a Lúcia, infeliz porteira de um prédio, que sofre com a bebedeira do marido, quando este volta para casa de madrugada, totalmente embriagado, fazendo dela o ridículo de todo o prédio. Acende velas para a “Regina”, e reza fervorosamente em latim (onde teria uma porteira aprendido latim? Na infância no interior?). Os vizinhos ouvem os gritos e os maus tratos do marido, tentam oferecer solidariedade à infeliz porteira, onde não faltam advogados e médicos como inquilinos, para prestarem os seus serviços a ela. Mas a porteira, que é extremamente católica e fiel ao casamento, vê nas intenções dos vizinhos uma blasfêmia. Só ela conhece o marido, sabe que no fundo, sem a bebida, é um homem bom, um excelente esposo. Assim, contra tudo e contra todos, iludida, ela acaba por ser queimada pelo marido, que ao pôr fogo nos seus cabelos, faz dela uma tocha viva a correr por todo o prédio. A visão da mulher submissa ao seu homem e, principalmente às suas tradições - mais vale um marido bêbedo do que um divórcio - , preferível ser infeliz do que ser uma mulher separada. A submissão é mais em forma de contrato social do que de personalidade. O conto é bem estruturado, de uma ironia à flor da pele diante das hesitações e das lamúrias da personagem. Mas não chega a mostrar-nos uma personagem brilhante, muito menos faz com que fiquemos comovidos com o drama da infeliz mulher. Apenas achamos a personagem a beirar à imbecilidade, que teve o destino que mereceu a sua estupidez:

“Ela vira-se, sai da cama, esfrega-se na parede, o fogo primeiro não alastra, depois de repente alastra, cola, passa ao cabelo, ela remove-se no chão, na carpete da sala, junto da porta, ainda abre a porta, mater, vita, ó doçura, ventris tui nobis post hoc exilium, ostende! Ó clemens, ó pia, advocata, em silêncio, dulcis Virgo Maria! A porta está aberta para toda a chama. A chama da porteira sai pela escada de serviço abaixo, correndo sem ruído até ao oitavo andar, ao sétimo, ao sexto. Só no quinto a chama da porteira pára. Crepita. É a porta do advogado do quinto. Sem barulho, fica à porta do advogado, das testemunhas e da lei. A Regina assim quer que fique. Regina acocarada sobre ela, no quinto, de asas abertas sobre o quinto, e o marido no décimo. Ainda terá a vela? Abre as asas advocata, levanta voo, leva a porteira, condu-la na maca, ergue-lhe a vista, Regina, separa-a definitivamente da cama, do balde e do fogão. (...)”

Adorável Momento das Lembranças

Ao contrário dos outros dois contos descritos acima, “A Instrumentalina” traz-nos um mundo carismático, quase lírico. A autora abandona aqui a crítica social que foram os outros dois contos, diga-se, mais próximos da crônica de costumes do que do conto, e mergulha em um universo literário sem restrições. As personagens saem de um mundo onde só a literatura pode criá-las, fazendo que cada página seja um prazer para o leitor. A narrativa é contada na primeira pessoa, por uma personagem que relembra os seus anos de infância numa grande casa do avô. A narradora começa a sua história trinta anos depois dos acontecimentos. Já adulta, ela tem um reencontro com o passado. Assim, as suas lembranças de infância surgem-nos numa linguagem em que o tempo é revisto de frente para trás. Encontramos no grande casarão quatro mulheres e oito crianças. As mulheres, todas abandonadas pelos maridos juntamente com os filhos, são acolhidas na casa do sogro. Ali a presença do jovem tio Fernando, faz da infância da personagem um sonho particular. O mesmo tio que a chama de Greta Garbo, que faz dele um ídolo, uma fonte inesgotável de admiração. A imagem do tio na sua bicicleta, a Instrumentalina, é o sinônimo de liberdade e felicidade, de aventura e de sonhos. Andar com o tio na Instrumentalina é a prova máxima de vitória diante de tudo e de todos. Uma vitória da liberdade. Mas a luta de Fernando para manter as obrigações para com a família, ele o único filho que ficou ao lado do pai, e a sua grande fome de aventura e liberdade contrastam. Um dia Fernando parte para sempre, deixando para a menina que o vê partir o fim da época mais bela da sua infância.
Trinta anos depois, reencontram-se, como se o tempo quebrasse um momento que ficara preso algures, talvez além da lembrança, além dos sentimentos. A transparência da personagem, juntamente com o seu mundo tão próprio, regido por ser importante para o tio, ter como recompensa um passeio na sua bicicleta, fazer das pequenas coisas do dia a beleza simples de uma vida. O conto consegue fazer com que o leitor seja transportado para aquela quinta e sinta-se, como a personagem, quase triste pela ameaça constante do findar daquele mundo, sempre pronto para mudar, deixando apenas a poesia como perfume:

“Nunca se sabe o que uma viagem pode trazer ao íntimo do coração. Como se o tempo de repente dum outro modo fluísse, ou mesmo a qualidade da sua hora mudasse, e uma coisa perdida aparecesse, uma dúvida se quebra, um amor acaba, e outro que nunca se tinha imaginado, de repente, nasce. Objectos que sempre tivemos por separados atam as pontas, imagens que bóiam nas nossas vidas sem ligação juntam-se e criam uma nova sequência com sentido. Outras vezes a clarividência da distância torna-se tão luminosa que se vê o fim do fim, e deseja-se regressar, ainda que não seja a lugar nenhum. (...) “

Entre a Superficialidade da Crônica Social e a Beleza do Conto

Em 1993, a autora apresenta-nos dois contos: “Testemunha” e “A Prova dos Pássaros”, no Colóquio-Letras e na revista Visão, respectivamente. “Testemunha”, mais crônica social do que conto, traz-nos Zuzete, uma emigrante que saudosamente, lembra os seus tempos de criança das aldeias e das humilhações que era vítima por causa da sua miséria. Zuzete é a prova da época dos hipermercados, do consumismo dos eletrodomésticos. Da infância miserável à vida confortável, casada ao lado de Sandro, um emigrante italiano. Zuzete lembra-se das tias, da miséria, chora de saudades, mas circula entre o conforto da sua casa, dos seus eletrodomésticos, da sua máquina de lavar louças. Uma crônica mordaz à miséria e a emigração, mas pouco conseguida diante da fragilidade psicológica das personagens:

“(...) Zuzete mostrava agora a cozinha, depois o fogão, o balcão lisíssimo onde era possível pentear a cabeça no seu espelho de brilho. E o parapeito, vem ver. O Parapeito. Era o rebordo da largura duma palmada onde batia o vidro, simplesmente. Mas nele se enfileiravam quatro vasos vermelhos e de terra, donde saíam umas begónias de folha esparramada a caminho da luz distante. Olhando para baixo, no fundo, perdia-se de vista quem entrava e saía, como se estivéssemos no pináculo dum sonho cinzento. Mas estou aqui e estou a pensar nas minhas tias, tão sós, no lameiro, a bater as anáguas. Devem estar muito curvadinhas. Estão estão, têm o queixo apontado para a terra, e quando põem a trouxa da roupa no planalto das costas, o bordão onde se apoiam fica com a tremura dos canaviais. Agora Zuzete mostrava, incrustada na cozinha, a máquina que lavava a loiça.”

A Prova dos Pássaros” foge da crônica social e acaba por ser um hilariante conto, onde um professor paranóico procura contar todos os pássaros que voam nos céus de uma praia. A convicção de que, se não conseguisse contar o número de pássaros, era porque Deus não existia, mas se o conseguisse, era a prova da existência do Mesmo. A praia está sempre cheia de pessoas, o que torna impossível à contagem. Há uma hora que a praia fica deserta, mas é justamente nesta hora que uma jovem mãe passeia o filho num carrinho de bebês. Aqui o duelo do homem e da rapariga para que ela não viesse naquela hora é brilhante, o conto também:

“O Professor viu com desgosto a rapariga aproximar-se empurrando aquele terrível carrinho. Na verdade, alguém da família do bebé - um homem por certo - havia aplicado uma espécie de traga-areia à frente das rodas, o que permitia que ela o fizesse deslizar com extrema facilidade mesmo nos locais ondulados.”

Todas às vezes que Lídia Jorge foge à crônica de costumes, é mais brilhante. A prova é da narrativa de “O Conto do Nadador”, em que nos deparamos com cinco belas raparigas dos anos cinqüenta, que todos os dias se vão banhar em um local deserto, onde são observadas por um homem atlético. A partir daí todas elas têm pensamentos e desejos eróticos com o homem. Armam seduções com gestos, gritos, roupas de banho, quase despidas... Sonham com o corpo do homem, com os seus braços, a sua boca. Tudo correria bem se uma delas não se afogasse, quase morrendo. É salva pelo homem, que simplesmente acha a todas levianas. Humilhadas, voltam para o hotel e contam a história de uma forma totalmente diferente da realidade. Também aqui encontramos um momento de beleza e de literatura bem conseguida de Lídia Jorge. Ao contrário de “Espuma da Tarde”, onde a violência gratuita do dia a dia urbano nada tem de inteligente, e as personagens não vão além do seu vazio psicológico, da sua falta de carisma psicológico.
Ao analisarmos em um todo esta antologia de contos de Lídia Jorge, encontramos diferenças abismais entre eles. Em alguns momentos a desilusão é total, o distanciamento das personagens com a veia literária é quase predominante. Mas ao encontrarmos contos como “A Instrumentalina” e “O Conto do Nadador”, somos invadidos pela forte certeza de que estamos diante de uma grande contista e de uma escritora ímpar. Portanto a sua obra é um reflexo dos dias atuais, onde tudo passa como uma vitrine de modas, até mesmo a forma da autora retratar a sua obra.

Lídia Jorge

Lídia Jorge é considerada uma das maiores escritoras portuguesas da atualidade, destacando-se como uma romancista de sucesso. Nasceu em Boliqueime, Algarve, em 18 de junho de 1946. Licenciada em Filologia Românica pela Universidade de Lisboa, fez-se professora secundarista por longos anos.
Lídia Jorge exerceu a profissão de professora nas então colônias portuguesas da África, em 1970. Sua passagem por Angola e Moçambique coincidiu com os últimos anos da guerra colonial, que culminaram com a independência dos países africanos em relação a Portugal. A visão deste período acompanhou a sua obra, inspirando alguns dos seus personagens.
Com uma obra publicada nos últimos do século XX, seu primeiro romance “O Dia dos Prodígios”, publicado em 1980 por indicação de Vergílio Ferreira, traduz um novo período que se vivia na literatura contemporânea portuguesa. O romance “A Costa do Murmúrio”, de 1988, um reflexo do período colonial vivido na África, consagrou-a de vez como uma das escritoras mais aclamadas e lidas de Portugal.
O romance “O Vale da Paixão”, de 1998 deu a Lídia Jorge o Prêmio Dom Dinis da Fundação Casa de Mateus, o Prêmio Bordallo de Literatura da Casa da Imprensa, o Prêmio de Ficção do Pen Clube e, em 2000, o Prêmio Jean Monet de Literatura Européia de escritor do ano.
Lídia Jorge tem a sua obra traduzida em vários idiomas e reconhecida em muitos países. Seu último romance foi publicado em 2007, “Combateremos a Sombra”.

OBRAS:

Romance

1980 – O Dia dos Prodígios
1982 – O Cais das Merendas
1984 – Notícia da Cidade Silvestre
1988 – A Costa dos Murmúrios
1992 – A Última Dona
1995 – O Jardim sem Limites
1998 – O Vale da Paixão
2002 – O Vento Assobiando nas Gruas
2007 – Combateremos a Sombra

Contos

1992 – A Instrumentalista
1992 – O Conto do Nadador
1997 – Marido e Outros Contos
2004 – O Belo Adormecido
2008 – Praça de Londres

Infanto-Juvenil

2007 – O Grande Vôo do Pardal

Teatro

1997 - A Maçon
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Segunda-feira, 29 de Junho de 2009

NOVEMBRADA - PRELÚDIO DE UM GOLPE DE ESTADO

 

 

Com o fim do Estado Novo, mantido pela ditadura de Getúlio Vargas, o Brasil passou por um período turbulento de uma democracia frágil e arrastada à sombra de golpes, que sobreviveria de 1945 até o golpe militar de 1964. Neste curto período foi promulgada uma nova Constituição em 1946, as eleições voltaram ao país e quatro presidentes foram eleitos: Eurico Gaspar Dutra (1945), Getúlio Vargas (voltando ao poder pelo voto do povo, em 1950), Juscelino Kubitschek (1955) e Jânio Quadros (1960).
Após a promulgação da Constituição, nenhum dos três presidentes foi eleito com maioria absoluta. Getúlio Vargas teve 48,7%, Juscelino Kubitschek 35,6% e Jânio Quadros 48%, o que levou à sombra de vários golpes de políticos derrotados e sem o hábito de viver em democracia, na tentativa de impedir que os presidentes eleitos assumissem o mandato, o que era inviável, visto que não se previa segundo turno nas eleições presidenciais.
A volta de Getúlio Vargas à presidência marcou pelo populismo ascendente da sua imagem envelhecida, sendo associada como o pai do povo e dos trabalhadores. Vargas, raposa velha, soube muito bem tirar proveito da nova condição populista, apagando de vez a imagem de ditador que fora durante os 15 anos que se manteve no poder. Este populismo desgostou as elites, fazendo que conspirassem contra o governo. Envolvido em escândalos e pressões políticas, chamado de “Mar de Lamas”, Vargas viu-se acossado por um movimento que exigia a sua renúncia. Não vendo saída, o episódio teve o trágico desfecho do suicídio em 24 de agosto de 1954. A morte de Vargas causou revolta e comoção, adiou o golpe da direita conservadora por dez anos e garantiu a vitória de Kubitschek em 1955.
Mas os eternos conspiradores da democracia, como Carlos Lacerda e os integrantes da União Democrática Nacional (UDN), não aceitaram os resultados das urnas. Em 3 de novembro de 1955, o então presidente Café Filho, que substituíra Vargas, sofreu um ataque cardíaco e foi substituído por Carlos Luz, o presidente da Câmara. O seu governo, apoiado por golpistas e com a intenção de se manter no poder, impedindo Juscelino Kubitschek, eleito em outubro, de assumir a presidência, durou até a madrugada de 11 de novembro, quando tropas do general Lott saíram às ruas do Rio de Janeiro para defender os direitos constitucionais e a democracia. O fiasco desta tentativa de golpe ficou conhecido como Novembrada. Vencidos os golpistas, eles continuariam a urdir o golpe até que, em 1964, conseguiram levar os militares ao poder, fomentando uma ditadura que duraria mais de vinte anos.

Sob o Fantasma de Vargas

O potiguar Café Filho (na foto com o general Lott), vice-presidente de Getúlio Vargas, tomou posse na mesma manhã que o corpo do presidente foi encontrado morto em seu quarto. O novo presidente tinha 55 anos, fora eleito vice-presidente pelo Partido Social Progressista (PSP), fundado por Adhemar de Barros. Na época as eleições para presidente e para vice eram feitas separadamente.
Pressionado pela comoção que causara a carta testamento deixada por Vargas, Café Filho comprometeu-se a cumprir o calendário eleitoral, que marcava eleições para renovação da Câmara, do Senado e dos governos estaduais em outubro de 1954. Se por um lado a população e os seguidores de Vargas tentavam garantir as eleições, os conspiradores do antigo presidente, a esta altura transformados em vilões e odiados pelo povo, tentavam adiar o sufrágio, com medo de que o fantasma do presidente morto influenciasse nas urnas, dando vitória absoluta aos getulistas. Carlos Lacerda, que mais tarde ganharia a alcunha de Corvo Conspirador, e o maior inimigo de Vargas, defendia que se instaurasse um regime de exceção, para que se fizesse reformas que impedissem a volta do getulismo ao poder.
Mas, contrariando as expectativas, mesmo sobre forte pressão, Café Filho, então afinado com a UDN, garantiu as eleições no dia 3 de outubro de 1954, vendo sair das urnas a vitória imbatível da coligação PSD/PTB, sob o espectro da morte de Vargas.

Eleições Presidenciais de 1955

Morto, o ex-presidente Vargas estava mais vivo do que nunca. Sua influência era nítida nas eleições para presidente, que se iriam realizar em outubro de 1955. O candidato Juscelino Kubitschek (na foto com o general Lott) trazia no seu carisma uma identificação do povo com o espírito getulista, o que lhe garantia uma vitória nas urnas. Diante desta evidência, Café Filho e os seus aliados não desmentiam os boatos de que um golpe militar formava-se no horizonte. Em dezembro de 1954 espalhou-se pela nação que circulava um documento dos militares vetando a candidatura Kubitschek. Café Filho deixava esta sensação em seus discursos, na tentativa de assustar o candidato mineiro e dissuadi-lo da idéia de disputar as eleições. Mas JK não se deixou intimidar pelas ameaças veladas de um possível golpe militar.
Em maio de 1955 Adhemar de Barros, derrotado nas urnas de 1954 para governador de São Paulo, entrou na disputa pela presidência. Em junho a UDN lançou a candidatura de um militar, o general Juarez Távora, chefe da Casa Militar de Café Filho.
As eleições foram marcadas por grandes golpes durante a campanha. O maior deles foi contra João Goulart, considerado o herdeiro direto de Getúlio Vargas, que concorria para vice-presidente. O golpe contra a campanha de Jango ficou conhecido como Carta Brandi. Em setembro os jornais publicaram cartas que supostamente tinham sido enviadas a João Goulart em 1953, quando ele era ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, pelo deputado argentino Antonio Jesús Brandi. Na carta, Brandi fazia referências às supostas articulações entre Jango e Perón, para juntos promover a deflagração de um movimento armado para a instauração de uma república sindicalista. Mesmo diante deste falso documento, Jango venceria as eleições em outubro, sendo eleito como vice-presidente com mais votos do que Kubitschek, que venceria para presidente com cerca de 36% dos votos. A seguir às eleições, investigações do exército comprovaram a falsidade da Carta Brandi, que tinha sido forjada por argentinos e vendida aos opositores de João Goulart.

A Novembrada

A vitória nas urnas da dupla Juscelino Kubitschek - João Goulart, em 3 de outubro de 1955, foi a resposta além túmulo do ex-presidente Vargas aos seus opositores. Esta vitória incomodou profundamente à direita conservadora. Conspirações passaram a fazer parte das reuniões dos derrotados. O principal objetivo era impedir que JK tomasse posse. Movidos pela avidez de tomar o poder, os golpistas promoveriam um episódio que beiraria à insanidade e ao grotesco.
Em 1955 morreria o presidente do Clube Militar, o general Canrobert Pereira da Costa, será no seu enterro, a 1 de novembro, que se deixará claro os meandros do golpe que está a ser engendrado para impedir a posse de JK. No velório, o coronel Bizarria Mamede discursou contra o presidente eleito, chamando a sua eleição de “mentiras democráticas”, o coronel dizia que se formava um regime presidencial das minorias, que se entregava o poder a um eleito que não tinha o apoio da maioria da nação.
Diante do discurso de Bizarria Mamede, uma atitude de indisciplina militar, o ministro da Guerra, general Henrique Teixeira Lott, não pôde punir o coronel porque ele era membro da Escola Superior de Guerra, subordinada à presidência da República, só podendo ser punido pelo próprio presidente.
É no olho do furacão das conspirações para impedir a posse de JK, que no dia 3 de novembro o presidente Café Filho sofre um distúrbio cardiovascular, abandonando provisoriamente o poder. Há rumores históricos que Café Filho teria fingido a doença para não ter que assumir as conspirações contra o presidente eleito. Diante da doença Café Filho, assume a presidência, em seu lugar, o presidente da Câmara, Carlos Luz.
Como presidente, Carlos Luz recebe o general Lott de forma ríspida, comunicando-lhe que não punirá o coronel Bizarria Mamede. Diante da intransigência do presidente, no dia 10 de novembro, o general Lott demitiu-se do Ministério da Guerra. Para substituí-lo foi indicado o general Fiúza de Castro, que teria o nome publicado como novo ministro da Guerra já no dia 11, sexta-feira, e assumiria na segunda-feira seguinte.
Doze generais procurariam Lott, para que ele liderasse uma reação militar que garantisse o cumprimento do respeito às instituições, naquele momento ameaçado pelo presidente, que assumia uma clara postura que estimulava um golpe contra a posse de JK e João Goulart. O general Lott, a princípio, não aceita liderar qualquer movimento para não violar a legalidade, mas é convencido de que para defendê-la, precisava promover o “golpe da legalidade”. Na madrugada de 11 de novembro, o general Lott conclama os principais comandos à defesa “do regime constitucional”. 25 mil homens de Lott tomam, por volta da 1h30 da manhã, as ruas do Rio de Janeiro. Lott prende o general Fiúza e volta ao ministério da Guerra.
Diante da reação militar, os golpistas Carlos Luz, Carlos Lacerda, o coronel Bizarria Mamede e alguns ministros, promoveriam uma autêntica ópera bufa nos palcos da história. Com medo das tropas do general Lott, nove conspiradores fogem do Catete, amontoados em um automóvel. Os golpistas refugiam-se no cruzador Tamandaré (foto), comandado pelo almirante Silvio Heck. A bordo do cruzador, recebem a notícia de que poderiam contar com a guarnição da marinha em Santos e com o então governador de São Paulo, Jânio Quadros, onde se instalaria um governo federal presidido por Carlos Luz. Sob tiros de canhão lançados dos fortes, os golpistas partem para Santos. Mas a guarnição de Santos acabou por aderir às tropas de Lott e o governador Jânio Quadros desmentiu o apoio ao governo que os golpistas queriam presidir em terras paulistas.
Sem apoio algum, Carlos Luz decide voltar para a capital federal e enfrentar a situação. Às 15h30 o presidente da Câmara, Flores da Cunha, declarava o impedimento de Carlos Luz, passando a presidência para o presidente do Senado, Nereu Ramos. Carlos Luz entrou para a história como o presidente que permaneceu por menos tempo no poder, mesmo assim criou problemas e turbulências. Carlos Lacerda refugiou-se na embaixada de Cuba, recebendo salva conduto para exílio na ilha da ditadura de Fulgencio Batista.
No dia 21 de novembro Café Filho deixou o hospital, mas também foi declarado impedido. Estava esmagada a conspiração golpista para impedir a posse de Juscelino Kubitschek.O general Lott obrigou Nereu Ramos a decretar estado de sítio por 30 dias, depois prorrogado até a posse do presidente eleito. Em 31 de janeiro de 1956, mesmo contrariando a muitos, Juscelino Kubitschek recebeu a faixa presidencial. Mas os conspiradores da Novembrada, como ficou conhecida a tentativa de golpe de 1955, não se deram por vencidos, pelo contrário, fortaleceram-se através dos anos, tentaram impedir João Goulart, que se elegeu vice do sucessor de JK, Jânio Quadros; de assumir a presidência quando este renunciou, em agosto de 1961. Os golpistas mais uma vez tiveram os seus planos frustrados. Para tragédia da história, finalmente venceram, promovendo o golpe que derrubaria João Goulart e instauraria a ditadura militar, em abril de 1964.
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Domingo, 28 de Junho de 2009

LUA DE MEL COMO O DIABO GOSTA - ADORÁVEL PROVOCAÇÃO ROMÂNTICA

 

 

A década de 80 transformou Gal Costa na primeira dama da música popular brasileira. Tornou-se recordista de vendas e de público. A cantora mergulhou numa roda viva que culminou com o estrondoso sucesso do álbum “Bem Bom” (1985), no Brasil e no exterior. Após este sucesso contínuo, indo na contra-mão da roda viva e da imagem de pop star, Gal Costa tirou o ano de 1986 para dar uma lufada naquela década que lhe sorria e tragava no ápice do sucesso. Na sua inquietante carreira, 1987 foi marcado pelos encontros musicais com Tom Jobim, ano do antológico encontro da dupla em show no mítico Wiltem Theatre, em Los Angeles, que ficaria registrado no álbum “Rio Revisited”, lançado no exterior em 1987, no Brasil só chegaria em 1992. Este ano de silêncio discográfico de Gal Costa, o primeiro da década, trouxe uma grande expectativa. Crítica e público esperavam ansiosos o novo álbum da cantora, curiosos de ver o seguimento da sua carreira. É neste contesto que, em 1987, é lançado o álbum “Lua de Mel Como o Diabo Gosta”. O álbum reflete uma fase de paixão na vida particular de Gal Costa, como se estivesse em lua de mel com os sentimentos, a deliciar-se com os prazeres da paixão. No auge dos vocais e dos agudos, ela encerraria a década com aquele que seria o seu álbum mais incompreendido, o que sofreu o amargo desprezo da crítica. Mas “Lua de Mel Como o Diabo Gosta”, ao contrário do que se imaginou na época, mostrou-se um disco que sobreviveu aos anos 80, e mesmo com arranhões de um repertório excessivamente romântico para o que se esperava da inquieta Gal Costa, musa de todos os movimentos que dilaceraram os costumes no país, chegando aos tempos atuais sem o mínimo traço de ser um registro datado.

Dos Agudos Indomáveis às Baladas Românticas

A capa do álbum vinha provocativa, ousada, em que a cantora aparecia de costas, a fumar, com uma toalha a esconder os cabelos, a transpirar sensualidade dentro de uma piscina. Quem se atreveria a mostrar as costas na capa de um álbum? A ousadia não terminava na capa do disco, já na primeira faixa o tom é altíssimo, os agudos parecem selvagens, com uma ave tropical, é “Arara” (Lulu Santos). Ao contrário do que parece, Gal Costa tem aqui o controle perfeito dos seus agudos e do canto, sabe até onde ir ou se expor. A voz está no auge do domínio técnico. Em “Arara” ela já diz que não quer se pertencer, quer ser dos outros, dos fãs, dos críticos, do público, dos amores, das paixões, mas não lhe “azucrinem”, porque a arara indomável estava preste a aflorar.
Após esta faixa de sensualidade à flor da pele, há uma pausa para voarmos na delicadeza da interpretação de “O Vento” (Ronaldo Bastos – Djavan), de mergulharmos na beleza da canção e dos versos. O violão e assovio de Djavan encaixam-se à voz de sereia que se faz aqui, a embriagar, a voar com o vento sobre as casas, sobre telas de tons pastéis do amor. Temos aqui um momento definitivo do casamento (sempre bem sucedido) de Gal Costa e Djavan.
Tenda” (Caetano Veloso) traz a poesia inconfundível do poeta baiano e da sua musa eterna. Caetano Veloso tem nesta música uma sensibilidade diante da existência e do mundo, com momentos lúdicos de versos únicos:

“Que só sei dar vida à trama vã
Rei das belezas fugazes
Tu que trazes drama à vida sã”

Seguindo o ritmo das baladas românticas, Gal Costa transita em notas musicais por um antigo sucesso dos Beatles, “Viver e Reviver (Here, There and Everywhere)” (Paul McCartney – John Lennon – versão Fausto Nilo). A balada ressalta a doçura dos floreados que Gal Costa lhe empresta. É uma doce volta a época flower power, abandonada por ela definitivamente no álbum “Caras e Bocas” (1977), com uma roupagem delicada do fim da década de 80. Esta canção entraria para a trilha sonora da novela “Bebê a Bordo” (Globo) e marcaria a presença da cantora no programa “Globo de Ouro”.
Gal Costa encerra o lado A do disco com mais uma canção de amor, “Me Faz Bem” (Milton Nascimento – Fernando Brant). A canção é apaixonada e apaixonante. A preferida da cantora no disco, que confessou inspirar-se em Elis Regina e Angela Maria para interpretá-la. Um hino ao amor, quem não bebeu desta música pensando em alguém? Nesta canção viajamos entre os arrepios de se aninhar ao amor, nos mistérios de quem amamos e nos fazemos par. Chegamos ao fim da primeira parte do disco cheios de canções que usaremos como trilha sonora das paixões que vamos viver no nosso dia a dia.

A Última Provocação de Gal Costa na Década de 1980

Com mais ritmo, mas não menos romântica, vamos começar o lado B com “Morro de Saudade” (Gonzaguinha). Aqui sensualidade e romantismo rimam com perfeição, revela de vez a verve apaixonada pela qual passava Gal Costa. É também uma despedida entre Gal Costa e Gonzaguinha.
A canção mais esperada do disco, que dá título a ele, vem logo a seguir, “Lua de Mel” (Lulu Santos), aqui temos uma Gal Costa em sua mais completa explosão sensual. Literalmente ela mora, nesta canção, em um pedaço do céu. Nunca, em fase alguma da sua carreira, a cantora expôs tanto o romantismo, tanta vontade de cantar o amor saudável e erótico, a beleza da paixão na sua mais completa hipnose, do que neste álbum.
Lua de Mel Como o Diabo Gosta” tem um grande vencedor, Lulu Santos. Três canções em um único álbum da primeira dama da MPB, era a consolidação da sua carreira. “Creio” (Lulu Santos) é melancólica, existencialista, triste e bela. Os versos aqui advinham o que vai achar este álbum da crítica:

“Tudo é incerto
E por isso mesmo exato
Tudo que for pra ser, será”

E o incerto continua a tomar conta do álbum. Como se continuasse do ponto que deixara em “Musa de Qualquer Estação” (Roberto Carlos – Erasmo Carlos), do “Bem Bom”, Gal Costa entra em um tom mais alto e ousa a gravar novamente a dupla que entrara para o Guines como a que mais teve músicas interpretadas por cantores diversos: Michael Sullivan e Paulo Massadas, a canção é “Sou Mais Eu”, aqui Gal Costa afirma a proposta do álbum, arremata com esta última provocação que faria na década de 80. E para quem não acreditava, ela dizia “sou mais eu”.
Se o tom começou alto com “Arara”, não termina diferente. “Todos os Instrumentos” (Joyce) surge indomável, jazístico, quase a rimar um blues. Gal Costa encerra o álbum como começou, imprevisível.

“Está no sujo e no cristalino
Está na voz do cantor
Na loucura e no desatino”

Lua de Mel Como o Diabo Gosta” não correspondeu à expectativa que se fazia da volta de Gal Costa. Foi visto à época como um disco irregular e cheio de baladas românticas, algo inédito na discografia da musa da Tropicália e do desbunde. Teria sido o bis na interpretação da dupla Sullivan-Massada? Não. Na verdade o que a crítica não perdoou foi um disco de Gal Costa com três canções de Lulu Santos, na época visto como o eterno garotão surfista que debutava pela MPB. Visto à distância, o que faltou ao álbum? Quem pôde ver o show sabia. No show Gal Costa cantava “O Ciúme” (Caetano Veloso), música lançada por Caetano Veloso naquele ano, levando a platéia ao delírio. Trazia dos shows que fez com Tom Jobim uma interpretação ímpar de “Dindim” (Tom Jobim). Faltou esta bagagem para costurar tão ousada proposta, uma ode à paixão! Sobre o “Lua de Mel Como o Diabo Gosta” não prevalecerá o que disse a crítica da época, mas a longevidade das canções, que não envelheceram, não ficaram datadas e não foram recuperadas por nenhum aventureiro da MPB. Este álbum causou mais polêmica do que desagradou.

Ficha Técnica:

Lua de Mel Como o Diabo Gosta
BMG
1987

Direção artística: Guto Graça Mello e Gal Costa
Produzido por Guto Graça Mello
Coordenação de repertório: Miguel Plopschi
Engenheiros de gravação: Sergio Ricardo (G.G.M. Studios), Jackson Paulinho (G.G.M. Studios), Guilherme Reis (Multi-Studio), Cláudio Farias (Multi-Studio), Andy Mills (Mix) e Sergio Murilo (SINTH)
Assistentes de gravação: Celso Lessa (G.G.M. Studios), Magro (Multi-Studio) e Moleza (Multi-Studio)
Assistente de produção: Lia Sampaio e Celso Lessa
Engenheiros de mixagem: Eduardo Costa (Transamérica) e Vanderlei Loureiro (Transamérica)
Assistente de mixagem: Alcides (Transamérica), Edson Grandão (Transamérica), Fernando (Transamérica) e Paulo Campos (Transamérica)
Coordenação de mixagem: Sergio Ricardo (G.G.M. Studios) e Jackson Paulino (G.G.M. Studios)
Direção de mixagem: Guto Graça Mello
Corte: Oswaldo (RCA)
Voz gravada em sistema digital por Guilherme Reis
Capa: Noguchi
Concepção: Gal Costa
Fotos da capa: Márcia Ramalho
Produção: Marcelo Marinho
Make-up: Marlene Moura
Coordenação gráfica: Tadeu Valério

Faixas:

1 Arara (Lulu Santos), 2 O vento (Djavan - Ronaldo Bastos), 3 Tenda (Caetano Veloso), 4 Viver e reviver (Here, there and everywhere) (Paul McCartney - John Lennon - versão Fuasto Nilo), 5 Me faz bem (Milton Nascimento - Fernando Brant), 6 Morro de saudade (Gonzaguinha), 7 Lua de mel (Lulu Santos), 8 Creio (Lulu Santos), 9 Sou mais eu (Paulo Massadas - Michael Sullivan), 10 Todos os instrumentos (Joyce)
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Sábado, 27 de Junho de 2009

AS ELEGANTES RUAS DA SÃO PAULO DOS BARÕES DO CAFÉ

 

 

São Paulo de Piratininga foi fundada pelos jesuítas sobre uma colina, tornando-se um marco de partida para a conquista do interior do país. O aspecto urbano da cidade foi adquirido através dos séculos, mais das necessidades que se lhe impunham do que de um planejamento que construísse harmonicamente a maior cidade da Brasil.
Da vila que nasceu de uma missão jesuítica, saíram em busca de riquezas e sonhos, as entradas e bandeiras que conquistaram o sertão e o interior do Brasil, alargando conseqüentemente, as fronteiras coloniais e derrubando o Tratado de Tordesilhas, fazendo do território nacional algo muito próximo dos dias atuais. Passada a fase da conquista dos bandeirantes, a cidade esteve politicamente estagnada, o progresso adormecido do século XVIII à primeira metade do século XIX, quando foi despertada pelo ciclo do café. Constituindo a principal riqueza econômica do Brasil até 1930, o café transformou a cidade em uma metrópole, que mesmo depois do fim do ciclo, jamais deixou de crescer, erguendo-se numa das maiores cidades do planeta.
Com a riqueza do café vieram os barões, fazendeiros que enriqueceram cultivando a planta, sendo grande parte deles agraciados com títulos nobiliárquicos dado pelo Império. Se os títulos de nobreza e o dinheiro corriam soltos, a cidade que abrigava esta riqueza precisava deixar de vez o aspecto de lugar ilhado, cercado por várzeas alagadiças, brejos e ribeirões. Aos poucos, o dinheiro do café trouxe à velha Piratininga o glamour importado diretamente de Paris. Se a Praça da Sé era o pulsar da cidade, ponto de encontro de toda a população, nascia no fim do século XIX, no Vale Intransponível (hoje Vale do Anhangabaú), a parte sofisticada e elitizada de São Paulo, chamada de Ruas do Triângulo, perímetro delimitado pelas Ruas 15 de Novembro, Direita e São Bento. Nas Ruas do Triângulo, os barões de São Paulo fizeram a sua própria Paris, e a beleza sem harmonia da cidade deu passagem para uma desordenada, mas pulsante vida de ferveção populacional digna das ruas européias. Era a elitização dos trópicos, que começara na capital do país, o Rio de Janeiro e alcançaria São Paulo de forma indelével.

As Ruas do Triângulo

O centro histórico da paulicéia, também chamado de centro velho, surgiu na colina central da cidade, ladeado pelo Vale do Anhangabaú e pela Várzea do Carmo, encerrando ali o que se chamava de Triângulo. O Triângulo originou-se nos tempos coloniais através das sendas que serviam de comunicação entre os largos São Bento, da Sé e São Francisco.
Na segunda metade do século XIX as ruas de São Paulo eram estreitas, de terra batida e não iam além dos vales do rio Anhangabaú e do rio Tamanduateí. A cidade estava longe de ser comparada com a capital do Império, Rio de Janeiro, ou com Recife, ou com Salvador. O comércio do café, a importância que ele começaria a ter na economia do país foi o grande passo para tirar São Paulo da condição de capital periférica. Em 1867 a inauguração da ferrovia Santos-Jundiaí começou a mudar o destino da cidade. Em 1872, foi inaugurada a primeira linha de bondes, que eram puxados por animais. Era o começo da expansão das ruas do centro, a chegada da riqueza do café que começava a ser canalizada para o Estado e para a sua capital.
Se o Pátio do Colégio foi onde São Paulo nasceu, o Triângulo foi onde a cidade consolidou-se. Delimitado pelas Ruas Direita, São Bento e 15 de Novembro, o Triângulo tornou-se o ponto de concentração da grande vida social e comercial da cidade na época faustosa do ciclo do café, confinando lojas luxuosas, cafés sofisticados, que faziam para ali convergir a elite da sociedade paulistana, além dos cidadãos comuns, dos visitantes da cidade, dos estrangeiros e dos imigrantes que começavam a chegar para trabalhar nas lavouras do café ou nas fábricas que despontavam pela velha Piratininga.
O comércio latente e o luxo explícito das lojas das Ruas do Triângulo davam uma nova paisagem ao centro, até então evidenciado apenas pela beleza discreta das suas igrejas ou conventos seculares, como o de São Francisco, o de São Bento e o do Carmo. As três ruas que formavam o Triângulo foram, durante o governo de João Teodoro (1872-1875), devidamente calçadas, novidade que se estendeu para o Largo do Rosário e à Praça da Sé. Ao longo do tempo, por serem demasiadamente estreitas, as Ruas do Triângulo transformaram-se em ruas estritamente para pedestres.
O esplendor trouxe às ruas do Triângulo a luxuosa concentração de pessoas abastadas. Também a juventude com os seus arroubos de paixão, passeavam por lá, passando a utilizar a expressão “Fazer o Triângulo”, ou seja, transitar pelas ruas numa elegante caminhada de rapazes pelas ruas Direita, 15 de Novembro e São Bento, enquanto belíssimas moças faziam o sentido inverso, trocando olhares furtivos e apaixonados.
A vida era intensa no triângulo, que além de concentrar as casas de comércio mais importantes, traziam os principais bancos nacionais e estrangeiros, as agências marítimas, as casas de câmbio, as redações dos jornais, importantes escritórios de diversas companhias e casas de moda.
Neste sofisticado centro paulistano, o Largo do Rosário seria transformado na Praça Antônio Prado, que se tornaria o coração do Triângulo. Também um outro ponto do Triângulo há de ser mencionado, os “Quatro Cantos”, formado no cruzamento entre a Rua São Bento e a Rua Direita, local que se ergueria a Praça do Patriarca, que abrigaria o mais famoso e elegante magazine paulistano, o Mappin Stores, mais tarde transferido para a Praça Ramos de Azevedo.

Rua Direita, Grandes Vitrinas e Quiosques

Uma das mais importantes ruas históricas da capital paulistana, a Rua Direita já era citada em documentos do século XVII, como uma rua que seguia para a igreja de Santo Antônio. Esta igreja, erguida em homenagem a Santo Antônio de Lisboa, após grandes reformas, chegou aos dias atuais, situada na Praça do Patriarca. É justamente a igreja de Santo Antônio que será responsável pela toponímica da rua, chamada assim por ser o caminho que dava “direito” do terreiro da Sé à igreja de Santo Antônio. Por este motivo a rua chamou-se Rua Direita de Santo Antônio. Teria sido chamada ainda de Direita de Santo e Direita da Misericórdia. Com o passar do tempo o nome foi encurtado para Rua Direita.
Na época da explosão da economia cafeeira, a Rua Direita desembocava na esquina da Rua da Imperatriz (atual Rua 15 de Novembro). Pequenos prédios com lojas de armarinho tomaram conta da rua. Casas foram adquirindo nome, como a famosa e conceituada Casa Baruel. Suas vitrines atraíam os mais abastados, sendo local de passeio dos estudantes. A exemplo do Rio de Janeiro, vários quiosques foram erguidos, além de anúncios coloridos por toda a rua, dando a São Paulo, finalmente, o aspecto de uma grande cidade.
Tornando-se ao final do século XIX o maior componente das ruas do Triângulo, a Rua Direita foi tomada por grandes casas, entre elas a famosa Casa Lebre, que se tornou a de maior movimento na cidade; a Casa Alemã, a Casa Kosmos; as confeitarias Fasoli e Nagel; o Grande Hotel da França, situado no conhecido “Quatro Cantos”; a charutaria Nunes; o atelier do retratista Henschel, sucedido por Vollsack, que passou o negócio para o alemão Baumgarten; a sapataria A Bota Gigante e o joalheiro Birle. Além de todas as lojas de comércio, a Rua Direita abrigava o Bar Viaduto, que com a apresentação de uma orquestra todas as noites, era o local preferido para os encontros dos apaixonados.

Rua 15 de Novembro, a Mais Sofisticada da Cidade

Já no século XVII há documentos referentes à Rua do Paço Manoel Paes de Linhares, que seria a atual Rua 15 de Novembro. Esta rua não passava de pouco menos de meia dúzia de casas de taipa. No final dela, entre 1711 e 1715 foi erigida a igreja do Rosário (na atual Praça Antônio Prado), mais tarde dedicada à Irmandade do Rosário dos Homens Pretos, importante confraria que lutaria no fim do século XIX pela abolição da escravatura. Assim a Rua do Paço Manoel Paes de Linhares, na verdade uma trilha que servia de comunicação entre o Largo da Sé e a igreja do Rosário, passou a ser chamada de Rua do Rosário dos Pretos. O nome permaneceu até fevereiro de 1846, quando a família imperial brasileira visitou São Paulo, como homenagem à visita de dom Pedro II e de sua esposa, o local passou a chamar Rua da Imperatriz. Assim permaneceu até a proclamação da República, em 1889, passando a ter o nome definitivo de Rua 15 de Novembro.
De origem rural e humilde, que abrigou casas de taipa no início da sua história, tornou-se a mais nobre e cosmopolita das três ruas do Triângulo. A paisagem arquitetônica passou a imitar à parisiense. Aos poucos, a rua foi ladeando-se de uma vizinhança sofisticada, lojas com conteúdo aristocrático, além de abrigar os mais caros estabelecimentos comerciais e as então florescentes casas bancárias.
O paulistano abastado encontrava na Rua 15 de Novembro, todos os acessórios e procedimentos para trazer glamour à sua nova condição de habitante de uma metrópole que começava a borbulhar como tal; desde as mais caras jóias, às roupas sob os moldes europeus, os perfumes mais delicados e suaves, até o corte de cabelos e barba. Desde alfaiates, tecidos, cabeleireiros, sapatarias, joalherias e costureiras, tudo que se comercializava na Rua 15 de Novembro, era anunciado como procedente de Paris. Também aqui estavam estabelecidos: o London Bank, o Banco do Comércio e Indústria, o Banco Alemão e Credit Foncier.
Já no início do século XX, a Rua 15 de Novembro tornou-se a mais sofisticada da Paulicéia, sendo visto nela desfilar bondes, carruagens faustosas, conduzidas por cavalos de raça. Era para esta rua que convergiam os jornalistas, os políticos, os barões do café, os banqueiros e os intelectuais, tornando-se os seus cafés pontos de tertúlia e de transações comerciais. Na paisagem da rua, diferentes pessoas eram vistas, desde a fina sociedade paulistana, aos visitantes estrangeiros e os imigrantes que chegavam para conquistar um lugar ao sol. Mulheres elegantes, trajando toaletes e jóias que em nada deixavam a desejar a mais fina sociedade européia.
Era na Rua 15 de Novembro que se encontrava o escritório fotográfico de Guilherme Gaensly, de onde foram feitos os principais registros fotográficos da emergente sociedade paulistana que enriquecia com o café. Outro pioneirismo da arte visual foi visto pela primeira vez nesta rua, a chegada da “lanterna mágica”, também conhecida como “fotografia animada”, que mais tarde seria chamado de cinema. A primeira animação cinematográfica foi apresentada em um salão da 15 de Novembro. A bela iluminação noturna da rua ajudava a manifestação do que seria o futuro cinema.
Prédios suntuosos passaram a construir a paisagem da Rua 15 de Novembro. Neles charmosos cafés foram abertos, faustosas casas de modas e joalherias traziam os mais belos mostruários, os mais ricos e luxuosos objetos de consumo. Com prédios de estilo arquitetônico florentino, esta rua era a transposição definitiva da lapidação da velha São Paulo de Piratininga.

Rua São Bento, Estreita e Longa

O nome desta rua está diretamente ligado com a ermida erigida no seu extremo, que se abria em largo. A ermida daria origem ao mosteiro da ordem de São Bento, assim sendo, era chamada de “rua que vai para São Bento”, nome que iria persistir por quase três séculos. Finalmente passou a chamar Rua São Bento. Há uma declaração de Frei Gaspar Madre de Deus que dizia que a rua era inicialmente chamada de Rua Martim Afonso Tibiriçá, uma homenagem ao sogro de João Ramalho, que teria residido no Largo de São Bento. Mas documento algum foi encontrado que comprovasse a veracidade desta declaração.
A Rua São Bento era (e ainda é) uma estreita artéria de comunicação entre o Largo de São Bento e o Largo de São Francisco. É a terceira vertente das ruas do Triângulo, tida como a sua base. Sua característica sempre foi eminentemente comercial, mas com artigos menos sofisticados do que os encontrados na Rua 15 de Novembro e na Rua Direita. Uma das mais famosas casas de comércio ali aberta era a Casa Fuchs, especialista em artigos de couro, que na época produziam os arreios, malas e objetos artísticos. Outra loja famosa era Ao Grande Amazonas, especializada em exóticos produtos caipiras como ponchos de boiadeiros, chapelões de campeiros e perneiras, além de comercializar roupas para meninos. As agências de viagens constituíam outra parte do comércio que ali era oferecido ao paulistano.
A Rua São Bento, em sua grande extensão, trazia as mais diversificadas lojas de comércio, atraindo para si um grande número de pessoas de todas as classes sociais. Nesta rua foi aberto o maior café da cidade, que servia a bebida expressa para os seus freqüentadores em pé, deixando assim, o paulistano degustar a preciosa bebida responsável pelo enriquecimento e prosperidade da Paulicéia. Em 1998 o Café Girondino foi inaugurado na Rua de São Bento nos moldes dos antigos cafés ali existentes no início do século XX.
Se a primeira apresentação de uma animação de cinema aconteceu na Rua 15 de Novembro, na Rua São Bento foi construído o primeiro cinema da cidade, que recebeu o nome de Íris. Historicamente, a rua é considerada o berço do cinema. Mais diversificada no seu comércio, esta longa e estreita rua selava a base do elegante Triângulo paulistano.

Praça Antônio Prado, o Coração do Triângulo

Não se pode falar nas três ruas do Triângulo, Rua Direita, Rua 15 de Novembro e Rua São Bento, sem falar na Praça Antônio Prado, considerada o coração desta sofisticada região da São Paulo dos barões do café.
No século XVII foi erigida a igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, para que os negros da cidade, libertos ou escravos, pudessem freqüentar, visto que este procedimento era proibido às igrejas dos brancos. O local da igreja ficou conhecido como Largo do Rosário. Era no largo que Irmandade do Rosário dos Homens Pretos, dirigida por juiz e juíza, rei e rainha e outros membros menores, promoviam grandiosas procissões, às quais se seguiam em frente à igreja grandes congadas, maçambiques e batuques, animados ao som da música dos atabaques. No interior da igreja à noite, eram feitos os enterros dos cadáveres. À medida que socavam a terra sobre o morto, os negros entoavam estranhas melopéias. No início do século foi decidida a remoção da igreja para o Largo do Paissandu. Assim, em junho de 1904 a velha igreja do largo foi demolida, abriu-se ali uma passagem para a Avenida São João, até então um barranco com ladeira para o Paissandu. No lugar da velha igreja do Rosário (aqui em uma fotografia do princípio do século XX) surgiu a sofisticada Praça Antônio Prado, uma homenagem a prefeito que dirigiu São Paulo de 1899 a 1911. A nova praça ficou conhecida como o “Coração do Triângulo”.
No local exato onde ficava a igreja, foi erguido o primeiro prédio de escritórios da cidade, o Palacete Martinico, sede central da Ligth entre 1907 e 1929; também sede em diversas épocas, do jornal “O Estado de S. Paulo”, do City Bank e da Bolsa de Mercados & Futuros. Os atabaques da Irmandade do Rosário deram passagem para os pregões frenéticos da Bolsa, tornando-se um dos mais movimentados locais de negócio de São Paulo, onde foram erguidos altíssimos edifícios como o Martinelli, o Banco do Brasil e a torre do Banespa.
Tido como ponto borbulhante e de encontro de todas as personalidades de São Paulo, a Praça Antônio Prado assistiu nos encontros ali promovidos, a ascensão e queda do ciclo do café, que culminaria com a queda da Bolsa de Nova York, em 1929, levando ao suicídio ou à miséria vários dos chamados barões. Enquanto durou o glamour desta época da história paulistana, a Praça gerou a sua volta, um intenso mundo cosmopolita que traduzia a essência da riqueza paulistana e o seu modo de vida. À noite era descrita a presença de mulheres elegantes, vestidas de sedas e chapéus vistosos, percorrendo com tranqüilidade às ruas à volta da Praça.
No comércio local destacava-se a Casa Seleta, que vendia charutos, cigarros, cachimbos e piteiras; o famoso Café Brandão, que ocupava o primeiro andar de um prédio demolido para a construção do edifício Martinelli; a bem freqüentada Brasserie Paulista, que também cedeu lugar para a construção do prédio do Banco do Brasil; e ainda, a Confeitaria Castellões, famosa por suas irresistíveis empadinhas e croquetes de camarão, servidos quentes, feitos à hora.
Ainda hoje, mesmo com os rumores tétricos de que por baixo dos seus jardins, os cadáveres dos antigos negros sepultados na igreja do Rosário ainda lá estão; mesmo que já longe vão os tempos dos barões do café, a Praça Antônio Prado continua a ser um seleto e agradável local da Paulicéia, sem perder a sofisticação de outrora.
 
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Sexta-feira, 26 de Junho de 2009

O UNIVERSO FANTÁSTICO DAS NOVELAS DE DIAS GOMES

 

 

Alfredo Dias Gomes foi um dos maiores dramaturgos e novelistas do Brasil. Dono de uma obra com um contexto social de denúncia à injustiça, à corrupção e à perda dos valores, Dias Gomes soube como ninguém retratar os bastidores da política brasileira, a ditadura e a repressão do brasileiro diante das forças que se lhe impunha a sociedade e a história. Denunciava em suas obras o preconceito, a hipocrisia, o autoritarismo viciado dos donos do poder no Brasil.
Autor de telenovelas que marcaram para sempre a teledramaturgia brasileira, como “O Bem-Amado” e “Roque Santeiro”, e de personagens que se fizeram inesquecíveis no imaginário do público que os assistiu, como Odorico Paraguaçu e a viúva Porcina. É como tele-dramaturgo que será aqui analisado. As suas telenovelas que foram ao ar durante a década de 1970, constituíram o mais sincero elo da palavra e da arte calada pela censura da ditadura, e o público que ansiava pela denúncia e pela liberdade.
Da estréia sob o pseudônimo de Stela Calderón, em 1969, com “A Ponte dos Suspiros”, à última novela, “O Fim do Mundo”, em 1996, ambas na TV Globo, Dias Gomes deixou um acervo de personagens que construíram com humor e análise crítica, o perfil do brasileiro e de um Brasil corroído por tradições impostas ou cultivadas, sem perder a essência intelectual e emotiva, ou sem perder jamais a identidade de uma nação e da sua gente.

A Estréia Como Stela Calderón

Alfredo Dias Gomes nasceu em 19 de outubro de 1922, em Salvador, Bahia. Aos 12 anos de idade chegou ao Rio de Janeiro, onde passaria a maior parte da sua vida, mas sem jamais deixar a essência nordestina, que impregnaria a sua obra, tanto no teatro como na televisão. Será da Bahia que virá a imensa galeria dos personagens mais marcantes, como os habitantes das fictícias cidades de Sucupira, Bole-Bole (Saramandaia) e Asa Branca.
Militante histórico da esquerda e do Partido Comunista Brasileiro, Dias Gomes foi um dos autores mais perseguidos e dos mais censurados dentro do teatro e da televisão. Mesmo assim não se exilou, escrevendo textos corrosivos de denúncia durante todo o período da ditadura militar. Intelectual incorrigível, revelava nos textos que escrevia ser dono de um refinado humor mesclado com forte impacto dramático. Menosprezava a televisão, mas ironicamente, foi através dela que pôde traduzir tão bem a sua obra e levá-la para milhões de pessoas, adquirindo uma notoriedade e popularidade que jamais alcançaria no teatro.
Casado com a novelista Janete Clair durante 33 anos (ficaria viúvo em 1983), Dias Gomes e a mulher tornar-se-iam já em 1970, os novelistas que mudariam a linguagem da telenovela da emissora do jornalista Roberto Marinho, que seguia como linha principal os dramalhões de época sob o comando de Glória Magadan.
Dias Gomes chegaria à pequena tela no auge da repressão militar, após a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968. Sua estréia aconteceu em junho 1969, na Rede Globo, com a novela “A Ponte dos Suspiros”, inspirada no romance homônimo de Michel Zevaco. Temendo à repressão e à perseguição política, adotou neste trabalho o pseudônimo de Stela Calderón. A novela era um dramalhão que se passava em Veneza, tendo como protagonistas a famosa dupla de atores Carlos Alberto e Yoná Magalhães, na época casados na vida real. Dias Gomes escrevia sob a supervisão de Glória Magadan, quando ela foi demitida pela Globo, o autor mudou completamente a linha do texto, passando a abordar problemas políticos dentro da trama. A mudança de estilo narrativo fez a censura paulista obrigar o Canal 5 a transferir a novela para o horário das 22 horas. Nascia assim, um novo horário de telenovelas na Rede Globo, que só seria extinto em 1979.

O Realismo Urbano Chega à Televisão Brasileira

Ainda em 1969, com o fim da era Magadan, a Rede Globo renovou a linguagem das suas telenovelas, abolindo os dramalhões de época. Começou pelo horário nobre, com a novela “Véu de Noiva”, de Janete Clair. Em 1970 estendeu a linguagem do dia a dia e tramas contemporâneas brasileiras, para as novelas das 19 horas, com “Pigmalião 70”, de Vicente Sesso, e do novo horário recém-inaugurado das 22 horas, com “Verão Vermelho”, de Dias Gomes.
Verão Vermelho” foi a primeira trama da televisão a ter como cenário a cidade de Salvador. Nesta novela o autor já assinou com o nome de Dias Gomes, jamais voltando a usar pseudônimos para fugir do regime militar. Drama urbano, a novela trazia pela primeira vez à telinha, as festas típicas das ruas da Bahia, a capoeira, o candomblé e ícones populares que até então, incomodavam as conservadoras famílias católicas que ergueram os seus rosários em 1964 para receber os militares e limpar o Brasil das religiões “pagãs” e dos comunistas. A novela trazia para o elenco de estrelas globais a atriz Dina Sfat. Pela primeira um desquite fazia parte da trama dos protagonistas, Carlos (Jardel Filho) e Adriana (Dina Sfat) separavam-se, e uma nova personagem construiria o triângulo, o médico Flávio (Paulo Goulart). Jardel Filho, que fora um dos protagonistas de “A Ponte dos Suspiros”, tornar-se-ia um dos atores preferidos do autor, fazendo ao longo dos anos, várias parcerias em novelas de sucesso. “Verão Vermelho” abordava os problemas de erros médicos, o racismo e a reforma agrária. Temas ousados para a época. Durante as gravações, Dina Sfat, que vinha das telas do cinema com o sucesso de “Macunaíma”, engravidou do então marido, Paulo José, o autor teve que improvisar a primeira gravidez inesperada de uma protagonista. “Verão Vermelho” deu o tom definitivo das tramas das 22 horas, que pelo horário adiantado da sua exibição, tinham mais fôlego do que as outras novelas diante da pressão da censura e da audiência, podendo ousar mais do que as outras.
Sem qualquer intervalo, Dias Gomes estreou a sua terceira novela consecutiva, “Assim na Terra Como no Céu”, em julho de 1970. Nesta trama o autor aproveitou quase todo o elenco de “Verão Vermelho”, como Dina Sfat e Jardel Filho. Com esta novela a Globo conseguiu contratar um dos maiores galãs da época, Francisco Cuoco, que se tornaria o maior protagonista da emissora na década de 1970. Também uma jovem atriz marcaria de forma indelével a sua estréia na Globo e nas novelas, Renata Sorrah. Dias Gomes usou um truque até então inédito, matar a protagonista da novela no vigésimo capítulo. A história girava em volta de Vítor (Francisco Cuoco), padre que se apaixona pela bela e doce Nívea (Renata Sorrah), por quem deixa a batina para com ela se casar. Nívea era assassinada às vésperas do casamento. A morte da personagem repercutiu em todo o Brasil, gerando a grande pergunta estampada nas capas das revistas da época: “Quem matou Nívea”. Com a morte da protagonista, Helô (Dina Sfat) passou a ser o centro da trama e o novo amor de Vítor. Mas o público não se conformou com a morte de Nívea, que teve que voltar várias vezes em flash-back. A novela trazia fortes contestações sociais, como o voto de castidade imposto aos padres pela igreja católica, o problema com as drogas (primeira vez que o tema chegou à televisão), além do homossexualismo velado do costureiro Gugu (Ary Fontoura), temática que só voltaria a ser abordada abertamente por Bráulio Pedroso em “O Rebu” (1974). Outra personagem que fez grande sucesso foi Ricardinho (Carlos Vereza), que matava o amante da mãe. Carlos Vereza e Renata Sorrah eram casados na época, e esta novela abria as portas da televisão para o jovem e talentoso casal.
Após três novelas consecutivas, Dias Gomes teve um breve período de férias, dividindo pela primeira vez, o horário das 22 horas com Bráulio Pedroso. Voltaria em novembro de 1971, com um novo sucesso, “Bandeira 2”. Desta vez o autor trazia o mundo da contravenção e dos bicheiros cariocas. O bicheiro Tucão, uma das mais soberbas criações de Dias Gomes, encantou o Brasil e os bicheiros do Rio de Janeiro, que se sentiram honrados com o retrato pintado na telinha. “Bandeira 2” teve vários incidentes de bastidores, transformando-se em uma das mais ricas produções a ter o que contar atrás das câmeras. Começou com o protagonista, que seria Sérgio Cardoso, o ator não gostou da personagem e exigiu mudanças. Diante da recusa de Dias Gomes, Sérgio Cardoso desistiu do papel, que foi entregue a Paulo Gracindo. Já com uma idade madura, Paulo Gracindo nunca havia protagonizado uma novela, na pele do bicheiro Tucão, o ator foi elevado ao estrelato. Com “Bandeira 2” iniciava-se uma grande parceria entre Dias Gomes e Paulo Gracindo, que resultaria em personagens inesquecíveis do grande público. Marília Pêra vivia a protagonista Noeli, uma motorista de táxi, profissão até então tabu para uma mulher. A atriz sentiu a personagem preterida diante da de Tucão, por este motivo pediu para sair da trama, mas não foi atendida, permanecendo até o fim. Aqui Dias Gomes usou o texto de uma de suas peças proibidas pela censura, “A Invasão”, traduzida nas personagens dos retirantes nordestinos Severino (Sebastião Vasconcelos), Santa (Ilva Niño) e Licinha (Anecy Rocha), que sem teto para morar, invadem a garagem do prédio de Noeli. O antagonista de Tucão, o bicheiro Jovelino Sabonete (Felipe Carone), foi outra personagem de grande sucesso na novela. O sucesso e a simpatia do público por Tucão incomodaram bastante os moralista do regime militar, ao fim da novela, a censura exigiu que Dias Gomes matasse a personagem, para dar exemplo moral ao público. Assim Tucão morria no último capítulo, causando grande comoção ao público.

O Bem Amado

Alternando mais uma vez, o horário das 22 horas com Bráulio Pedroso, Dias Gomes voltaria em janeiro de 1973 com aquela que seria uma das maiores obras da televisão brasileira, “O Bem-Amado”. A novela foi a transposição de uma peça teatral de Dias Gomes, “Odorico, o Bem Amado”, que esteve sete anos proibida, só sendo liberada em 1969. Pela primeira vez o autor deixava os cenários urbanos e criava a sua mítica Sucupira, cidade fictícia do interior baiano. Foi a primeira telenovela colorida da televisão brasileira, por este motivo enfrentou grandes problemas técnicos nos ajustes das cores, sendo marcante o figurino de cores berrantes que os atores usavam.
A história do prefeito Odorico Paraguaçu, que ao ver a dificuldade que era enterrar um morto devido à falta de cemitério em sua cidade, promete a construção de um como mote principal da sua campanha eleitoral. Eleito, Odorico realiza a sua grande obra, mas não consegue inaugurá-la pela falta de um morto. Ninguém morre em Sucupira. Frustrado e sem escrúpulos, o prefeito usa de todas as artimanhas para conseguir um defunto, inclusive promove a volta de um ilustre cangaceiro e assassino da cidade, o temido capitão Zeca Diabo (Lima Duarte). Mas o velho cangaceiro de fala fina volta redimido, querendo apenas ser digno de Deus, do padrinho padre Cícero e realizar um velho sonho, ser protético. Diante do impasse, Odorico incita o capitão a matar, usando de intrigas e subterfúgios. Ironicamente Zeca Diabo volta a matar, fazendo justiça à cidade, matando o próprio Odorico. Melancolicamente o prefeito inaugura a sua própria obra, sendo enterrado no tão amaldiçoado cemitério.
Paulo Gracindo não queria, a princípio, interpretar Odorico, por temer que viver duas personagens de caráter duvidoso consecutivamente pudesse comprometer a sua imagem. O ator sugeriu trocar a sua personagem com a de Jardel Filho, que vivia o doutor Juarez, um médico problemático e alcoólico, mas Dias Gomes bateu o pé, perguntando a Paulo Gracindo se ele conhecia algum prefeito louro e de olhos azuis no sertão baiano (Jardel Filho era um ator louro e de olhos azuis). Lima Duarte vinha de um grande fracasso em sua estréia na TV Globo. A novela antecessora de “O Bem Amado”, “O Bofe”, de Bráulio Pedroso, que ele fora convidado a dirigir, fora um fiasco. Para encerrar o contrato com a Globo, ele foi convidado, desta vez como ator, para fazer uma participação especial na novela, interpretando Zeca Diabo. Toda a caracterização da personagem foi feita pelo próprio Lima Duarte, que comprou um terno velho numa tinturaria próxima da Estação Rodoviária da Luz, em São Paulo, e decidiu que a personagem tão temida e sanguinária teria uma voz fina. Zeca Diabo, que deveria aparecer apenas em alguns capítulos, tornou-se um sucesso e foi crescendo gradualmente na trama, permanecendo até o fim.
Paralelamente à trama de Odorico, outras personagens circulavam com empatia e sucesso. Entre estas personagens estava o tímido e pacato Dirceu Borboleta (Emiliano Queiroz). Fiel funcionário de Odorico, gago e introvertido, Dirceu passa a vida a servir o prefeito e a caçar borboletas. Jurou castidade, mas foi obrigado a quebrar a promessa quando Dulcinéia Cajazeira (Dorinha Duval) é engravidada por Odorico, e para salvar a honra dela e do prefeito, aproveitam-se do sonambulismo de Dirceu, e inventam que ele possuiu a jovem, fazendo-o acreditar que é o pai do filho que ela espera. No final, quando descobre a mentira, o pacato e tranqüilo Dirceu estrangula a mulher. As irmãs Cajazeiras, Dulcinéia, Dorotéia (Ida Gomes) e Judicéia (Dirce Migliaccio) constituíram outro bem sucedido e mítico núcleo de personagens da novela. Refletiam a hipocrisia da sociedade, três mulheres solteironas, representantes de uma família tradicional, apresentavam-se para a cidade como exemplos de virtude e religiosidade a serem seguidos, mas que na intimidade, viviam todas as três uma sexualidade tórrida com um único homem, o bem amado Odorico Paraguaçu.
A bela Sandra Bréa, que se apaixonaria na trama pela personagem do galã Jardel Filho, fazia a sua primeira protagonista, sendo elevada à estrela da emissora, ela vivia Telma, a problemática e revoltada filha de Odorico Paraguaçu. A atriz vivia uma das cenas mais antológicas da novela, que define bem o universo de Dias Gomes; transitando entre a geração que contestava os costumes sociais e a liberação da sexualidade feminina, Telma era um grito dentro desta luta. Uma noite ela decide tomar banho nua, sua beleza estonteante é vista pelo pai Odorico, que se constrange diante do medo de um escândalo, e por humildes pescadores da região. Zelão das Asas (Milton Gonçalves), um pescador que um dia escapou da fúria do mar e prometeu a Iemanjá que faria um par de asas e voaria da torre da igreja. O pescador foi liberado pelo vigário (Rogério Fróes), de tão absurda promessa. Quando Zelão e os pescadores vêem a beleza nua de Telma, acreditam que estão diante de uma aparição de Iemanjá. Zelão tem a certeza que a senhora dos mares veio cobrar-lhe a promessa e, ali, diante da nudez de Telma-Iemanjá, ele renova a promessa que fizera em alto mar. Este paralelo irônico entre duas personagens e dois universos, é típico de Dias Gomes. Se o banho nu de Telma representava para ela a liberdade, a conquista do direito de ser dona do seu corpo e da sua sexualidade, para Zelão representava a fé, a crença popular, o místico e as sua manifestações. Zelão lutará até o fim da novela com o padre da cidade para cumprir a promessa. Não deixa de ser uma adaptação com outra cor e conotação sublime da peça do autor, “O Pagador de Promessas”. Dias Gomes não usa o enterro antológico do prefeito Odorico Paraguaçu para encerrar a trama, mas sim o cumprimento da promessa de Zelão das Asas. Na última cena da novela, o autor utiliza, pela primeira vez em suas tramas, o realismo fantástico. Num descuido da vigilância do padre e da mulher Chiquinha do Parto (Ruth de Souza), Zelão consegue chegar ao alto da torre da igreja e, diante de todos os curiosos, atira-se no ar. Dias Gomes avisa, em uma voz gravada em “off”, que a partir dali só acredita quem tem fé. A imagem torna-se preto e branco e Zelão voa sobre Sucupira. A novela encerra-se, entrando para sempre na história da televisão brasileira.

O Grande Golpe da Censura Sobre a Obra de Dias Gomes

Mais uma pausa para um breve fôlego, e Dias Gomes voltaria com uma nova novela, “O Espigão”, de 1974. O autor voltava aos grandes centros urbanos, desta vez para debater temas ainda não explorados nas novelas, como o crescimento desordenado das metrópoles, que derrubava prédios históricos e seculares para em seu lugar erguer os arranha-céus (os chamados “espigões” do título). Mostra a frieza que agasalha o homem, cada vez mais desumano diante do progresso sem limites da cidade. Pela primeira vez a ecologia entra como tema de uma telenovela, numa época em que obras faraônicas do regime militar (Transamazônica, ponte Rio Niterói) devastam o meio ambiente em nome do progresso, ocultando o lado autoritário e assassino da ditadura. A novela inicia com uma outra cena antológica, até então jamais vista, Dora (Débora Duarte), a protagonista, tem o seu filho em um engarrafamento de trânsito dentro do túnel Rebouças, no meio da confusão ela é socorrida por Leo (Cláudio Marzo), que formariam o casal sofrido da trama. Personagens bizarros percorrem a novela, dentre eles, Baltazar (Ary Fontoura), um homem reprimido, que às escondidas, corta mechas de cabelos das mulheres, guardando-as em sua coleção. Destaques para o casal Lauro Fontana (Milton Moraes) e Cordélia (Suely Franco), que centralizam as tramas e momentos hilários de humor.
Em 1975 Dias Gomes decidiu adaptar para a televisão uma de suas peças proibidas pelo regime militar, “O Berço do Herói”, censurada em 1965. A história trazia a saga do falso santo, Roque Santeiro e a sua fogosa viúva Porcina. A novela entraria nas comemorações dos dez anos da Rede Globo. Pela primeira vez Dias Gomes iria estrear em horário nobre. Adaptando a história para a literatura de cordel, a novela trazia o mais longo título da história da teledramaturgia brasileira: “A Saga de Roque Santeiro e a Incrível História da Viúva que Foi Sem Nunca Ter Sido”. Para protagonistas foram escolhidos Francisco Cuoco (Roque), Lima Duarte (Sinhozinho Malta) e Betty Faria (Porcina). Amplamente anunciada como a próxima trama do horário nobre, que entraria substituindo “Escalada”, a novela já tinha 10 capítulos editados e 30 gravados, quando foi proibida pela censura militar. Numa última esperança de liberar a trama, chegou a ser anunciada pela emissora uma mudança de horário, assim a novela “Gabriela”, grande sucesso da época, que ia ao ar às 22 horas, e já a entrar na sua fase final, passaria para o horário nobre e “Roque Santeiro” estrearia às 22 horas. Mas a censura voltou atrás na liberação e proibiu de vez a novela de ir ao ar, alegando que ela era ofensiva à moral e aos bons costumes, ofendendo à igreja e aos princípios católicos. Diante da catástrofe, Janete Clair criou personagens para 90% do elenco da novela censurada, aproveitando-o na mítica “Pecado Capital”. “Roque Santeiro” ficaria dez anos na gaveta até que uma nova versão, em 1985, fosse ao ar.

O Realismo Fantástico Chega à Telenovela

Depois da proibição de “Roque Santeiro”, Dias Gomes faria um intervalo considerado longo demais para a época, em que o autor emendava uma novela na outra. O longo período de ausência encerrar-se-ia em 1976, com “Saramandaia”, trazendo de volta um Dias Gomes ousado, que mudaria novamente a linguagem da telenovela, inaugurando de vez o realismo fantástico, que faria escola, e influenciaria na década seguinte, outros autores, como Agnaldo Silva.
A história da pacata cidade do interior da Bahia, Bole-Bole, e dos seus estranhos moradores chegou a ser comparada ao livro de Gabriel Garcia Márquez, “Cem Anos de Solidão”, mas Dias Gomes alegou que se inspirara no universo da literatura de cordel, e não gostava do termo “realismo fantástico”. Personagens estranhos e fascinantes atraíam o público, que além do vôo de Zelão das Asas em “O Bem Amado”, não tinha visto nada igual na televisão brasileira.
Na novela, Bole-Bole estava dividida entre os conservadores, que queriam manter o nome histórico da cidade, originário de uma aventura local de dom Pedro I; e os modernistas, que queriam mudar o nome da cidade para Saramandaia. Este nome fora revelado em sonho ao protagonista João Gibão (Juca de Oliveira), um homem inteligente, mas estranho em sua conduta. João Gibão trazia uma corcunda tapada por um gibão, daí a origem da alcunha. Na verdade João não era corcunda, o que ele escondia debaixo do gibão era um par de asas, que todos os dias era aparado pela mãe.
Diante de tão grande segredo, João foge à sedução e ao amor da bela Marcina (Sonia Braga), que literalmente arde de paixão, quando ela está excitada, a temperatura do corpo eleva-se de tal forma que incendeia os lençóis e queima todos que a tocam.
Para complicar a situação, o filho de Lua Viana (Antonio Fagundes em sua estréia na Globo), prefeito da cidade e irmão de João Gibão, e da bela Zélia (Yoná Magalhães), herda a anomalia do tio. A criança nasce com asas, mas morre logo a seguir, causando escândalo e espanto na cidade.
Entre as personagens esdrúxulas está o coronel Zico Rosado (Castro Gonzaga), homem conservador e cruel, que expele formigas pelo nariz. No final da novela ele morre soterrado na sua casa, que desaba após ter os alicerces corroídos e transformado em um grande ninho de bilhões de formigas.
Destaque para as cenas antológicas entre Risoleta (Dina Sfat) e o professor Aristóbulo (Ary Fontoura), homem estranho que não consegue dormir há décadas, perambulando à noite pela cidade, onde tem encontros com dom Pedro I e Tiradentes. Risoleta é fascinada pela fama do professor virar lobisomem, no fim da novela ela o seduz e consegue que se transforme em lobisomem na sua frente. É a primeira vez que a figura do lobisomem é explorada em uma novela. A temática voltaria em 1986, com “Roque Santeiro”.
Há ainda Cazuza (Rafael de Carvalho), pai de Marcina e marido de Maria Aparadeira (Eloísa Mafalda), que morre e ressuscita no início da novela, mas que todas às vezes que perde a calma, ameaça soltar o coração pela boca.
Uma das cenas mais antológicas da novela foi a da morte de dona Redonda (Wilza Carla), que de tanto comer explode em praça pública, tendo partes do corpo lançada em toda a cidade. No local da explosão foi formada uma grande cratera, onde surge uma flor gigante, que exala um cheiro terrível sobre a cidade.
O fim antológico da novela mostra um perseguido e injustiçado João Gibão, que para escapar de ser morto, já com as asas crescidas, voa rumo ao infinito. A última cena traz o vôo de João ao som da música “Pavão Mysteriozo”, de Ednardo, tema de abertura da novela , que se tornara um grande sucesso radiofônico da época.

O Fim do Horário das 22 Horas

Após o sucesso estrondoso de “Saramandaia”, Dias Gomes declara-se saturado das novelas. Diz querer escrever seriados e obras com menos capítulos. A Globo decide acabar com o horário de novelas das 22 horas, criando seriados nacionais para substitui-las. Como transição, apresenta “Sinal de Alerta”, de Dias Gomes, a última novela do horário, estreada em 1978. Naquele ano já a abertura política começava a ser desenhada e o AI-5 seria extinto, passando a não mais existir a partir do primeiro dia de 1979. A novela discutia amplamente a poluição das fábricas e a deterioração do meio ambiente. Trazia como protagonistas o empresário Tião Borges (Paulo Gracindo), dono da fábrica responsável pela poluição de um bairro; sua noiva, que poderia ser a sua filha, a bela e virginal Sulamita (Vera Fischer): a ex-mulher Talita (Yoná Magalhães) e o aventureiro e bom caráter Rudi (Jardel Filho). A novela não obteve uma boa audiência e foi a criação mais fraca de Dias Gomes na sua produtiva década de 1970. Nos últimos 30 capítulos, o autor teve a ajuda de Walter George Durst para escrever a novela. No meio da trama Vera Fischer engravidou, e como a sua personagem era uma virgem, filha de um rígido pastor evangélico, o autor teve que improvisar um estupro para a personagem, para que não fugisse do perfil psicológico quando a gravidez da atriz começasse a aparecer.
Com a inauguração dos seriados em 1979, Dias Gomes seria ao lado de Gianfrancesco Guarnieri e Walter George Durst, o criador e roteirista do seriado “Carga Pesada”, protagonizado por Antonio Fagundes e Stênio Garcia, acumulando a função da supervisão de texto.
Em 1980 deixa “Carga Pesada” e transforma “O Bem Amado” em seriado semanal. Para isto ressuscita Odorico Paraguaçu, morto no último capítulo da novela, em 1973, alegando que ele tivera uma catalepsia. Nesta nova fase de “O Bem Amado”, com o passar do tempo o prefeito Odorico torna-se uma sátira ao então governador de São Paulo, Paulo Maluf. O A seriado seria um grande sucesso e ficaria no ar até 1984.

Roque Santeiro

Em 1985 a ditadura militar tornou-se uma página virada da história brasileira. “Roque Santeiro”, censurada dez anos antes, pôde finalmente ir ao ar. À exceção de Lima Duarte e Luiz Armando Queiroz, que assumiram os mesmos personagens da versão de 1975, a novela veio à tona com um elenco totalmente renovado, tendo como protagonistas Regina Duarte (Viúva Porcina) e José Wilker (Roque). Agnaldo Silva pegou os 50 capítulos escritos por Dias Gomes e ampliou-os para o dobro. Sob a supervisão do autor, ele transformou a novela em um grande sucesso.
Roque Santeiro” era uma crítica contumaz às cidades que viviam do comércio da religiosidade e da fé das pessoas. Asa Branca, cidade do interior da Bahia, tinha sofrido um ataque de Navalhada (Oswaldo Loureiro), para não pilhar a cidade e matar grande parte dos seus habitantes, o bandido exigiu uma grande quantia à população. O dinheiro foi entregue ao corajoso Roque, que serviria de negociador com Navalhada. Mas Roque teria sido morto, tornando-se um mártir. Mais tarde, tornar-se-ia milagreiro. Asa Branca cresce em torno do mito de Roque, que é tido como santo. Recebe romeiros de todos os cantos. Neste período, Porcina, amante do poderoso Sinhozinho Malta, chega a Asa Branca e para camuflar o caso entre os dois, é apresentada como a viúva de Roque, sem nunca ter sido. O tempo passa e um dia um homem misterioso volta à cidade. É Roque, que nunca fora mártir, e sim um vigarista que fugira com o dinheiro que deveria ter sido entregue a Navalhada. Rico e arrependido, Roque volta para rever a família e redimir-se diante da cidade. Na volta encontra-se com o mito, com o santo e mártir que se tornara, com uma vida que se lhe fora criada, inventando-lhe até mesmo uma viúva. Reconhecido pelos poderosos de Asa Branca, Roque é impedido de revelar a verdade, pois a revelação destruiria a cidade que vivia da mentira e dos falsos milagres de um santo vigarista.
Dias Gomes tem aqui um dos enredos mais fascinantes da sua teledramaturgia. Com o passar dos capítulos, o autor acusou Agnaldo Silva de dar às personagens um certo tom brega. Para finalizar a trama, tomou para si os últimos capítulos, afastando de vez Agnaldo Silva. Dos 209 capítulos da novela, Agnaldo Silva escreveu 111 deles. Pela primeira vez, o autor poderia debater temas polêmicos como a reforma agrária, os falsos milagres e a comercialização da fé, sem uma censura prévia a tentar calá-lo. O resultado foi uma das novelas mais bem sucedida da história da televisão brasileira.

Do Mito de Édipo ao Apocalipse do Mundo

Em 1987, Dias Gomes escreveu “Expresso Brasil”, uma mini novela com 40 capítulos, que tinha a duração de 5 minutos cada, indo ao ar de segunda a sábado, entre o Jornal Nacional e a novela do horário nobre. Na verdade a novela era uma ode ao universo das grandes personagens da televisão. Desfilavam dentro de uma locomotiva todos as grandes personagens do autor, além de algumas personagens de outros autores. “Expresso Brasil” era uma singela homenagem às personagens das telenovelas brasileiras. Dentro da locomotiva pudemos rever Tucão, Sinhozinho Malta e Odorico Paraguaçu, entre tantos.
Em 1987 Dias Gomes, em parceria com Marcílio Moraes, decidiu levar para a telenovela o mito grego de Édipo, adaptando para o Brasil do século XX a peça “Édipo Rei”, de Sófocles. A novela sofreu com a censura, que não queria aprovar a sinopse, considerando o tema impróprio para o horário das 21 horas. Após longas negociações com a Globo, a novela foi ao ar.
Mandala” foi dividida em duas fases. A primeira trazia um Dias Gomes na sua essência e verve política, pela finalmente falando abertamente sobre os tristes anos da ditadura política. Nesta fase era contada a história da jovem Jocasta (Giulia Gam) e de Laio (Taumaturgo Ferreira), unidos pelo amor e separados pela maldição de que o filho do casal mataria o pai e casar-se-ia com a mãe. A primeira fase da novela foi um sucesso, marcada pelo forte conteúdo político. Na segunda fase da novela Jocasta (Vera Fischer), apaixonar-se-ia sem saber, pelo filho Édipo (Felipe Camargo), levado dos seus braços quando nascera. A novela sofreu pressão do público e da censura, que não queriam assistir ao beijo de mãe e filho. Diante de tantos obstáculos, Dias Gomes decepcionou-se com a trama, deixando-a no capítulo 35, que seria escrita por Marcílio Moraes e Lauro César Muniz. A novela chegou ao fim sem brilho e sem o carisma habitual de Dias Gomes.
Em 1988 Dias Gomes adaptou a sua famosa peça “O Pagador de Promessas”, para uma mini série, protagonizada por José Mayer. A fraca e contida interpretação do ator, e um texto com um discurso por demais dogmático, tiraram a essência dramática e beleza contestatória da peça. A mesma peça já tinha sido adaptada para o cinema, em um filme de Anselmo Duarte, de 1962, que contara com a extraordinária interpretação de Leonardo Villar, ganhando a Palma de Ouro em Cannes, naquele ano.
Em 1990 a TV Manchete alcançou um grande sucesso com a novela “Pantanal”, que começava pouco antes de terminar o capítulo da novela global “Rainha da Sucata”, roubando a tradicional audiência da emissora. Para fazer frente a este sucesso, Dias Gomes foi chamado para escrever uma trama que entraria em horário inédito, após o término da novela do horário nobre. Surgiu “Araponga”, escrita em parceria com Lauro César Muniz e Ferreira Gullar. A história de Araponga, codinome da personagem de Tarcísio Meira, um ex-agente informante da ditadura militar, apesar de ser contada de forma cômica, sucumbiu diante do sucesso de “Pantanal”, e praticamente passou despercebida.
A falta de carisma de “Araponga” deixaria Dias Gomes longe das novelas até 1995, quando pela primeira vez, trabalharia no horário das dezoito horas, trazendo de volta um grande sucesso da teledramaturgia brasileira, “Irmãos Coragem”, da sua falecida mulher Janete Clair. Inadequada para o horário, escrita a obedecer uma estruturação psicológica moldada sobre os esboços de Janete Clair, a novela perdeu o seu impacto dramático e carisma emotivo, faltando, principalmente, a espontaneidade intuitiva genial da autora.
A última novela escrita por Dias Gomes foi “O Fim do Mundo”, de 1996, que teve apenas 35 capítulos. A novela foi criada para ser uma mini série, mas entrou no horário nobre devido aos atrasos na produção da novela “O Rei do Gado”, de Benedito Ruy Barbosa. Trazia a divertida história de uma cidade do interior, que acreditou na promessa do vidente Joãozinho de Dagmar (Paulo Betti), que anunciava dia e hora para o fim do mundo. Acreditando na promessa do Apocalipse, todos passam a fazer o que bem entendem, sem a preocupação com as aparências e o futuro. Uma corrosiva crítica à sociedade, que diante da iminência de um fim, mergulha na sua hipocrisia de forma libertina e sem limites, sem pensar na redenção dos atos. Com “O Fim do Mundo”, Dias Gomes despedia-se das novelas sem o brilho de “O Bem Amado” e “Roque Santeiro”, mas senhor absoluto do seu universo de denúncia social.
Se na última década de vida, as telenovelas traziam uma certa saturação e decepção do autor, as mini séries que escreveu foram de uma qualidade excepcional, originando clássicos como “As Noivas de Copacabana” (1992), “Decadência” (1995) e “Dona Flor e Seus Dois Maridos” (1998). Dias Gomes morreu em São Paulo, num acidente de automóvel, acontecido em 18 de maio de 1999. Tinha 76 anos. Era na época, um imortal da Academia Brasileira de Letras. A sua morte deixou uma grande lacuna no teatro e na teledramaturgia do país. Suas personagens tornaram-se eternas e únicas. Quem não se lembra da eterna viúva Porcina? Quem que não se maravilhou com o universo único de Dias Gomes? O Brasil agradece o retrato criado pelas teclas deste grande baiano.

OBRAS

Peças de Teatro:

1937 – A Comédia dos Moralistas
1942 – Pé de Cabra
1942 – João Cambão
1943 – Amanhã Será Outro Dia
1943 – Doutor Ninguém
1943 – Zeca Diabo
1943 – Toque de Recolher
1944 – Dr. Ninguém
1949 – A Dança das Horas
1949 – É Amanhã
1954 – Os Cinco Fugitivos do Juízo Final
1960 – O Pagador de Promessas
1962 – A Invasão
1962 – A Revolução dos Beatos
1965 – O Berço do Herói
1966 – O Santo Inquérito
1968 – Dr. Getúlio, Sua Vida e Sua Obra
1969 – Odorico, o Bem Amado
1969 – Vamos Soltar Demônios
1979 – O Rei de Ramos
1979 – O Túnel
1979 – As Primícias
1980 – Campeões do Mundo
1983 – Vargas
1984 – Amor em Campo Minado
1989 – Meu Reino por um Cavalo

Novelas:

1969 – A Ponte dos Suspiros – TV Globo
1970 – Verão Vermelho – TV Globo
1970/1971 – Assim na Terra Como no Céu – TV Globo
1971/1972 – Bandeira 2 – TV Globo
1973 – O Bem Amado – TV Globo
1974 – O Espigão – TV Globo
1975 – A Saga de Roque Santeiro e a Incrível História da Viúva que Foi Sem Nunca Ter Sido (1ª versão censurada de Roque Santeiro) – TV Globo
1976 – Saramandaia – TV Globo
1978/1979 – Sinal de Alerta – TV Globo
1985/1986 – Roque Santeiro (co-autoria com Agnaldo Silva) – TV Globo
1987/1988 – Mandala (até o capítulo 35) – TV Globo
1990 – Araponga – TV Globo
1995 – Irmãos Coragem (supervisão de texto) – TV Globo
1996 – O Fim do Mundo – TV Globo

Casos Especiais:

1971 – O Crime do Silêncio – TV Globo
1971 - A Pérola – TV Globo
1974 – Gino – TV Globo
1988 – Boi Santo – TV Globo

Mini-Séries:

1987 – Expresso Brasil – TV Globo
1988 – O Pagador de Promessas – TV Globo
1992 – As Noivas de Copacabana – TV Globo
1995 – Decadência – TV Globo
1998 – Dona Flor e Seus Dois Maridos – TV Globo

Seriados:

1979 – Carga Pesada (supervisão de texto) – TV Globo
1980-1984 – O Bem Amado – TV Globo
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Quinta-feira, 25 de Junho de 2009

LENDAS INDÍGENAS 2

 

 

A necessidade do homem em explicar os mistérios da vida e da natureza que o cerca, gera, através dos séculos, as mais belas lendas. Quanto mais rica a cultura de um povo, maior o número de lendas inspiradoras que justificam os seus costumes e tradições milenares.
O folclore dos índios brasileiros perdeu, com a civilização cristã impostas a eles, muitos dos seus rituais e muitas das suas crenças, as suas lendas estão cada vez mais difundidas e mescladas com as lendas catequizadoras trazidas pelos homens brancos.
Aqui mais três lendas indígenas, duas delas (“Como Nasceram as Estrelas” e “A Criação do Homem”) vindas das terras do Mato Grosso, e uma terceira originada das tribos da região do mítico rio Amazonas (“A Vitória Régia”).
Como Nasceram as Estrelas é uma lenda extraída da tribo de índios do Mato Grosso conhecidos como Bororos. Forma poética e simples que a tribo encontrou para descrever o surgimento das estrelas no céu, tidas como vigilantes da dor e símbolos do castigo perene às crianças que desobedecem aos pais.
A Vitória Régia traz a lenda de uma das plantas mais exóticas do mundo. De uma beleza rara, esta planta tem as raízes submersas no rio, e quando adulta, surge no seu centro uma das mais belas flores da natureza. Nativa da região do Amazonas, a vitória-régia desperta com a sua beleza ímpar, o mais curioso dos homens. Tão singular planta, assim como as flores da mitologia grega, nasceu, como conta a lenda, da transformação de uma bela mulher, da metamorfose dos seus sonhos, que se deslumbram em cores e fantasias.
A Criação do Homem está ligada com o mito do herói Maivotsinim, figura criadora aclamada por várias tribos do Alto Xingu. Se na lenda dos índios Carajás, habitantes do norte de Goiás e do Tocantins, o índio já surge criado, habitando a escuridão do ventre da terra, de onde emerge e através da figura do urubu-rei vê a criação do mundo, aqui o mundo está criado, mas faltam os homens. Só Maivotsinim existe, e cabe a ele criar a humanidade. Esculpido numa madeira chamada cuarupe, o homem surge no seu esplendor, aos raios do sol. A lenda deu origem ao ritual do Alto Xingu, o Cuarupe, praticado até os dias de hoje.

Como Nasceram as Estrelas

A vida na tribo dos índios Bororo seguia os passos e os ensinamentos dos seus antepassados. No céu da aldeia a noite era escura, iluminada apenas pela imensa lua, que crescia ou diminuía de tamanho, conforme o ciclo dos dias. Quando a lua se escondia, um terrível breu fazia-se sobre as malocas.
Durante o dia os homens bororos iam caçar, enquanto que as mulheres cultivavam e coziam o milho e as crianças brincavam. Num dia normal na tribo, em que os homens embrenharam-se na mata para cassar, as mulheres foram colher o milho para preparar o alimento d e todos. Quando chegaram na roça de milho, com tristeza encontraram pouquíssimas espigas. Não percebiam o que tinha acontecido. Colheram desoladas, umas míseras espigas.
Horas antes das mulheres chegarem à roça de milho, as crianças, fugidas das mães, tinham colhido as espigas. Vestidas da malícia infantil de quem cometia uma desobediência, ali mesmo, na roça, elas socaram o milho, levando os grãos para a aldeia. Na maloca encontraram a mulher mais velha da tribo. Um dos meninos pediu à velha índia que preparasse um bolo para ele e para os amigos. A boa mulher, sem saber que as crianças colheram o milho sem a ordem das mães, com muito sacrifício fez o bolo que eles pediram. Já sem forças pela idade, a velhinha sentiu-se deveras cansada depois de todo o trabalho que tivera para fazer o bolo, retirando-se para a oca, repousando o corpo cansado sobre uma rede.
Os meninos deliciaram-se com o bolo. De repente o papagaio da aldeia, que tudo vira, ameaçou contar a verdade para as mães dos meninos, quando elas retornassem. Maldosamente os curumins cortaram a língua do papagaio, para que silenciasse o que eles fizeram.
Os pequenos bororos sentiam-se refestelados depois de comerem tanto bolo de milho. Mas ainda não estavam satisfeitos em desafiar o mundo. Olharam para as nuvens e a imensidão do céu, decidindo que para lá iriam subir. Embrenharam-se na mata e capturaram um beija-flor. Amarraram no bico da pequena ave a ponta de um cipó, ordenando-lhe que voasse para o mais alto infinito, e lá no céu, prendesse a ponta do cipó. O pequeno pássaro obedeceu às crianças, voando cada vez mais alto. Enquanto o beija-flor rumava para o céu, os pequenos bororos emendaram várias cordas ao cipó, agarrando-se a elas. Assim, levados pelo beija-flor, foram subindo, subindo... até o infinito do céu.
Quando as mulheres voltaram da roça, trazendo os grãos de milho que socaram das poucas espigas que encontraram, estranharam o silêncio dos filhos. Perguntaram por eles à velhinha, mas não tiveram resposta, posto que a pobre mulher dormia pesado de tão cansada que estava. Perguntaram ao papagaio guardião da aldeia, mas com a língua cortada, a pobre ave silenciou o que vira.
Desesperadas, as mulheres puseram-se à caça dos filhos. Foram encontrar no meio da mata, um cipó suspenso na direção do céu. Não se lhe via a ponta. Concluíram que as crianças subiram para o céu. Aos prantos, começaram a gritar para que as crianças voltassem. Lá do alto, mesmo a ver o choro das mães, os meninos bororos decidiram não voltar, seguindo sempre o beija-flor, que se distanciava da terra cada vez mais. Partiram rindo-se do choro das mães.
Já no alto do céu, quando tentaram voltar, os meninos não conseguiram, foram castigados pela desobediência e pela ingratidão às mães, condenados a viver lá em cima, e todas as noites, a olhar para a terra, para ver se suas mães ainda deles se lembravam e continuavam a prantear por eles. Para ver as mães, os olhos dos desobedientes meninos bororos transformaram-se em estrelas, iluminando todas as noites do mundo, mesmo quando a lua retirava-se do céu.

A Vitória Régia

O rio Amazonas abrigava às suas margens várias tribos de índios. Das águas do grande rio uma das tribos tirava o peixe para o seu sustento. Vários igarapés delimitavam as ilhas que se formavam ao redor do rio, e neles as moças da aldeia cantavam as mais belas canções, e sonhavam os mais belos sonhos. Dentre os sonhos das cunhãs, o de tocar a lua e as estrelas era o mais persistente.
Na aldeia as mães contavam para as filhas que quem tocasse a lua ou uma estrela, teria o brilho delas sobre o corpo, transformando-se em uma. Assim as jovens cunhãs sonhavam em tocar a lua. Suspiravam quando ela mostrava-se majestosa no céu, em sua fase plena.
De todas as cunhãs, Neca-Neca era a mais bela, a mais sensível e a mais sonhadora. Seus longos cabelos negros exalavam um perfume doce e embriagante. Os homens da aldeia sonhavam em conquistar o seu coração. Mas Neca-Neca só pensava em alcançar a lua e tocá-la, aprisioná-la entre os dedos e embriagar-se na sua luz redentora. A jovem índia sonhava em ser uma estrela, e poder iluminar todos os mistérios do mundo, tendo a lua como amiga.
Várias foram as tentativas de Neca-Neca de tocar a lua. Subiu na mais alta árvore da selva, mas a lua continuava distante. Ao lado de outras amigas, caminhou na direção do mais alto dos morros. Exausta, chegou ao topo da montanha e viu a lua ainda mais distante. Desolada, voltou para a aldeia acometida da mais profunda tristeza. Deitou-se na rede e embalou a amargura de não poder tocar a lua. Um dia ainda seria uma estrela, ou mesmo a própria lua. Adormeceu triste, mas sem deixar de perseguir o seu sonho pertinente.
Numa noite de lua cheia, Neca-Neca pôs-se às margens do grande Amazonas. Ao mirar as águas misteriosas do rio, viu que lá estava a lua, silenciosa, imóvel. A cunhã sorriu vitoriosa. O seu sonho estava próximo. Perseguira a lua nos lugares mais altos da mata, agora ela estava ali, mansa e à mão, a banhar-se nas águas do grande rio, pronta para satisfazer-lhe o sonho. Neca-Neca finalmente tocaria a lua. Sem pensar duas vezes, atirou-se às águas em busca da lua. Quanto mais tentava tocar o astro prateado, mais se afundava e encontrava apenas a escuridão do mundo. Mergulhada no seu sonho, Neca-Neca foi tragada pelo rio Amazonas.
Do alto do céu, a lua assistiu ao embuste que embriagara o sonho da jovem índia. Apiedada da tragédia de Neca-Neca, a lua prateada transformou-a em uma flor. Mas não em uma flor comum, e sim na maior e mais bela de todos as flores do mundo, a vitória-régia.
No meio do rio Amazona, Neca-Neca, transformada na vitória-régia, exala o mais delicado de todos os perfumes, inebriando os homens e os animais que assistem às suas pétalas estiradas à flor da água, pronta para receber os raios da lua. Nas noites de lua cheia, as cunhãs aparecem no meio da flor, dando-lhe um brilho eterno. Nessas noites, o brilho da lua forma um véu prateado a cobrir todas as flores do lago, que são mulheres transformadas em estrelas das águas, sob o feitiço e a piedade da lua, iluminando as noites tropicais.

A Criação do Homem

Maivotsinim corria livre pela mata. Caçava para comer, nadava, dormia, sonhava... Percorria todas as terras do Alto Xingu. Tinha a floresta e os animais como amigos e companheiros. Mas Maivotsinim começou a entristecer, a sentir-se solitário no mundo. Assim como todos os animais tinham uma companheira, também ele sonhava com o dia em que teria a sua.
Um dia Maivotsinim conversou com a onça, contando-lhe a amargura de estar só. A onça ouviu-lhe o lamento, prometendo-lhe contar o segredo de como poderia ter muitas mulheres. A grande onça soprou nos ouvidos do herói o segredo da criação dos homens.
Feliz com a revelação, Maivotsinim pôs em prática o que lhe dissera a onça. Foi até a mata, cortou umas tantas toras do pau vermelho de caniná. Socou os paus no pilão, passando-lhes pimenta, a seguir, quando anoiteceu, ergueu uma fogueira ao redor deles. Nada aconteceu, e ele chorou muito ao não ver o resultado da sua obra.
Mas Maivotsinim não desistiu. Talvez tivesse errado na madeira. Embrenhou-se novamente na mata, cortando toras de uma madeira que se chamava cuarupe. Mais uma vez socou as toras no pilão, passando-lhe pimenta e fincando-as no meio da aldeia. Tão logo anoiteceu, acendeu uma fogueira ao pé de cada tora. Mas a madeira não se transformou em gente. Maivotsinim mais uma vez chorou. Tamanho foi o seu pranto, que adormeceu profundamente.
No meio da aldeia, as toras do cuarupe continuavam fincadas no chão. Quando o sol despontou os primeiros raios, atingindo cada tronco de árvore fincado por Maivotsinim, estes se transformaram, um a um, em gente. Á luz do sol, os índios despertaram e viveram, pulsando-lhes para sempre o milagre da vida.
Tão belos eram os índios, que os peixes saíram das águas para reverenciá-los. Os animais da mata fizeram o mesmo. Maivotsinim viu com alegria o nascimento dos índios. Assistiu à luta dos peixes e das onças a homenagear a sua criação, a qual chamou de huca-hucá.
Ainda hoje, no Alto do Xingu, as tribos celebram o cuarupe (a madeira que deu vida aos homens), lutando a huca-hucá, reverenciando a obra de Maivotsinim e a criação do homem.

Ilustrações: José Lanzellotti
Adaptação livre de Jeocaz Lee-Meddi para textos de Brasil, Histórias, Costumes e Lendas

 
publicado por virtualia às 16:25
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Quarta-feira, 24 de Junho de 2009

O DIA EM QUE SÃO PAULO PAROU

 

 

A cidade de São Paulo é um dos maiores centros urbanos do mundo. Maior cidade brasileira, responsável por 12,26% do PIB do país, abrigando 63% de todas as multinacionais estabelecidas no Brasil. Por todas estas razões e tantas outras, São Paulo recebeu no século passado, o estigma de que não pára, dando veracidade à célebre frase: “São Paulo não pode parar”.
Parar uma cidade como São Paulo parecia impossível sob todos os aspectos, tanto econômicos, quantos sociais, certeza traduzida pela dinâmica que conduz a cidade e os seus habitantes. Mas um país de contrastes como o Brasil, a ilicitude marginal gerada por uma justiça lenta e capenga, pelas diferenças sociais e pela certeza da impunidade, muitas vezes assume aspectos de um poder paralelo, desafiando as instituições públicas e as suas leis.
Numa sociedade formada por um governo pouco comprometido com os seus cidadãos e com a sua evolução educacional e a sua saúde física, ciclicamente marginais assumem-se como falsos justiceiros sociais, delegando para si poderes que se elevam aos da própria justiça. De Lampião, feroz assassino e bandoleiro nascido sob o sol da caatinga, ao Primeiro Comando da Capital (PCC), organização criminosa liderada das prisões de segurança máxima; o Brasil sofre com este poder paralelo que se estabelece à face da justiça, tendo como resultado a violência e o sangue derramado de inocentes. Foi justamente uma série de atos de violência provocados pelo poder paralelo do PCC para medir forças com a polícia do Estado, que levou ao colapso a capital paulistana. Contrariando a todas as previsões ou estatísticas, São Paulo, o coração financeiro do Brasil, literalmente parou no dia 15 de maio de 2006.

Breves Exemplos do Poder Paralelo no Brasil

A democracia de uma nação é garantida pela liberdade que o seu cidadão tem em poder exercer a sua cidadania, quer sob os aspectos do cumprimento dos direitos que ele tem, como do cumprimento dos seus deveres para com a sociedade. Mas os princípios éticos que constroem os elos morais de uma sociedade mostram uma ínfima diferença entre os direitos e os deveres de um cidadão, tão estreitos são eles, que ao se confundirem, esvaem-se literalmente, dando passagem para o chamado “poder paralelo”, totalmente desprovido de senso moral, mas travestido de uma linguagem popular que o confunde com a “justiça pelas mãos”, já que a justiça do Estado não satisfaz a sociedade.
O poder paralelo pode emanar de qualquer parte da sociedade, quer por organizações de criminosos e contraventores, como pela própria polícia criada para a defesa da sociedade, ou mesmo pelo Estado.
Em quase 190 anos da sua existência como nação, o Brasil exerceu poucas vezes a tão sonhada liberdade democrática. Desde a sua independência, em 1822, que se desenhou um estado pouco voltado para a democracia. Dom Pedro I, foi primeiro a dissolver a constituição e exercer o seu poder autoritário e absolutista. A República foi formada por um golpe contra a Monarquia e por muito tempo, sustentando-se com os contra-golpes, gerando os males da nação, como a República do Coronelismo (1889-1930), ou das oligarquias rurais; a ditadura do Estado Novo (oficialmente iniciada em 1937, mas nascida com a ascensão de Getúlio Vargas, em 1930); e a ditadura militar (1964-1985).
O Estado autoritário, por se manter aquém dos princípios democráticos e construído ilegitimamente, mas legitimado pela repressão e pela força bruta, gera um estado paralelo a ele mesmo. Nas duas fases de ditadura vividas pelo Brasil no século XX, este poder paralelo do Estado foi vergonhosamente exercido na forma de tortura e de assassínio clandestino dos opositores ao regime.
Se o próprio Estado, movido pelo autoritarismo, cria o seu poder paralelo, a sociedade reage, sentindo-se no direito de ela também fazer o mesmo. Foi assim com o cangaço, surgido durante a ditadura do Estado Novo, em que matadores profissionais (os jagunços), sustentados pelas oligarquias que se rivalizavam, ladrões e assassinos em nome da honra, uniram-se em bandos, saqueando e trazendo o terror para as cidades nordestinas. Protegidos pelos interesses dos coronéis, esses bandos de criminosos criaram verdadeiros mitos como o de Lampião, e quando o mito incomodou a própria oligarquia que dele se beneficiava, tornou-se necessário que o Estado demonstrasse ser mais forte, eliminando o bando. Assim aconteceu com Lampião e o seu bando, sendo morto pela polícia em 1938, tendo as cabeças cortadas e expostas em praça pública para que se evidenciasse o poder do Estado contra o poder paralelo.
Numa guerra ideológica, os princípios éticos, morais e de justiça, muitas vezes confundem-se tanto da parte dos opressores, como da parte dos oprimidos. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), foi o partido que mais fez parte da história do Brasil no século XX, apesar de ter permanecido grande parte da sua existência na clandestinidade. Erigido sob a direção da extinta União Soviética, os seus militantes tomavam-se por revolucionários, tendo estatuto próprio, que além das ordens vindas de Moscou, não aceitavam o poder emanado do Brasil. Dentro do PCB vários “tribunais revolucionários” foram formados, algumas vezes condenando pessoas à morte. Foi o caso do “tribunal revolucionário” de 1936, realizado logo após o fracasso da Intentona Comunista de 1935, que condenou à morte Elvira Cupelo Coloni, militante conhecida como Elza Fernandes. Elza era namorada de Miranda, um dos membros do Comitê Central do PCB. Com a prisão de Miranda, Elza foi condenada a morte por seus companheiros, que entenderam que ela representava perigo para eles. Foi executada a machadadas. Outro tribunal famoso da esquerda foi o que decretou a morte do capitão estadunidense Charles Rodney Chandler, executado pelo grupo de Carlos Marighela (futura Aliança Libertadora Nacional – ALN) e pelo grupo de Onofre Pinto (futura Vanguarda Popular Revolucionária – VPR), em 1968. Bolsista no Brasil, o capitão Chandler foi condenado pela esquerda por suspeita de colaborar com os militares.
Dentro da polícia, de tempos em tempos surgem grupos de extermínios, conhecidos como “esquadrões da morte”. Geralmente apresentam-se como justiceiros e exterminadores de bandidos, o que lhes confere forte respaldo popular. Na maioria das vezes são grupos liderados por policiais corruptos, que usam de um poder paralelo para eliminar possíveis delatores e silenciar testemunhas. Os esquadrões da morte fazem parte do imaginário popular há várias décadas, tendo visibilidade maior ou menor em determinadas épocas.
As favelas e as periferias das grandes cidades brasileiras, principalmente as de São Paulo e do Rio de Janeiro, foram durante décadas esquecidas pelo Estado e legadas à miséria e ao ostracismo sócio-cultural. Esquecidas pelo poder público, as favelas foram tomadas pela marginalidade, pelo tráfico e pelo consumo de drogas. Tidas como terra de ninguém, muitas dessas favelas vivem sob a opressão e sob o poder de traficantes, que estabelecem as próprias regras e “leis” dentro dessas comunidades. Movidos pelo tráfego de drogas e por leis próprias, os marginais mais perigosos do Brasil criaram dentro das prisões ou fora delas, poderosas organizações criminosas, formando verdadeiras irmandades, como o Comando Vermelho no Rio de Janeiro e o PCC em São Paulo. Também estas organizações têm o seu próprio tribunal, definindo como deve viver ou morrer não só os seus membros, como também os integrantes da sociedade. Em 2002 o Comando Vermelho, liderado na época por Elias Maluco, condenou à morte o jornalista da Rede Globo, Tim Lopes, executando-o de forma cruel, enterrando-o em uma vala cheia de corpos também por ele sentenciados.

O Primeiro Comando da Capital

De todas as rebeliões e atrocidades cometidas pelo poder paralelo estabelecido por marginais no Brasil, o que mais causou constrangimento ao poder público e ao Estado, foi sem dúvida o que atingiu o Brasil em maio de 2006, que culminou com o colapso que parou a cidade de São Paulo.
O PCC, a maior facção criminosa do país, numa demonstração clara de medição de forças com o poder público, iniciou na noite de 12 de maio, uma série de ataques contra as forças de segurança e a alvos civis, causando a maior onda de violência urbana da história brasileira, que se iniciou no estado de São Paulo e em poucos dias, espalhou-se como um rastilho pelo Paraná, Mato Grosso do Sul, Espírito Santo, Minas Gerais e Bahia, deixando a população civil ilhada e aterrorizada.
O Primeiro Comando da Capital (PCC), surgiu como organização criminosa em 1993. Fundado no dia 31 de agosto daquele ano, no Anexo da Casa de Custódia de Taubaté, no estado de São Paulo, nasceu durante uma partida de futebol, onde vários presos brigaram, e temendo retaliações, punições e mortes como as acontecidas em 2 de outubro de 1992, no sangrento e histórico massacre do Carandiru; firmaram entre si um pacto de ajuda mútua.
Criado no rescaldo da tragédia do pavilhão 9 do Carandiru, no início era chamado de Partido do Crime, sendo formado por Misa (Misael Aparecido da Silva), Cesinha (César Augusto Roris da Silva), Geleião (José Márcio Felício), Eduardo Gordo (Wander Eduardo Ferreira), Paixão (Antonio Carlos Roberto da Paixão), Bicho Feio (Antonio Carlos dos Santos), Dafé (Ademar dos Santos) e Isaías (Isaías Moreira do Nascimento). No início a organização proclamava-se como defensora das injustiças e dos maus tratos carcerários. Usava como símbolo o yin-yang chinês. Para manter a organização, os membros do grupo pagam uma taxa de cerca de 50 reais se estiverem presos e 500 reais se estão em liberdade. Além do dinheiro arrecado com os membros, promovem o tráfego de drogas, seqüestros e assaltos a bancos; compram armas e executam o resgate de alguns prisioneiros membros do grupo. Cada membro tem que cumprir um estatuto de 16 itens, que estabelece entre outras coisas, a lealdade, o respeito e a solidariedade entre os membros, além de prever a “execução sem perdão” aos que não cumprirem o estatuto quando livres.
Desde que foi criado o PCC teve várias lideranças, entre as mais famosas estão a do Sombra (Idemir Carlos Ambrósio), que liderou de dentro de uma cela, em 2001, através de um celular, a rebelião em 29 presídios. Sombra foi morto dentro da prisão, cinco meses depois, sendo substituído por Geleião e Cesinha, que promoveram uma união provisória com o Comando Vermelho (CV) do Rio de Janeiro. Sanguinários e radicais, foram substituídos na direção do PCC em 2002, por Marcos Willians Herbas Camacho, conhecido como Marcola. Foi sob o comando do Marcola que as autoridades públicas sofreram a maior humilhação da sua história, em maio de 2006.

São Paulo, Maio de 2006

Com o objetivo de desarticular o PCC, no dia 11 de maio de 2006, o governo de São Paulo decidiu transferir 765 presos para presídios de segurança máxima. A operação foi desencadeada, quando os presos foram enviados para Presidente Venceslau, no interior de São Paulo. No dia 12, 8 líderes do PCC, entre eles o líder máximo, o Marcola, foram levados para a sede do DEIC (Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado), localizada na zona norte da capital paulista. No dia anterior, Marcola havia reivindicado 60 aparelhos de televisão para que os prisioneiros assistissem aos jogos da copa de futebol daquele ano, o que lhe foi veementemente negado.
No dia 13 de maio, Marcola foi transferido para a penitenciária de Presidente Bernardes, no interior paulista, sendo esta considerada uma das mais seguras prisões do Brasil. Como represália à transferência dos líderes, principalmente a de Marcola, o PCC decidiu intervir, intimidando a polícia, organizando uma onda de violência que aterrorizaria o país, tirando toda a beleza do dia das mães daquele ano, expondo a fragilidade da segurança no país diante do mundo.
Os ataques começaram a tomar forma justamente durante a realização dos benefícios que os prisioneiros tinham pela comemoração ao dia das mães. Nesta data é costume os prisioneiros receberem visitas nas celas ou indulto. Os que visitaram seus presos saíram com a missão de organizar ataques à polícia, e os que receberam indultos do dia das mães, a de comandar esses ataques.
Na noite de 12 de maio, sexta-feira, começaram os ataques, sendo os primeiros alvos o 55º DP , no Parque São Rafael, e um policial civil atingido próximo à sua casa em Guaianazes. Estava estabelecido o objetivo principal dos ataques, delegacias e policiais tornam-se os alvos. Os primeiros atentados não ficam esclarecidos a quem pertence à sua autoria, suspeitando-se que sejam promovidos pelo PCC. Até a meia-noite a cidade de São Paulo registraria 8 policiais feridos e outros 7 mortos.
Já no dia 13, vários presídios de São Paulo rebelam-se. Os ataques, que desde o dia anterior tornaram-se contínuos, são finalmente atribuídos ao PCC. No domingo, 14, dia das mães, a onda sucessiva da violência intensifica-se, começando a tomar conta da mídia sensacionalista, gerando o pânico geral na população. Fala-se dos ataques e das mortes, mas a imprensa não relata à população a ofensiva da polícia, e que vários dos mortos já fazem parte de integrantes do próprio PCC. Para a população assustada, apenas os policiais estão a morrer. O governo cala-se diante da mídia e da população.

O Dia em que São Paulo Parou

No dia 15 de maio, segunda-feira, a falta de uma resposta imediata e contundente do governo do estado de São Paulo e da polícia, torna a população paulistana refém dos ataques criminosos e da imprensa sensacionalista.
Começam a correr boatos de que as estações do metropolitano de São Paulo seriam os próximos alvos. Tiros atingem a estação de Artur Alvim, na zona leste. Ônibus são incendiados, deixando a população sem condução em plena segunda-feira. As limitações de carros em São Paulo, conhecidas como rodízio, são suspensas, o que causa um dos maiores congestionamentos de automóveis registrados na cidade.
À tarde, para completar o caos, sem informar a fonte e deixando-se conduzir pelo sensacionalismo, a Rede Record anuncia que haveria um toque de recolher às 20 horas. Estava lançado o pânico. O que se viu a seguir foi a maior cidade da América do Sul entrar em colapso. As empresas liberaram, na parte da tarde, os seus funcionários; metropolitano e ônibus foram retirados de circulação; os shoppings foram fechados. Acossadas e sem transporte, milhares de pessoas transitavam a pé pelas ruas da metrópole, tentando desesperadamente chegar em casa e, principalmente, evitar passarem próximas às delegacias, que se tornaram alvos do PCC. Temendo retaliações, os policiais andavam pelas ruas da cidade em comboios, evitando assim, que se tornassem alvos fáceis dos bandidos.
São Paulo viveu, naquela segunda-feira, um clima de terrorismo comparável aos de uma guerra. No fim da tarde, a maioria da população está presa dentro de casa, a ouvir, finalmente as explicações do então governador Cláudio Lembo e dos chefes de segurança do estado, a revelar que estavam reagindo aos ataques, desmentindo o toque de recolher e acusando a imprensa de promover e acirrar o pânico entre a população.
Às 20 horas da noite de 15 de maio, as ruas de São Paulo ficaram desertas, como jamais acontecera na sua história. Ninguém ousou a sair de casa naquela triste segunda-feira. Reféns do medo e do poder paralelo, os paulistanos preferiram ficar em casa, a esperar o desfecho da impotência do estado e da sua polícia. Naquele dia, São Paulo parou.

Após o Fim dos Ataques

No dia 16 de maio, incitada pelo governo, a população voltou às ruas e ao trabalho, decidida a não mais ficar refém do poder paralelo dos bandidos. Naquele dia, o saldo era 128 mortos e 59 feridos. Entre os mortos estavam: 23 policiais militares, 6 policiais civis, 3 guardas municipais, 8 agentes penitenciários, 4 civis, 71 suspeitos e 13 presos. No balanço da tragédia, alguns dos suspeitos foram inocentemente mortos pela polícia. Aos poucos o estado controlava e dissipava a rebelião, que tornara o mês de maio de 2006, ano de eleições presidenciais e para governadores de estado, em um dos mais sangrentos e negros da história da violência e do poder paralelo no Brasil.
Em agosto daquele ano, o PCC ensaiou um novo ataque de pânico à população, desta vez divulgando a sua mensagem através da maior emissora de televisão do Brasil, a Rede Globo. Na manhã do dia 12 de agosto dois funcionários da emissora, o repórter Guilherme Portanova e o técnico Alexandre Coelho Calado, foram seqüestrados pelo PCC. A organização criminosa exigiu que a Rede Globo divulgasse um DVD, levado aos estúdios por Alexandre, enquanto Guilherme era mantido refém. Para não pôr em risco a vida do repórter, após consultar organizações jornalísticas internacionais, a emissora transmitiu o vídeo, que trazia uma mensagem pronunciada por um integrante do PCC, a pedir revisão de penas e melhorias carcerárias. Era obvio que mais uma vez, o PCC queria medir forças, disseminar o pânico. O repórter foi libertado 40 horas após a transmissão do vídeo, que não atingiu às massas, a tentativa de pressionar a população falhara. O que não falhou foi o registro histórico feito a 15 de maio de 2006, o dia que São Paulo parou.
publicado por virtualia às 07:33
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Terça-feira, 23 de Junho de 2009

MICKEY MOUSE, ADORÁVEL JOVEM DE 80 ANOS

 

 

Em 1928 Walt Disney produzia o filme sonoro “Steamboat Willie”, onde a estrela era um camundongo. O filme tornou-se um grande sucesso e, há oito décadas, nascia uma nova estrela, Mickey Mouse. Personagem dos cartoons (desenhos animados), o rato Mickey, desde então, foi o herói de várias gerações de crianças. A partir dele construiu-se o mundo de sonho de Walt Disney, nascendo outras várias personagens do imaginário infantil como o pato Donald, Pateta, Tio Patinhas, e até mesmo a versão americana de um brasileiro, o Zé Carioca.
Nascido no final da década de 1920, Mickey transformar-se-ia em um ícone mundial, sendo na época da Guerra Fria transformando em símbolo do capitalismo e imperialismo norte-americano, amaldiçoado e desprezado pelos mais ortodoxos representantes da esquerda revolucionária que assolou o mundo.
Mickey embalou os sonhos das crianças que cresceram com as suas aventuras, primeiro vividas no cinema, depois transpostas para tiras de jornais, para a televisão e às revistas em quadrinhos traduzidas em várias línguas.
Inocente desenho ou representante da poderosa indústria capitalista, Mickey desde que foi criado gerou polêmicas, seu carisma foi um convite até mesmo para abrir as fronteiras estadunidenses diante dos países vizinhos, sendo porta-voz de uma política diplomática mais estreitada. Ideologias à parte, os mundos mágico e lúdico de Mickey e de seus companheiros encantam, seduzem, fazendo de nós eternas crianças, apaixonadas por este jovem camundongo de 80 anos.

A Criação da Personagem de Mickey

Atolado em dívidas de jogo, o americano Ub Iwerks encontrou uma maneira inusitada de pagar o que devia para Walt Disney, criando para ele o personagem de Mickey. Com uma extraordinária percepção, Disney aceitou o desenho como pagamento. Nascia assim, no dia 18 de novembro de 1928, um dos maiores ícones do universo infantil. Sua estréia aconteceria com estrondoso sucesso no filme de animação “Steamboat Willie”.
Quando criado, a personagem foi batizada com o nome de Mortimer, mas por influência da mulher de Disney, que achava o nome por demais formal para a leveza do desenho, optou-se por chamá-lo de Mickey. O camundongo surgiu vestindo calções vermelhos e sapatos amarelos, menção clara à ordem que Walt Disney era membro: DeMolay – ordem filosófica e fraternal para jovens e crianças entre 12 e 21 anos, fundada nos EUA por maçons locais. O próprio Walt Disney dublaria a voz de Mickey por longos anos, de 1928 a 1946.

Surgem os Amigos do Mickey

Aos poucos, o universo de Mickey vai ganhando personagens que também farão grande sucesso. A namorada Minnie está ao seu lado desde a estréia em “Steamboat Willie”. No filme Mickey está em um barco e Minnie à espera, quase a perdê-lo, intrepidamente ele a “pesca” pela calcinha, trazendo-a para dentro do barco, iniciando uma das mais longas histórias de amor das bandas desenhadas.
Em 1930 Mickey ganhou uma mascote, o cachorro Pluto, um cão treinado para caçar, mas que se mostra sempre um criador de confusão, pondo o dono em situações delicadas. Mesmo com a sua forma atrapalhada, Pluto consegue ajudar o seu dono no fim de cada aventura. Batizado inicialmente de Rover, o nome foi alterado por sugestão da mulher de Walt Disney, ficando Pluto em homenagem à descoberta, na época recente, do planeta Plutão.
Em 1932, surge o melhor amigo de Mickey, o cão de raça bloodhound, Pateta (Goofy, no inglês original). Pateta surgiu quase que por acidente no filme “Mickey’s Revue”, fazendo uma pequena participação com o nome de Dippy Dawg. Sua risada escandalosa a incomodar toda uma platéia caiu nas graças de Walt Disney, que decidiu torná-lo parte do mundo de Mickey. O seu nome seria alterado para Goofy somente em 1934, em “The Orphan’s Benefit”, onde se fixa como personagem de primeiro escalão da turma do Mickey. Pateta é confuso, desengonçado e, a contrastar com Mickey, é pouco inteligente. Mas é dono de uma simplicidade e bondade comovente, sendo um fiel e dedicado amigo.
Em 1934 surge um novo amigo do Mickey, o pato Donald. Personagem sem calças, traz camisa e quepe de marinheiro. Ao contrário de Pateta, que é tranqüilo, Donald tem um temperamento explosivo, às vezes beirando ao irracional. Seu sucesso foi tão grande, que iria adquirir um universo próprio, paralelo ao de Mickey, com direito à família, namorada e aventuras próprias. Nos tempos atuais, talvez o pato Donald seja mais popular do que o próprio Mickey.
Mas nem só de amigos é composto o universo de Mickey, sendo os seus arquiinimigos o João Bafo-de-Onça e o Mancha Negra. Bafo-de-Onça (Black Pete/Pete em inglês) é um vilão anterior ao próprio Mickey. Surgiu em 1927, como vilão do Coelho Osvaldo, primeira personagem de Walt Disney. Em 1928 já se torna inimigo de Mickey em “Steamboat Willie”. Bafo-de-Onça é um gato malandro, ladrão de bancos, que sempre termina, graças à influência de Mickey, atrás das grades. O Mancha Negra (Phantom Blot), surgiu em 1941, na revista “Mickey Mouse Outwits the Phantom Blot”. Mancha Negra veste-se como um fantasma, com um lençol negro sobre o corpo. A personagem ressurgiria como inimigo do Mickey na década de 60. Tornar-se-ia a partir de então, a grande paixão da bruxa Madame Min.
Com o tempo surgiram, sem grande sucesso ou histórias marcantes, os sobrinhos do Mickey. Também vieram o Coronel Cintra (Chief O’Hara, em inglês), o Horácio e a Clarabela.

Evolução e Perfis da Personagem

Com a evolução das histórias, Mickey foi ficando cada vez mais racional e tido como o mais inteligente das personagens de Walt Disney, o que lhe tirou muito da graça e humor que tinha originalmente.
Na década de 70, sob a influencia da Guerra Fria, ele torna-se um exímio detetive (forma politicamente correta de ser um espião), desvendando sempre casos instigantes em Patópolis. Como está mais sério nesta fase, os desenhistas tiram-lhe o aspecto mais infantil do início, fazendo com que perdesse os calções vermelhos para um par de calças azuis, ganha um elegante casaco vermelho (às vezes uma camisa, também vermelha), uma gravata borboleta e os sapatos amarelos são trocados por uns castanhos.
Na década seguinte ele deixa o detetive de lado para cuidar melhor da namorada Minnie, que passa a sofrer as investidas de Ranulfo. Ranulfo, um grande chato, em inglês chama-se Mortimer, curiosamente o primeiro nome com o qual Mickey tinha sido batizado, em 1928.
A partir do universo de Mickey, outros universos de personagens foram criados, e o mundo da fantasia de Walt Disney tornou-se um gigantesco aglomerado de personagens carismáticos, transformando-se numa grande indústria geradora de sonhos, magia, ludismo e dinheiro. Ao contrário do pato Donald, que tem o seu perfil psicológico mantido desde a sua criação, o camundongo Mickey construiu um perfil direcionado como porta-voz da Disney e do próprio Walt Disney, se o mundo exigia que ele fosse mais sério, assim acontecia, se exigia que se tornasse mais confuso, a camuflagem era feita, afinal Mickey, assim como o mundo construído ao seu redor, também é um sobrevivente. Como qualquer celebridade de carne e osso, Mickey tem a sua estrela gravada na Calçada da Fama. Como qualquer astro do cinema, sofreu desgastes, críticas, sendo amado e odiado muitas vezes. Aos oitenta anos, Mickey Mouse continua a ser um ícone do mundo que se construiu a partir de uma mídia nascida no século XX.
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Sexta-feira, 19 de Junho de 2009

FEDERICO GARCIA LORCA - UM HOMEM ANDALUZ

 

 

Federico García Lorca é, ao lado de Miguel de Cervantes, o escritor espanhol mais conhecido e lido tanto na própria Espanha, como no resto do mundo. Poeta e dramaturgo, de uma obra intensa, marcada por codificações simbólicas: a lua, a morte, a terra, a água, o cavalo, a criança...
Lorca criou um dos mais belos teatros do século XX, introduzindo em suas peças uma linguagem poética singular. Sua insatisfação diante da vida transformava os costumes abordados em sua tragédia. Centro de um grupo de intelectuais que passou para a história como a “Geração de 27”, congregou com os maiores nomes do universo da arte e cultura da Espanha do século passado, entre o solar dos seus amigos estavam: Luís Buñuel, Salvador Dali, Antonio Machado, Manuel Falla e Rafael Alberti.
Federico García Lorca foi um dos primeiros a ser vitimado pela Guerra Civil Espanhola, sendo abatido pelos nacionalistas, grupo liderado pelo general Franco, que uma vez no poder, levaria a Espanha a uma ditadura de quatro décadas. Durante a ditadura franquista, o nome do poeta andaluz foi banido e proibido em todo o país. Numa época de conservadorismo dos costumes católicos na Ibéria, as idéias de Lorca, juntamente com a sua homossexualidade latente, foram decisivas para o seu fuzilamento. Se a conduta de idéias e as assimilações de vida de Lorca bateram no preconceito de uma nação, assassinando o homem, o poeta e o dramaturgo eternizaram o mito. Mesmo calada a sua obra por décadas, ela voltou com os ventos da democracia, formando um grande vendaval que fizeram das palavras dilaceradas à luz da lua, um grito que ecoou por toda a península Ibérica, tornando-se um dos maiores nomes da literatura espanhola.

Tendências Musicais no Universo do Jovem Lorca

Federico García Lorca nasceu em 5 de junho de 1898, em Fuente Vaqueros, povoação próxima a Granada, na Andaluzia. Filho mais velho de quatro irmãos, viveu uma infância que marcaria para sempre a sua vida e, principalmente, a sua obra. Todas as vezes que questionado sobre o que escrevia, Lorca aludia à infância como fonte de inspiração. Sua família enriquecera com o negócio do açúcar, formando um núcleo de pequenos proprietários e funcionários administrativos. É na figura da mãe que o pequeno Federico mais se espelha, apesar da sua tendência para a depressão. É com ela que inicia os seus estudos e aprende as primeiras letras. A infância corre-lhe feliz dentro do seio desta família andaluz, que trazia homens que gostavam da vida boêmia e da música, e mulheres que liam Vitor Hugo como modismo.
O mundo da arte abraçou desde cedo “el niño“ andaluz, que se dedicava horas a tocar piano, numa demonstração clara de vocação para a música. Por algum tempo acreditou que o pai o enviasse para Paris, onde pretendia continuar os estudos musicais, mas com a morte de seu professor de piano, António Segura Mesa, não teve como convencer a família, que queria para o filho uma profissão mais “útil”.
Terminado o sonho de ser músico na adolescência, o jovem Lorca seguiu para Granada, matriculando-se em Direito e Filosofia. Sem aptidão para os cursos, logo deles se desinteressa. Concluiria com dificuldade o curso de Direito. É desta época o seu primeiro sucesso literário “Impressões e Paisagens”. É em Granada que começa a desenvolver o seu círculo intelectual, travando conhecimento com António Machado e Manuel Falla, estreitando com eles uma longa amizade.
Em 1919 Lorca seguiu para Madrid, para concluir o curso de Direito. As conturbações culturais assolavam a Europa, que acabara de viver os duros anos da Primeira Guerra Mundial. Era hora de refazer os escombros que a guerra deixara, inclusive o cultural. Sob os ecos do horror da guerra, tudo parecia finito, os ventos reluziam mudanças, os símbolos tomavam dimensões no jogo social e artístico, refletidos em Freud e Nietzsche, incitando códigos que respingariam na obra que o jovem García Lorca começava a traçar. Nesta época publica o seu primeiro poema na “Antologia de Poesia Espanhola”, e começa o projeto de um livro de poemas. O escritor matava de vez o músico. Os versos usurpavam as notas musicais, e o maior poeta da Espanha do século XX estava pronto.

Encontro com Salvador Dali

Em Madrid, por recomendação do amigo e antigo mestre, Fernando de los Rios, Lorca foi aceito na Residência dos Estudantes. O local era freqüentado por intelectuais, costumando receber palestrantes famosos, como H. G. Wells, Einstein, Paul Claudel, Bérgson, Paul Éluard, Louise Curie, Stravinsky e Paul Valéry.
Na Residência dos Estudantes, Lorca transforma o seu quarto em ponto de encontro de intelectuais e centro de longas tertúlias. É na capital madrilena que conhece Salvador Dali, Rafael Alberti e Luís Buñuel, que futuramente tornar-se-iam a mais fina flor de intelectuais espanhóis.
Do encontro de García Lorca com Salvador Dali surgiria uma grande amizade, movida por uma forte empatia. Se Lorca era um jovem sensível, de uma alma inquieta, Dali, não lhe ficava atrás, era um homem tímido, que se vestia de uma excentricidade perene. Se para Dali nascia uma grande e profunda amizade, para Lorca nascia algo mais, uma profunda paixão, cerceada pelos meandros sociais e pelos códigos morais que só eles ousavam decifrar além.
Se Madrid borbulha intelectualmente, também Lorca explode a sua obra. Estréia a sua primeira peça, “El Malefício de la Mariposa”, um ano depois de estar na capital espanhola. Apesar de ser sucesso de crítica, a peça é um fracasso, fazendo com que o autor volte-se para a poesia. Em 1921 lança “Libro de Poemas”, grande sucesso que o leva a publicar mais poesia. Nos três anos seguintes dedica-se a escrever várias peças e a elaborar outras tantas. Nesta fase descobre uma nova paixão, o desenho, que lhe rouba bastante do seu tempo.

Ruptura com Dali

O ano de 1927 é intenso para García Lorca. É nesta época que ele e o seu grupo de amigos passam a ser conhecidos como a “Geração de 27”. É o ano que estréia com a companhia da atriz Margarita Xirgú, de quem se torna grande amigo. Será para a amiga que Lorca escreverá, futuramente, as maiores personagens da sua obra teatral, como Yerma e Bernarda Alba.
Salvador Dali organizou, em 1927, os desenhos de Lorca, expondo-os nas míticas galerias Dalmau, em Barcelona. Logo a seguir, Lorca publicou aquele que se tornaria o seu livro mais famoso, “El Romancero Gitano”. O sucesso foi absoluto, sendo aplaudido por todos, aclamado o melhor livro na Espanha. Apesar de ser unanimidade, Luis Buñuel e Salvador Dali acharam o livro profundamente ruim.
A opinião desfavorável de Dali, emitida em uma carta que trazia um tom às vezes magoado, transtornara Lorca. Se a sua obra atingia com sucesso a Espanha, por outro lado Salvador Dali afastava-se cada vez mais. Lorca apercebera-se que Dali desenvolvia um interesse latente por Gala, mulher de Paul Éluard. Amargurado com a falta de solidariedade de Dali, Lorca entrou em depressão. Quando questionado, falava que era por problemas sentimentais por conta de uma desilusão amorosa. Por detrás da depressão, a verdade era só uma, o momento de ruptura com Salvador Dali.

Surge o Grande Dramaturgo

Se o momento era de conquista profissional, as perdas sentimentais eram irreversíveis, e Lorca deixa-se deprimir. É neste período que o antigo amigo e mestre Fernando de los Rios, com viagem marcada para os Estados Unidos, convida-o para acompanhá-lo. Lorca sabe que o momento é de rupturas, de transformações e ebulições interiores. Decide aceitar o convite do amigo e deixa a Espanha, partindo para Nova York.
Acostumado às tertúlias intelectuais de Madrid, aos salões culturais europeus, Lorca vê-se perdido e esmagado em Nova York. Rejeita tenazmente o olhar americano sobre a vida. Não só ele vivia uma depressão, como a própria Nova York explodirá a sua bolsa de valores, levando a recessão econômica para o resto do mundo.
Passada à primeira imagem depreciativa da cidade, e também a depressão por sua ruptura com Salvador Dali, Lorca abraçará Nova York com paixão. Entrará em uma grande fase criativa, escrevendo um ciclo de poemas que será agrupado sob o título de “Poeta em Nova York”, além da peça “Assim que Passarem Cinco Anos”.
Quando regressa à Espanha, Lorca entrega-se a um período de intenso trabalho. Ao lado de Eduardo Ugarte funda a companhia de teatro La Barraca. Encena vários dramaturgos espanhóis, percorrendo em itinerância com a companhia, várias regiões da Espanha. A partir de então, escreverá as peças que se irão compor as suas principais obras. Lorca mescla poesia e teatro em uma linguagem única, transformando a forma de encenação das peças nos palcos espanhóis. Sua dramaturgia é marcada pela obsessiva visão de que o desejo e o sexo são os fios condutores da vida e da morte. Lorca declararia que o público de teatro da época só tinha interesse pelos temas social e sexual, e que optara pelo segundo.
É neste contexto que o autor faz rupturas com o teatro burguês, enquadrando-o no seu misterioso mundo particular, jogando no palco a dolorosa e solitária visão da vida. É no palco que se despede dos amores impossíveis, da tragédia dos sentimentos escondidos em quartos clandestinos de amantes que desafiavam o mundo. Será assim em “Bodas de Sangue”, quando a mulher abandona o marido para seguir o amante, causando-lhes a morte; em “Yerma”, a esterilidade enlouquece a mulher, que termina por matar o marido; ou ainda, “A Casa de Bernarda Alba”, em que a defesa da honra caprichosa impede o avanço dos amores. Nas três tragédias, evidencia-se o autor diante do mundo, preso às impossibilidades sociais diante da sua forma de amar, à esterilidade que a sua homossexualidade o atira, e aos preconceitos que lhe irão, assim como na primeira peça citada, causar-lhe a própria morte.

Abatido Pela Guerra Civil

O último ano de vida de García Lorca é marcado por um fértil momento criativo e atividade profunda, quer como poeta, quer como dramaturgo. Neste ano estréia “Doña Rosita”, além de elaborar aquela que seria a sua última obra teatral acabada, “A Casa de Bernarda Alba”. A estréia da peça estava marcada para julho de 1936, mas alguns imprevistos causaram atrasos que empurraram a estréia para setembro. Por este motivo, Lorca seguiria para Granada para visitar a família.
Os tempos na Espanha traziam uma grande tempestade sobre a liberdade, atirando-a em uma trágica guerra civil.
Ingenuamente Lorca não acreditou que um conflito pudesse acontecer em seu país. Quando chegou a Granada, encontrou um clima tenso, pois a cidade tinha sido palco de alguns confrontos. Dois dias depois de ter chegado à terra natal, a guerra civil eclodiu.
A situação do poeta era delicada, suas posições políticas eram vistas com repúdio pelos conservadores direitistas, o suficiente para pôr a sua vida em perigo. Dias antes de regressar para Granada, subscrevera, a pedido do Comitê dos Amigos de Portugal, um abaixo-assinado em protesto à ditadura de Salazar. Sua homossexualidade era incômoda para os mais ortodoxos moralistas da época.
Sabendo que corria risco de ser morto, Lorca decide sair da Espanha, seguindo para o México, onde já estava a amiga Margarita Xirgú. Mas ele demora muito em executar o plano de fuga, em parte por ainda acreditar que o conflito talvez não se vá estender por muito tempo, ou por temer que a família sofresse retaliações. Por várias vezes teve a hipótese da fuga. Sejam quais forem os motivos, os questionamentos de Lorca naqueles momentos decisivos, a hesitação e demora em deixar a Espanha custar-lhe-ia a própria vida. Quando se sentiu acossado, Lorca refugiou-se na casa da família do poeta e amigo falangista, Luís Rosales. Estava decidida a sua sorte!
Um vulto negro surgiria na vida de Lorca, o sinistro Ramon Ruiz Alonso. Homem conhecido por ser um fervoroso católico, conservador e fascista, Alonso tinha um ódio natural por Lorca. Destacado para fazer a limpeza dos vermelhos de Granada, ele escreve um auto de denúncia contra Lorca, iniciando a sua caçada. Para Alonso, Lorca era “mais perigoso com a caneta do que outros com revólver”. O algoz inicia uma operação militar de captura a Lorca. As ruas foram fechadas, as casas cercadas e franco-atiradores foram postos nos telhados. Lorca foi preso.
Assustado, Lorca foi informado que Alonso decidira que seria executado. Ao saber do seu destino, Lorca chorou, fazendo um último pedido, que lhe fosse chamado um confessor, pedido que lhe foi negado. Solitário com os símbolos e as palavras que fizera da sua vida o sentido dos homens talhados para os mitos, Lorca passou a última noite de vida na prisão, a rezar, a esperar pela tragédia, vivida no seu próprio palco. Tão logo a lua, companheira eterna da sua obra, em quarto minguante, retirasse-se do céu, restar-lhe-ia a morte como sorte.
Logo pela manhã do dia 19 de agosto de 1936, Federico García Lorca, uma dos ícones da Espanha, foi levado da prisão pelos Nacionalistas do general Franco. Foi posto debaixo de uma oliveira e ali abatido com um tiro na nuca. Já no chão, ainda disse: “Todavia estoy vivo”. Foi quando um dos seus executores deu-lhe um tiro de misericórdia no ânus, porque assim deveria morrer os “maricones”.
Morto aos 38 anos de idade, García Lorca teve o corpo deixado em um ponto de Serra Nevada, em uma vala comum no barranco de Viznar, em Granada. Após o fim do franquismo, durante décadas a família de Lorca impediu que a vala onde o corpo foi deixado fosse aberta e o corpo exumado. Uma resolução do juiz Baltasar Garzón, de 2008, obrigou que a família voltasse atrás na sua decisão. Segundo o juiz, ali estão outros corpos de homens que também foram mortos pela guerra civil, e as famílias desses homens querem prestar-lhes uma homenagem justa e enterrá-los com dignidade cristã, o que era impedido pela recusa da família de Lorca.
O governo ditatorial de Franco tentaria explicar em vão a morte de Lorca diante da Espanha e do mundo. O assunto sempre foi tratado pelos franquistas com ressalvas e apontado como um lamentável acidente de guerra, já que Lorca era apartidário. Segundo os franquistas, o escritor caíra apanhado no turbilhão confuso dos primeiros dias de guerra. Se a morte de Lorca tinha sido um lamentável engano, como afirmavam, a proibição da encenação das suas peças durante o franquismo era uma realidade tenaz. Possuir livros do autor era considerado subversivo, trazendo perigo para quem teimava em ler o poeta andaluz. Mas a voz de Lorca ultrapassou a vala que seu corpo tinha sido atirado, cumprindo a profecia das suas palavras, que dissera anos antes de ser abatido: “Um morto na Espanha está mais vivo como morto que em nenhum outro lugar do mundo”.
Federico García Lorca, assim como as tragédias que escreveu, encerrou a vida dramaticamente, como mártir de uma sangrenta guerra que devastou a liberdade da Espanha. Em Granada ele encontrou a inspiração para a sua obra, a lua da Andaluzia iluminaria o palco das suas palavras. A mesma Andaluzia que lhe serviu de berço e de vala funerária, a mesma Granada que deu à luz e tragou um dos mais valorosos poeta e dramaturgo da literatura universal.

OBRAS

Poesia:

1921 – Livro de Poemas
1926 – Ode a Salvador Dali
1927 – Canciones (1921-24)
1928 – El Romancero Gitano (1924-27)
1931 – Poema del Cante Jondo
1933 – Ode a Walt Whitman
1935 – Canto a Ignacio Sánchez Mejias
1935 – Seis Poemas Galegos
1936 – Primeiras Canções (1922)
1936 – Sonetos Del Amor Oscuro
1940 – Poeta em Nova York (1929-30) – póstumo
1940 – Divã do Tamarit – póstumo

Prosa:

1918 – Impressões e Passagens
1949 – Desenhos (publicados postumamente em Madrid)
1950 – Carta aos Amigos – póstumo

Teatro:

1920 – El Malefício de la Mariposa
1925 – Mariana Pineda
1928 – Oda al Santíssimo Sacramento Del Altar
1930 – La Zapatera Prodigiosa
1931 – Assim que Passarem Cinco Anos – Lenda do Tempo
1931 – Retábulo de Don Cristóvão
1931 – Amores de Dom Perlimplim e Belisa em seu Jardim
1933 – El Público
1933 – Bodas de Sangue
1934 - Yerma
1935 – Dona Rosita, a Solteira
1936 – A Casa de Bernarda Alba

CRONOLOGIA

1898 – Nasce a 5 de junho, em Fuente Vaqueros, Granada, Federico García Lorca, filho de Federico García Rodriguez e Vicenta Lorca Romero.
1906 – Vai para Almeria, para residir na casa do seu mestre Dom Antonio Espinosa Rodriguez.
1908 – Faz exames para ingressar no General y Técnico de Almeria.
1909 – Uma grave infecção bucal faz a família trazê-lo de volta para Granada. Passa a freqüentar o Colégio do Sagrado Coração de Granada. Passa a ter aulas de guitarra e piano.
1915 – Inicia estudos de Direito e Filosofia na Universidade de Granada.
1916 – No inverno, na passagem para 1917, escreve as primeiras poesias.
1917 – Publica no Boletín Del Centro Artístico de Granada, o seu primeiro trabalho literário, um artigo por ocasião do centenário de Zorrilla. Faz uma viagem de estudos com alguns colegas e o professor Martin Berrueta Dominguez, por Castela, Leão, Galícia e Andaluzia.
1918 – Publica o primeiro livro, “Impressões e Paisagens”, prosa sobre a sua experiência na viagem que fizera no ano anterior por diversas regiões da Espanha.
1919 – Muda-se para Madrid, instalando-se na Residência dos Estudantes. Em Madrid conhece Luis Buñuel, Eduardo Marquina, Juan Ramón Jiménez, Salvador Dali e outros.
1920 – Em 22 de março estréia a sua peça “El Malefício de la Mariposa”, no Teatro Eslava, em Madrid.
1921 – Publica o primeiro livro de poemas, “Livro de Poesia”, dedicado ao irmão Francisco. 10 de setembro, publica o poema “Balada de la Placeta”, na “Antologia de Poesia Espanhola”.
1923 – Adapta para o teatro várias obras de Cervantes. Termina o bacharelado de Direito, em Granada.
1924 – Conhece o pintor Gregório Prieto, com quem estabelece grande amizade. Conclui o livro “Canciones”. Começa a escrever “El Romancero Gitano”. Começa a trabalhar na idéia da obra “Doña Rosita la soltera o el lenguaje de las flores”.
1925 – Termina a peça “Mariana Pineda”. Visita a família de Salvador Dali, para quem lê a peça que terminara recentemente.
1926 – Publica “Ode a Salvador Dali”.
1927 – Projeta com Manuel Falla, uma nova linguagem do teatro infantil de marionetes. Publica em Málaga, o livro “Canciones”. Em 24 de junho estréia no Teatro Goya, em Barcelona, na companhia da atriz Margarita Xirgú, a peça “Mariana Pineda”; o palco foi decorado por Salvador Dali. De 25 de junho a 2 de julho faz uma exposição de seus desenhos em Barcelona, organizada por Salvador Dali. Publica de julho a setembro, vários poemas na revista “Verso e Prosa” de Múrcia. Em 12 de outubro estréia em Madrid, a peça “Mariana Pineda”, com Margarita Xirgú. Volta para Granada, onde pretende criar a revista “Gallo”.
1928 – Surge a primeira edição da revista “Gallo”, esgotando-se em dois dias. O sucesso da “Gallo” provoca os estudantes universitários de Granada, que se dividem em “gallistas” e não “gallistas”. Em abril surge o segundo número da “Gallo”, tornando-se um grande fracasso. O número 3 da “Gallo”, embora com os artigos elaborados, não consegue sair. Publicado “El Romancero Gitano”.
1929 – Viaja para Nova York. No verão faz curso na Columbia University.
1930 – Em Nova York conhece Andrés Segovia. Viaja para Cuba, onde faz quatro palestras. No verão regressa à Espanha. Em 24 de dezembro estréia pela companhia de Margarita Xirgú, em Madrid, “La Zapatera Prodigiosa”.
1932 – Funda e dirige o grupo de Teatro Español Universitario La Barraca.
1933 – Estréia em março, no Teatro Beatriz, em Madrid, a peça “Bodas de Sangue”. Viaja para a América do Sul, passando pela Argentina, Uruguai e Brasil. Estréia com grande sucesso, em Buenos Aires, as peças “Bodas de Sangue”, “Mariana Pinedo” e “La Zapatera Prodigiosa”. Discursa ao lado de Pablo Neruda no Pen Club, em memória de Rubén Dario. Publica no México “Ode a Walt Whitman”.
1934 – Morre o amigo Ignacio Sanchez Mejias. Lorca escreve “Llanto”. Em 29 de dezembro Margarita Xirgú estréia no Teatro Espanhol de Madrid, a peça “Yerma”.
1935 – Termina “Doña Rosita la Soltera”. Bate à máquina “Poeta em Nova York”, para ser impresso. Em dezembro a companhia de Margarita Xirgú estréia em Barcelona “Doña Rosita la soltera o el lenguaje de las flores”.
1936 – Publica “Bodas de Sangue”. Projeta uma viagem para Nova York e México, para discursar em uma conferência sobre Quevedo. Faz leitura de “A Casa de Bernarda Alba”. Começa os ensaios de “Assim que Passarem Cinco Anos”.
Lorca prepara a sua mais nova tragédia, “La Destrucción de Sodoma”. 16 de julho, viaja para Granada, para visitar a família. 18 de julho, eclode o levantamento militar. Aconselhado por amigos, refugia-se na casa da família Rosales, em Granada. É preso e posto à disposição do controle militar estabelecido em Granada. A 18 ou 19 de agosto, é executado sem nenhum julgamento, em Viznar, Granada.

Poemas de Garcia Lorca

Volta de Passeio

Assassinado pelo céu,
entre as formas que vão para serpente
e as formas que buscam o cristal,
deixarei crescer os meus cabelos.

Com a árvore de tocos que não canta
e o menino com o branco rosto de ovo.

Com os animaizinhos que a cabeça rota
e a água esfarrapada dos pés secos.

Com tudo o que tem cansaço surdo-mudo
e mariposa afogada no tinteiro.

Tropeçando com meu rosto diferente de cada dia.
Assassinado pelo céu!

Se Minhas Mãos Pudessem Desfolhar

Eu pronuncio teu nome
nas noites escuras,
quando vêm os astros
beber a lua
e dormem nas ramagens
das frondes ocultas.

E eu me sinto oco
de paixão e de música.
Louco relógio que canta
mortas horas antigas.

Eu pronuncio teu nome,
nesta noite escura,
e teu nome me soa
mais distante que nunca.
Mais distante que todas as
estrelas
e mais dolente que a mansa
chuva.

Amar-te-ei como então
alguma vez?
que culpa
tem o coração?

Se na névoa se esfuma,
que outra paixão me espera?
Será tranqüila e pura?
Se meus dedos pudessem
desfolhar a lua!



Romance Sonâmbulo
(trecho)

Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar
e o cavalo na montanha.
Com a sombra pela cintura
ela sonha na varanda,
verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Verde que te quero verde.
Por sob a lua gitana,
as coisas estão mirando-a
e ela não pode mirá-las.

 
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Sexta-feira, 12 de Junho de 2009

ENCONTRO NO JARDIM DO ÉDEN - JEOCAZ LEE-MEDDI

 

 

“E Deus prosseguiu dizendo:
‘Façamos homem à nossa imagem, segundo a nossa semelhança,
e tenham eles em sujeição os peixes do mar,
e os animais domésticos, e toda a terra,
e todo animal movente que se move sobre a terra.’
E Deus passou a criar o homem à sua imagem,
a imagem de Deus o criou;
macho e fêmea os criou.”
(Gênesis 1:26-27)

Quando a canção dos ventos faz dos mil dias os mil anos, dos mil anos o princípio do passado, onde a confusão do futuro continua a arremessar o nosso ser nas incertezas de Deus. Assim a noite torna-se a máquina do tempo, e o corpo as moléculas das ideologias.
Nas incertezas da minha mente, fugir para os jardins públicos nunca arrebatou os meus desejos. Naquela noite de estrelas e de galáxias sobre as cabeças, entrei pelo Jardim do Trianon. Tudo era escuro, e um cheiro nauseante de flores confundia a primavera. Sempre tive medo de atravessar o coração do jardim. Medo das surpresas, ali assaltantes, drogados e bichas dançavam um tango perigoso com cheiro de sangue e esperma. Não resisti ao cheiro das flores, teria que vomitar. Talvez fosse do absinto, mas preferia acreditar que era das flores, intelectualizava melhor os vícios. Entrei no coração do jardim para vomitar. Poderia tê-lo feito nos urinóis dos cães por ali espalhado, mas a minha condição de cão sem dono não me deixou fazer isto.
Quanto mais penetrava no interior do jardim, mais a noite corria, as nuvens no céu passavam por mim em grande velocidade. As estrelas davam passagem ao Sol, que por sua vez brilhava de um tom pastel, dando à paisagem cores tranqüilas, cromaticamente perfeitas. O jardim foi ampliando-se, tornara-se infinito, já não conseguia ver os prédios. Na minha boca o gosto do absinto dava passagem a um bem-estar quase bucólico. Já não tinha coragem de vomitar.
Caminhei pelo imenso jardim. Por mim passaram plantas, árvores, pássaros, formas da natureza que jamais tinha visto. Quanto mais caminhava, mais me perdia dentro do jardim. Andei alguns minutos, quando vi ao longe um lago. Parecia calmo, convidativo para beber água. Caminhei até o lago, na certeza de querer ver a minha imagem nele refletida. Debrucei-me sobre as margens. Bebi um pouco da água, era saborosa, fresca, pura. Molhei com as minhas mãos o meu rosto. Olhava-me no espelho das águas, quando uma outra imagem formou-se no reflexo das mesmas. A imagem tremia com o movimento das águas. Mas podia ver o corpo de um homem, um rosto a olhar-me. Uma beleza que jamais vi em revistas ou filmes. Levantei-me, vi atrás de mim o homem da imagem nas águas. Sorria-me com um sorriso quase ingênuo, talvez puro. Olhei para o seu corpo, estava nu, completamente nu. Um corpo perfeito, de uma beleza que jamais encontrei nos ginásios de atletas. Trazia músculos exatos, sem nunca ter recorrido aos alteres. Levantei-me, se aquele homem não era uma miragem, com certeza que atenderia a todos os engates de jardins, sem jamais sair dali. Toquei-lhe no ombro. A pele era perfeita, passei-lhe a mão pelo peito. Olhei para ele. Era real.
-Quem és tu, um anjo? - Perguntou-me.
Um anjo? Eu, um anjo? Sim, anjo, querubim, serafim, arcanjo, o que ele quisesse. Para quê dar títulos às coisas? Eu era a ilusão que me quisessem dar, seria difícil de explicar isto?
-Porque me fazes esta pergunta?
-És um anjo? Trazes vestes, deves ser um anjo de Deus.
-Um anjo de Deus? E tu quem és?
-Não sou nada, sou apenas a imagem da obra de Deus. Mas deves saber quem sou. Não fazes parte do jardim, fazes parte do conhecimento que eu ainda não tive, mas que procuro. Fazes parte dos anjos.
-Como te chamas?
-Não sabes? Todos os anjos sabem. Todos me chamam Adão, e não sei porque, todos eles, filhos de Deus, como eu, mas mais poderosos, invejam-me como criação perfeita. Acho que a inveja deles trará um dia o meu fim.
Adão. O jardim não era o Trianon? Olhei à minha volta. Tudo era perfeito, a harmonia da paisagem confundia-se com os animais que passeavam mansamente pelo jardim. Não, definitivamente aquele homem era por demais perfeito para ser um de nós. O seu corpo trazia a beleza divina, sim, agora percebia a inveja dos anjos que queriam ser como Adão. A beleza da criação de Deus ainda perfeita. O corpo como símbolo de beleza, não de desejo. De repente senti-me envergonhado por trazer roupas. As roupas traziam-me o pecado, trazia-me a traição àquela perfeição da obra de Deus.
-Sim, em parte tens razão, não sou um anjo, mas sou o resultado da luta dos anjos com Deus. Um anjo caído, porque sou o teu espelho desfocado, o teu filho mais distante, sem a importância que tens, sem a grandiosidade de ti. Olha o meu corpo. Traz marcas, é imperfeito, perecível, quase um monstro perto do teu. Olha bem o meu corpo, és tu futuramente, sou o que fizeste, sou a tua escolha. A tua liberdade diante da escolha. Mais do que tu, sou pó, porque assim mo fizeste.
Ele olhou-me. Tocou-me. Parecia sentir uma certa repugnância. Repugnância nas imperfeições dos corpos. Por mais que tentasse, não conseguia ver-se assim. Era uma visão hecatômbica diante da criação. Mas comoveu-se com a minha imperfeição. Reconhecia em mim o filho bastardo, mesmo a julgar-me indigno do seu Éden. Sorriu-me, estendeu-me a mão.
-Queres visitar o meu jardim?
-Sim, acho que é o sonho de todos nós, imperfeitos, mas filhos de uma obra perfeita.
Caminhamos pelos jardins. Mostrou-me todas as plantas, todos os animais. Disse-me dos anos de solidão que ali esteve a aprender, a fazer conhecimento com a natureza, com tudo o que estava à sua volta. Falou-me dos anos que passou a dar nome às coisas. A tudo dera um nome e um significado. Contou-me da companheira que agora habitava o seu mundo, da felicidade de ser a mais bela obra de Deus, sem talvez, aperceber-se da responsabilidade. Caminhamos até uma árvore. Ali encontramos um pássaro morto. Um melro. Ele debruçou-se sobre o cadáver do pássaro, apanhou-o nas mãos. Dedos longos, elegantes, onde o cadáver da ave quase desaparecia entre as linhas das mãos. Depois enterrou o corpo da ave ali, perto da árvore.
-Viste aquela ave?
-Sim, era bela. Gosto das aves.
-Nela já não havia o sopro de vida, a sua alma estava morta. É assim que acontece com todos os animais. Vês a árvore onde a enterrei?
-Sim.
-É a árvore da vida. Sou imortal, por este motivo sou diferente de todas as almas viventes. Aos animais não foi concedida a imortalidade. Se comer do fruto da árvore da vida, também eu morrerei, serei igual aos outros animais.
-Então tens conhecimento do que é a morte?
-Sim, vejo a morte todos os dias a abraçar os animais que ladeiam o Éden.
-Gostas de viver?
-Gosto, sou feliz, viver é ser feliz. Para que morrer se os sopros de todas as promessas percorrem os meus sentidos? Aprendo a sabedoria todos os dias. Às vezes tenho pressa, mas se tenho a eternidade, para que a pressa? Dizem que se comer da árvore da vida morro, mas dizem-me também, que saberei todos os segredos do mundo. Às vezes tenho fome do saber, por isto tenho medo da minha curiosidade ante ao que me é oculto.
-Não te preocupes, ainda somos assim, cheios de pressa, talvez por não termos a eternidade como a tens tu, para nós ela é apenas uma promessa. Mas somos tão imperfeitos que não acreditamos nas promessas, temos pressa de sabermos dela, mas, quanto mais pressa nós temos, mais próximos do fim caminhamos. Se tu que és perfeito tens pressa em abraçar a imperfeição, que posso fazer se não esperar pela eternidade de Deus?
Caminhamos por várias horas. Por fim o meu corpo cansou-se. Encostei-me a uma árvore e dormi. Não sei quanto tempo, quantas horas, só sei que dormi. Dormi no Éden, como um errante cuco, a invadir ninhos que não são seus. Acordei com alguém a me sacudir os ombros. Era Adão. Trazia no rosto um ar pesado. Olhei para ele e já não vi o seu sexo. Estava escondido, fazendo dele não um símbolo de beleza, mas um símbolo de desejo. Agora que não via o seu sexo, em mim um desejo louco ardia, queria vê-lo. Então me apercebi que ele já não era perfeito, já era como eu. Trazia o pecado no sexo, ladeado pela serpente, não pela pureza.
-O que aconteceu? - Perguntei-lhe.
-Temos que partir, fomos expulsos do jardim. A minha sede de conhecimento levou-me a ter pressa. Comi do fruto da árvore da vida. Agora fui amaldiçoado. Traí toda a obra do Criador. A sua obra era perfeita, mas eu a fiz imperfeita. Tornei-me apenas uma peça no jogo de Deus e de Satanás. Tenho pena de deixar o jardim, mas não posso aqui ficar. O meu sangue já traz a morte como herança. Manchei o meu sangue, está contaminado pela mortalidade dos sonhos. Perdi a eternidade para mim e para os meus descendentes. Nada deixarei de mais marcante aos meus herdeiros do que a morte. Eu fui perfeito porque fui gerado do pó, não do ventre que traz os genes da morte. Vou-me embora, para longe do jardim.
-E agora?
-Agora? Terás que esperar outro homem perfeito. A lei é sangue por sangue. Enquanto não for derramado o sangue do homem perfeito, teremos que expiar o pecado através de oferendas do sangue dos animais. Mas o sangue de um animal não é perfeito. Não basta, acalma a ira de Deus, mas não basta na lógica exata da sua lei, do seu senso de justiça. Agora somos apenas dignos da sua piedade, portanto quem é digno de piedade contenta-se com as sobras que lhe são oferecidas. Agora teremos que nos contentar com as sobras de Deus, somos apenas pobres mortais a não adorá-lo, mas a clamar pela sua misericórdia. Deus foi feito para ser amado, porque é amor, não para ser incomodado com lamúrias de alguém digno de piedade. O que fiz da curiosidade de obter sabedoria? Já não me achas belo, pois não?
-Ainda és o mais belo de todos. Mas já não és o que eu vi há pouco. Não, mudaste, tornaste-te mais um, causas-me desejo, não admiração. És como eu, agora és como eu.Assim partimos, ele seguiu uma direção e eu outra. Não sei onde foi dar o seu caminho, mas já sabia do resultado. Caminhei um pouco e fui sentar em um banco do jardim que já era o Trianon. Pessoas passavam por mim, com perfumes suaves, um cheiro atraente, o sexo escondido entre roupas que contornavam a promessa do corpo. Sim, por mim passavam os filhos de Adão. Tão obcecados pela perfeição dos corpos, pela pressa do conhecimento das verdades, pelo desajuste do desejo. Mas os que estavam escritos na eternidade de Deus, só Ele sabia. Nós, tal qual Adão, desfilávamos nossos corpos sem a grandiosidade de Deus.


Conto: Jeocaz Lee- Meddi
Fotografias: Paulo César (1 - One of the Angels, 2 - Orion e as Saudades, 3 - Alma por Inteiro, 5 - Life Can Be Strange); Guilherme Santos (4 - Os Homens Morrem no Chão), Nuno Manuel Baptista (6 - S/T) e DDiArte (7 - Laocoonte)
publicado por virtualia às 02:11
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