Sábado, 30 de Maio de 2009

RETRATOS DO MUNDO CONTEMPORÂNEO

 

 

Se as palavras descrevem os acontecimentos, a imagem resume todas elas, e muitas vezes o silêncio da película atinge todos os universos da comunicação. Com a evolução da técnica fotográfica, uma nova arte tomou o mundo nos fins do século XIX, consolidando-se no século XX.
Em um mundo cada dia mais globalizado, a imagem adquiriu dimensões de linguagens jornalística e artística, criando verdadeiros emblemas. A história recente e de todo o século XX pode ser contada através da imagem. Muitas fotografias tornaram-se ícones do século que foram feitas, como a de Che Guevara, feita por Alberto Korda, em 1960, que nos tempos da Guerra Fria era símbolo dos militantes de esquerda e, nos tempos da globalização, tornou-se uma das imagens mais vendidas e usadas na comunicação, ironicamente, a imagem do líder guerrilheiro é hoje um dos principais símbolos do consumismo capitalista. Outra imagem ícone é a fotografia de Albert Einstein mostrando a língua para a câmera, feita por Arthur Sasse.
Outras imagens gravaram momentos históricos que chocaram o mundo, mostrando uma face muitas vezes camuflada por guerras ou por regimes ditatoriais. A Guerra do Vietnam deixou imagens dramáticas, como “A Menina Napalm”, de Nic Ut, que mostra a dor de uma menina correndo nua depois de ter a casa bombardeada por napalm, ou a “Execução em Saigon”, de Eddie Adams, focando um homem tendo uma arma apontada para a cabeça, momentos antes de ser executado.
Seja qual for a imagem, o seu efeito diante das pessoas é que irá determinar a sua perenidade. Aqui, cinco imagens desnudam um mundo, às vezes cruel, mas que diante da tragédia, deixa a emoção fluir e registrar as suas mazelas. Seja na Ásia, na Europa, na África ou na América, as imagens trazem um retrato denso, às vezes cáustico, um retrato do planeta que o homem faz.

Mãe Migrante, de Dorothea Lange

Mãe Migrante (Migrant Mother). – Dorothea Lange. – Fotografia feita em Nipomo, Califórnia, entre fevereiro e março de 1936. A imagem de Florence Owens Thompson, uma mulher retirante, e dos seus sete filhos, tornaram-se o símbolo da miséria provocada pela grande depressão de 1929.
A miséria dos catadores de ervilhas, dos trabalhadores do campo, é refletida nos olhos de Florence Owens Thompson, aqui amparando nos ombros dois dos seus sete filhos e um terceiro nos braços. A ambição humana explodira a Bolsa de Nova York em 1929, levando o mundo à miséria e à fome. A mulher fotografada traz no rosto o semblante latente da fome, ainda assim, demonstra uma dignidade pulsante, uma força que a faz sobreviver às hostilidades de um mundo cáustico em seu capitalismo desmedido.
Não é a mulher que posa para a fotografia, e sim a mãe, um ser totalmente desprovido das vaidades femininas, com as mãos maltratadas, feitas para afagar a prole no momento da fome. As rugas na testa e em volta dos olhos iluminam a madona, apagando a Eva que um dia transitou nua pelo paraíso de si mesma, a mulher que sobrevive das aves que os filhos caçam, que mora em uma barraca coberta por lona. Aos trinta e dois anos, Florence Owens Thompson traz as marcas profundas do seu tempo, se a juventude esvai-se com a fome que a assombra, a sua beleza agreste traz toda a profundidade do mundo.
Mãe Migrante” não nos revela a luz de uma imagem de um país africano, asiático ou do nordeste brasileiro, mas do país mais poderoso e rico do mundo, que na perseguição ambiciosa dos especuladores financeiros, gerou a mais profunda depressão e miséria. A imagem correu os Estados Unidos e o mundo, transformando-se no símbolo da depressão americana. Curiosamente, em 2008 os especuladores financeiros continuam a jogar sobre o mundo a sombra do colapso e da miséria, frutos da ganância de Wall Street.

Criança Sudanesa Vigiada pelo Abutre, de Kevin Carter

Criança Sudanesa Vigiada pelo Abutre. – Kevin Carter. – Fotografia feita no Sudão, em 1993. O fotógrafo registra o momento que uma menina, debilitada pela fome, luta para chegar a um centro de alimentação, quando é observada e perseguida por um abutre. A fotografia que correu o mundo, chocando a todos pela crueza da imagem e por uma certa frieza do fotógrafo em esperar vinte minutos para que o abutre abrisse as asas em sinal de ataque, em vez de ajudar a criança. Kevin Carter ganhou o Prêmio Pulitzer de melhor foto jornalismo, em 1994.
A imagem dantesca da fome paira por todos os ângulos da fotografia. O homem, aqui na figura de uma menina, é reduzido à miséria absoluta. Esquelética, famélica, a criança luta com as últimas forças que lhe restam, na tentativa de chegar a lugar algum. O abutre, em seu instinto animal, fareja a morte, vendo na criança a sua alimentação. É a volta à condição primitiva da sobrevivência, em pleno século da tecnologia. O abutre e a criança, a miséria e a fome, uma luta que se torna desigual diante da debilitação física da menina, mas o abutre não percebe a profanação humana, tão pouco a sua miséria, para a ave de rapina, a criança é apenas um animal prestes a morrer, a ter a carcaça devorada pelas feras da savana africana.
Se para o abutre não há culpa, para nós, pertencentes ao gênero humano, todas as culpas vêm à tona diante da tragédia humana que se evidencia na imagem. Impossível ficar indiferente, não odiar a servidão humana, as injustiças sociais,a guerra, o fotógrafo que se detém, primeiro para registrar o momento, depois para perceber o ser humano que naquele instante, vale menos do que um abutre. Se a culpa da imagem nos impregnou a alma, também Kevin Carter não suportou carregar consigo este momento tão cáustico, suicidando-se, aos trinta e três anos, em 1994, quatro meses depois de receber o Prêmio Pulitzer.

Mulheres Velam Elshani Nashim, de Georges Merillon

Mulheres Velam Elshani Nashim. – Georges Merillon. – Fotografia feita em Nogovac, Kosovo, na antiga Iugoslávia, em 28 de janeiro de 1990. No dia anterior, uma manifestação que protestava contra a decisão da Iugoslávia de abolir a autonomia da província do Kosovo, cuja população era em sua maioria albanesa. Os protestos transformaram-se em motim, que sofreu forte repressão do Estado. Elshani Nashim foi morto durante os protestos. Eleita como a fotografia do ano, em 1990, pelo World Press Photo.
A fotografia mostra a dor da mulher diante da perda. São elas que velam o morto, como carpideiras das injustiças, pranteiam o ente querido, transformado em cadáver diante da vida, em mártir ante à história. Se o homem gera as guerras, os ódios, as ideologias, cabe às mulheres o preço a ser pago. No centro da fotografia, uma mulher demonstra a dor em todo o seu esplendor, sendo amparada pelas outras. Do lado direito da imagem, a mais jovem das mulheres não verte lágrimas, seu olhar quase que atravessa a objetiva, na intensidade da dor, ela demonstra sofrimento e ódio. É a mulher a conviver com as injustiças humanas, a ser a maior vítima da insensatez da história.
Na imagem não há espaço para os homens, o único que aparece está morto. São as mulheres as personagens principais, afinal cabe a elas chorar os mortos, aos homens resta chorar as ideologias perdidas. Mulheres de vestes camponesas, das aldeias do interior, neste momento tornam-se universais. Mulheres européias, que longe dos centros urbanos do continente e dos seus holofotes, parecem esquecidas no tempo.
A fotografia de Georges Merillon era apenas o prólogo do que estava por vir. A Europa, em 1990 comemorava o fim da Guerra Fria, a queda do muro de Berlim, mas ali perto, na Iugoslávia, uma grande implosão causaria uma guerra que os europeus julgavam impensável depois da Segunda Guerra Mundial. Mais do que um presságio, Merillon registrou na sua fotografia a síntese da dor que viria, tirando para sempre a Iugoslávia do mapa, fragmentada em sangue e em vários países independentes.

Mulher Chora os Mortos pelo Tsunami, de Arko Datta

Mulher Chora os Mortos pelo Tsunami. – Arko Datta. – Fotografia feita na Índia, em 28 de dezembro de 2004, quando um tsunami devastou grande parte dos países do sudeste asiático, sendo responsável pela morte de milhares de pessoas. Eleita a melhor fotografia de 2004 pelo World Press Photo.
Não é só o homem o causador das suas tragédias, também a natureza tem os seus momentos de revolta contra a humanidade, mostrando-se indomável e sem culpas. O tsunami veio do mar, atravessou a terra e ceifou vidas. Após a catástrofe, é o momento de procurar pelos sobreviventes e prantear os mortos. Aqui a mulher é abatida por um momento de desespero e dor, deixando-se tombar no chão, prostrando-se para o infinito de Deus, como se tentasse um consolo, uma redenção que redimisse o vazio, ou talvez, mostrar-se pequena diante do nada do mundo. De costas, sobre a terra molhada pela onda e pela tragédia, ela apenas lamenta as perdas, para depois poder enxergar-se como sobrevivente.
O fotógrafo poderia focalizar a objetiva apenas na mulher, terminando ali o registro da imagem, mas ele percorre um pouco mais do espaço, mostrando um cenário desolador ao apresentar o pedaço do braço de uma vítima. Este detalhe amplia a imaginação, dando a dimensão exata da tragédia, pois ali está não um braço, mas um cadáver, o que nos remete para todos os outros cadáveres ocultados. Também um chinelo solitário faz com que nos lembremos que ele calçou uma vítima que a onda levou. Se a dor da mulher é latente, latejada é a morte no braço cheio de hematomas que se nos salta aos olhos.

Menina Afegã, de Steve McCurry

Menina Afegã (Afghan Girl). – Steve McCurry. – National Geographic. – Fotografia feita em 1984, de uma menina afegã, no acampamento de refugiados Nasir Bugh, no Paquistão. Fugitivos da Guerra do Afeganistão, ocasionada pela invasão soviética (1979-1989), que gerou o êxodo de várias famílias para as fronteiras do país vizinho.
No meio dos fugitivos da guerra, estava esta menina de doze anos, que trazia uma beleza bíblica, de um exotismo singular. Rosto lavado, sem maquiagens, delineado pelos enormes olhos verdes, que brilhavam como uma esmeralda rara, lapidada pelos mistérios de um povo marcado por guerras e pela fuga constante da destruição, da fome e da morte.
Sobre a cabeça um lenço vermelho como único adorno, que apesar de roto, com profundos rasgos, faz o contraste com o verde dos olhos, trazendo um magnetismo bíblico à fotografia, realçando a beleza agreste, quase extraída dos livros dos profetas, traduzida pelos ventos da guerra.
A menina mostra a mulher que se lhe desabrocha, traz o impacto de um olhar fulminante, que não se intimida com a objetiva, que no momento do registro, está pronta para eternizar o seu grito silencioso. Só os olhos gritam. E neles há uma beleza de verdades tão profundas, que se irá difundir pelo mundo e conquistar milhões de pessoas. É um momento único de uma beleza que se irá, assim como o seu país, desgastar rapidamente pela poeira do sofrimento e dos ódios seculares.
A fotografia seria capa da revista National Geographic de junho de 1985, tornando-se a mais famosa da sua história. O impacto da beleza da imagem jamais saiu da lembrança das pessoas de todo o planeta, celebrizando para sempre Steve McCurry. O fotógrafo perseguiu anos pistas que o levassem à menina da fotografia, ansioso de saber o seu nome, o que lhe sucedera, que caminhos seguira. A resposta viria quase duas décadas depois. Em 2002 McCurry e uma expedição da National Geographic, partiram para as fronteiras do Afeganistão e do Paquistão, em busca da famosa menina. Encontraram-na com trinta anos, descobrindo que se chamava Sharbat Gula. Encontrada, ela veio, pela segunda vez, a ser capa da National Geographic, em abril de 2002. Da beleza de outrora nada restara, Sharbat Gula era uma mulher envelhecida, marcada pela guerra civil que se sucedeu após o fim da invasão soviética ao seu país. O brilho latente dos seus olhos verdes já não existia.
 
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Sexta-feira, 29 de Maio de 2009

O REGICÍDIO

 

 

A 5 de outubro de 1910 era proclamada a República em Portugal, pondo fim a uma das monarquias mais antigas da Europa. A jovem República herdara um país empobrecido, longe dos áureos tempos das grandes navegações. Além de uma economia precária, trazia nas costas o sangue derramado do penúltimo rei português, nódoa que jamais sairia do cenário histórico português.
No dia 1 de fevereiro de 1908, sucedeu-se na Baixa Lisboeta, entre o Terreiro do Paço e a Rua do Arsenal, uma das maiores tragédias da história da monarquia portuguesa, o assassínio do rei Dom Carlos e do príncipe Luis Filipe. Vítima da sua política déspota e ditatorial, o monarca suscitou o ódio popular, incitando sobre si, as revoltas e várias armas apontadas. Dom Carlos retornava de uma temporada no Alentejo, quando foi surpreendido por revoltosos militantes dos Dissidentes e dos Republicanos, cerca de oito (ou dezoito, conforme algumas versões) começaram a atirar sobre o landau que trazia a família real. Dom Carlos tombou sob os tiros da Winchester 351 de Manuel Buíça, e o filho, o infante Dom Luís Filipe, sob os tiros de Alfredo Costa. A rainha Dona Amélia, usando as flores que recebera de boas vindas a Lisboa, batia com elas no rosto dos atiradores, em vão, tentando defender a família. Minutos depois as flores caíam no chão, manchadas de sangue, assim como a monarquia, que dava os seus últimos suspiros. Nas ruas da cidade, o sangue real lavava todos os pecados do reinado de Dom Carlos, o regicídio abria as portas para a República, fechando de vez as da Monarquia.

O Mapa Cor-de-Rosa, Primeira Derrota do Reinado de Dom Carlos

O reinado de Dom Carlos teve início em 1889, quando sucedeu ao pai, Dom Luís. Desde que ascendera ao trono, o monarca fora contestado, sendo responsabilizado por todas as mazelas de Portugal.
O grande desgaste que atingiria para sempre a imagem do rei diante dos seus súditos, viera de uma questão com a Inglaterra, em 1890. O país possuía colônias no sul da África, entre os oceanos Atlântico e Índico, para uni-las, o governo português traçou o chamado Mapa Cor-de-Rosa, que consistia nos territórios de Angola, Moçambique, e o espaço entre eles, chamado de Chire. Portugal apresentou o mapa aos países aliados, tomando para si o direito aos territórios. A Inglaterra não gostou do mapa, que a obrigava a passar pelos territórios lusitanos para unir as suas colônias africanas de norte a sul. O império Britânico deu um ultimato a Portugal, que abandonasse imediatamente a região do Chire, caso contrário declarar-lhe-ia guerra. Sem saída, impossibilitado de enfrentar tão poderosa nação, Dom Carlos cedeu às pretensões inglesas, perdendo com isto, a popularidade, fazendo com que crescesse os simpatizantes dos republicanos, que, aproveitando-se da insatisfação popular, tentariam a implantação da República no Porto, em 31 de janeiro de 1891.

João Franco é Nomeado Presidente do Concelho

O fim do século XIX foi caracterizado pela decadência da Monarquia e pela acentuada corrupção eleitoral, promovida por dois partidos, o Progressista e o Regenerador. Estes partidos revezavam-se no poder, tendo como juiz o próprio rei, que quando via terminar o mandato de um deles, chamava o outro, por este motivo, os dois partidos eram conhecidos como “rotativos”. Esta manipulação real, consentida pelo oportunismo partidário, teve a harmonia quebrada em 1901, quando João Franco abriu uma cisão no Partido Regenerador e, em 1905, quando José Maria Alpoim abriu outra cisão no Partido Progressista, formando a Dissidência Progressista. Diante das divisões, do desgaste, da corrupção e dos escândalos políticos, o parlamento deixou de funcionar a partir de 1904.
Marcada pela letargia do parlamento, a primavera de 1905 trouxe grandes tumultos e agitações que selariam de vez o futuro do rei e a sua integridade física. De 9 a 13 de abril, as guarnições dos cruzadores “D. Carlos” e “Vasco da Gama”, sob a inspiração de José Maria Alpoim, revoltaram-se, produzindo um movimento que tinha como meta pôr o infante Dom Luís Filipe no trono, no lugar do pai.
Não bastassem as guarnições revoltosas, a 4 de maio, o republicano Bernardino Machado promoveu uma manifestação que foi severamente dispersada pela polícia, deixando dezenas de feridos. No Campo Pequeno, o republicano Afonso Costa, na presença da rainha Dona Amélia, recebeu uma grande ovação. Incomodado pelas agitações cada vez mais contundentes, o presidente do Conselho, o regenerador Hintze Ribeiro, pediu ao rei que suspendesse indefinidamente a sessão legislativa, até que se estabelecesse a normalidade. Diante de uma proposta de se instaurar uma ditadura, Dom Carlos recusou a proposta do presidente do conselho. Em 19 de maio, nomearia para o cargo de Hintze Ribeiro, o exaltado João Franco Castelo-Branco.

Decreto Arbitrário e Ditatorial

João Franco demonstrou-se um desastre para o combalido governo de Dom Carlos. Sob os arroubos da exaltação, chegou prometendo o fim da política de “rotação”, demonstrando desde sempre, contumaz inimigo dos “rotativos”. Prometeu formar um genuíno parlamento, eleito sem comprometimentos. Diante de uma política viciada, João Franco propunha, inconscientemente, uma explosiva situação revolucionária. Para liquidar os “rotativos”, ele precisava de um reino ditatorial para chegar ao reino da liberdade. Não podendo acabar de vez com a “rotação”, uniu-se a um dos partidos que dela fazia parte, os Progressistas. Mas a inabilidade e a falta de competência de Franco para liquidar os “rotativos”, fez com que estes organizassem manifestações contra Dom Carlos, incitando para isto, populares em Arganil, na Régua e em Vila Real. Por fim, o rei tornou-se alvo das difamações, maledicências e ódios por todo o reino.
Tentando fazer uma eleição menos viciada, João Franco viu, em 1906, a vitória de quatro republicanos ao parlamento: Antonio José de Almeida, João de Menezes, Afonso Costa e Alexandre Braga. O presidente do Conselho governou sofrendo o obstrucionismo nas Câmaras e, com profundas campanhas difamatórias da imprensa, gerando cada vez mais desafetos para o seu governo e para o rei.
Em 1907, bastante enfraquecido, João Franco viu-se ameaçado pelos Progressistas, que tramavam para substitui-lo. Para impedir a sua derrocada, Franco pôs somente aliados no governo.
Terminada a união com os Progressistas, sem alianças, restava a iminência de uma ditadura, que combatesse os “rotativos”. A 8 de maio de 1907, Dom Carlos assinou um decreto que dissolvia a Câmara dos Deputados, sem a prévia consulta do Conselho de Estado e sem que se marcassem eleições, conforme determinava a Constituição. Estava instaurada a ditadura absolutista de Dom Carlos e do seu aliado, João Franco.

Corrupção e Conspirações

Ainda no fatídico ano de 1907, explodiu uma greve acadêmica em Coimbra, contestando as arbitrariedades do governo, que logo se alastrou por todo o país. A situação tornou-se mais delicada quando João Franco, para evitar os constantes ataques dos jornais republicanos e dos Dissidentes Progressistas, faria aprovar uma nova lei repressiva, que viria a ser conhecida como “a lei contra a imprensa”.
Em novembro de 1907, o Dissidente Antonio Centeno, em discurso na Câmara dos Pares, mencionou que havia contas a liquidar entre a administração da Casa Real e o Estado, ao que Franco confirmava, espontaneamente, que Dom Carlos recebera adiantamentos ilícitos do Estado à Casa Real. Imediatamente foram espalhados boatos de que o rei roubava o Estado. Para deteriorar ainda mais a situação, o rei declarava arrogantemente ao jornal parisiense “Le Temps”, que era o responsável pela dissolução da Câmara, e que quando ele e Franco achassem conveniente, convocariam as eleições.
A questão dos “adiantamentos” não saiu mais da pauta da imprensa e das calorosas afrontas no Parlamento. Portugal era um país empobrecido, cada vez mais isolado nas questões políticas européias. Para uma população que se via cada dia mais carente financeiramente, defrontar-se com os boatos de uma Monarquia corrupta, fazia com que aumentasse a simpatia pelos republicanos e desprezassem o seu rei, que se tornara um absolutista, recorrendo a uma forma repressiva e ditatorial de governar. Se a verdade sobre a corrupção de Dom Carlos pode ser historicamente contestada e provada a sua inocência, a sua forma de ditador não o redimiu, pelo contrário, tornou-se historicamente inquestionável.
Se a popularidade do rei caía vertiginosamente, os movimentos conspiratórios contra o seu reinado ascendiam espetacularmente. No princípio de novembro de 1907, a conspiração dos republicanos e dos Dissidentes Progressistas estava pronta para travar a luta definitiva. Armaram-se com carabinas e revólveres, começaram a tramar uma revolução que culminasse com o fim da Monarquia e a proclamação da República. Na véspera da intentona republicana, marcada para o dia 28 de janeiro de 1908, os seus dirigentes, entre eles João Chagas, José Maria Alpoim, Afonso Costa, Antonio José de Almeida, o visconde da Ribeira Brava, João Pinto dos Santos e Egas Moniz, distribuíram carabinas winchester e revólveres aos grupos de aliados civis.
Mas a intentona foi descoberta antes que se concretizasse, levando os seus principais conspiradores à prisão. No meio da confusão, grupos de aliados civis continuaram armados, entre eles Manuel Buíça, que herdara uma Winchester 351, e Alfredo Costa, herdeiro de um revólver. Os dois dariam os tiros fatais que matariam o rei Dom Carlos e o seu filho Dom Luís Filipe.

O Regicídio

Para punir os conspiradores, Dom Carlos, a 31 de janeiro de 1908, assinou um decreto que autorizava o governo a expulsar do reino e degredar para as colônias ultramarinas, os culpados de crimes contra a segurança do Estado. Um jornal, “O Mundo”, descobriu uma cópia do decreto e publicou-o, incitando a revolta contra o rei. Falsamente, o jornal, de tendência republicana, concluía que Egas Moniz, Afonso Costa, Ribeira Brava, João Chagas e Antonio José de Almeida seriam deportados para Timor, fato que nunca estivera nos planos de Dom Carlos.
Era costume da família real passar o mês de janeiro em Vila Viçosa, Alentejo. Quinze dias antes do retorno oficial, a rainha Dona Amélia quis voltar, mas o rei recusara. João Franco incentivou o rei a lá permanecer, sua volta antecipada poderia demonstrar fraqueza diante dos acontecimentos conturbados, segundo o presidente do Conselho, era preciso mostrar que tudo corria sem preocupações.
Assim, findo o mês de janeiro, a família real regressou para Lisboa. No caminho de volta, um descarrilamento do comboio, em Casa Branca, atrasaria algumas horas a chegada à capital.
No fim da tarde de 1 de fevereiro, a família real chegava à estação fluvial do Terreiro do Paço. O visconde de Asseca, estribeiro-mor, indagou ao rei se preferia fazer o trajeto até o Palácio das Necessidades de automóvel ou de carruagem aberta, fatalmente Dom Carlos escolheu a carruagem aberta, o landau. À espera do rei estavam o infante Dom Manuel, que retornara mais cedo do Alentejo, Dom Afonso, João Franco, as damas palatinas, os cortesãos e os fiéis, além de alguns políticos. Por volta das cinco horas da tarde, Dom Carlos subiu na carruagem aberta, ao seu lado, à frente, iam os dois infantes e Dona Amélia. Quando o landau atravessava o meio da passadeira no lado ocidental do Terreiro do Paço, um homem de gabão saiu da placa central, extraiu uma carabina da capa, ajoelhou-se e atirou. Era Manuel Buíça, o seu tiro atingiu o rei, partindo-lhe a coluna, matando-o instantaneamente. O landau foi cercado por dois outros homens, que abriram fogo atingindo a carruagem e as paredes do Ministério da Fazenda. Da arcada surgiu Alfredo Costa, que empunhando um revólver Browning FN, calibre 7.65, saltou para o estribo do landau, disparando dois tiros em Dom Carlos, a esta altura, já morto, o rei foi atingido no antebraço e na omoplata direita. O infante Dom Luís Filipe levantou-se, tentando sacar de um colt, calibre 38, que trazia consigo. Alfredo Costa atingiu o príncipe com uma bala no peito. Ferido, o príncipe respondeu com um tiro, atingindo Costa, que rolou para o chão. Manuel Buíça continuava a disparar sobre Dom Carlos, finalizando com um tiro letal na cabeça de Dom Luís Filipe. Dona Amélia desceu do landau, e com um ramo de rosas que recebera como presente de boas-vindas, fustigou o rosto de Alfredo Costa, forçando-o a parar de atirar na sua família.
Após alguns minutos fatídicos, a escolta do rei reagiu. Policiais e soldados convergiram contra Alfredo Costa e Manuel Buíça, este último ainda acertou em um soldado e no tenente Figueira. O tenente desferiu um sabre nas costas de Buíça. No fim da tragédia, jaziam o rei Dom Carlos, o príncipe Dom Luís Filipe, os regicidas Manuel Buíça e Alfredo Costa. A carruagem do rei refugiou-se na Rua do Arsenal. Ali, no empedrado da rua, os corpos reais foram estendidos, molhando o chão com uma grande poça de sangue. Diante dos cadáveres do marido e do filho, Dona Amélia vociferou para João Franco: “Veja a sua obra”.
Diante dos corpos, uma multidão de pessoas apareceu, tratando Franco e os ministros com desprezo e repulsa.
Levada ao local, a rainha Dona Maria Pia, viúva do rei Dom Luís, mãe de Dom Carlos, disse a Dona Amélia: “Alors, on a tué mon fils.” A pobre mulher ainda não sabia da morte do neto. Desolada, Dona Amélia respondeu-lhe, revelando-lhe a morte do príncipe: “Et lê mien aussi.” A rainha-mãe resignou-se, sentando-se, sem dizer mais uma palavra, ou verter uma lágrima. À noite, dois landaus levaram os corpos para o Palácio das Necessidades. O crime trouxe o medo e o terror para todos os nobres do reino, receosos de serem os próximos.
Após a tragédia, que passou para a história como o regicídio, Dom Manuel, segundo na sucessão de Dom Carlos, tornou-se o último rei de Portugal. Seu reinado terminaria no dia 5 de outubro de 1910, com a proclamação da República. O último rei português não deixou descendência, sendo a linha sucessória passada para o ramo miguelista (descendentes de Dom Miguel, irmão de Dom Pedro IV de Portugal e I do Brasil). Quando Dom Carlos morreu, morria também qualquer vínculo com o futuro da sua descendência. Dom Manuel II preservou a prole do malogrado rei até a sua morte no exílio, em 1932. Dom Carlos, assim como o seu reinado, deixou a esterilidade do mundo como herança. Um século depois da sua morte, a República portuguesa, hoje parte de um regime de cunho democrático, ainda carrega nas costas um dos preços que teve que pagar para ser proclamada, o sangue derramado na Rua do Arsenal, o regicídio.
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Quinta-feira, 28 de Maio de 2009

PROMETEU E PANDORA, DA CRIAÇÃO AOS MALES DO HOMEM

 

 

Milênios antes de o homem estudar a ciência da vida, as religiões explicaram de forma mística a criação da terra, da vida e da humanidade, numa resposta direta à imensa interrogação que se faz sobre o espaço humano dentro do universo, e a sua existência perecível, na eterna luta da vida e da morte. Se nos conceitos judaico-cristãos, Deus é único e supremo criador do universo e do homem, a religião da Grécia antiga via em Prometeu, um Titã da segunda geração, o criador da humanidade.
Feito para viver no jardim do Éden, Adão é a imagem do criador, ser inteligente e livre para escolher o seu caminho. Se no Gênesis o primeiro homem é feito do barro, na mitologia grega também. Prometeu esculpiu o homem do barro misturado com as suas lágrimas. Adão é feito à imagem de Deus, também o homem de Prometeu é feito à imagem de uma divindade. Se Adão é único, e da sua costela surge a mulher, com quem vai procriar, Prometeu maravilha-se com a sua obra e esculpi outros tantos homens, cada um à imagem das divindades. A sua obra, ao contrário da do Deus dos judeus, não é perfeita, pois esses homens são desprovidos de uma inteligência que lhes construísse uma identidade da alma. São seres silvícolas e sem vontade ou pensamento. É preciso que Atena (Minerva), deusa da sabedoria, jogue sobre a criação de Prometeu gotas do néctar divino, para que eles possuam uma alma, e quando a adquirem, não sabem o que fazer com ela.
Se Deus dá a sabedoria divina para Adão por amor à criação, Prometeu rouba o fogo dos deuses, o símbolo da sabedoria humana, não por amor, mas por vingança aos deuses. Instigado por Eva, Adão come o fruto da sabedoria e perde o Éden, também uma mulher, Pandora, será quem trará na sua caixa todos os males do mundo, abrindo-a para a humanidade, que perde a superioridade intelectual alcançada quando a consciência humana, através do conhecimento do fogo, é libertada da submissão aos deuses. Portadores de todos os males da caixa de Pandora, os homens voltam aos deuses, rogando-lhes boa colheita, boa saúde e boa morte.
Os mitos de Prometeu e Pandora, antagônicos, mas unidos através da concepção da criação humana, representam o homem, ser pensante e inteligente (por parte de Prometeu) e às limitações do seu corpo, exposto aos males físicos e intelectuais (herança de Pandora), que os fazem finitos diante da imortalidade dos deuses.

Paz Entre os Deuses no Reinado de Zeus

Para a cultura judaico-cristã, Deus criou a terra, os animais e por fim o homem. Para os gregos antigos, a criação do mundo deu-se com uma explosão de vida dentro do Caos, que originou Gaia, a Terra, e Eros, o amor. Gaia concebeu Urano (Céu), com quem se uniu e jamais deixou de conceber, sendo os seus filhos os responsáveis pelas forças indomáveis da terra, como os vulcões, os terremotos e os maremotos. É da união entre Gaia e Urano que nascem os Titãs (doze irmãos que ajudam o pai a governar o mundo). Cronos (Saturno), o deus do tempo, o mais poderoso dos titãs, revolta-se contra o pai, Urano, amputando-lhe os testículos, destronando-o da sua força genetriz, tornando-se o novo senhor dos deuses. Sendo o deus que tudo devora, sem encontrar um equilíbrio, também Cronos será destronado por um de seus filhos, Zeus (Júpiter). Ao destronar o pai, Zeus torna-se o senhor absoluto dos deuses, através dele o mundo organiza-se, é a vitória da ordem sobre a desordem. Zeus estabelece o princípio divino da espiritualidade e reinará os deuses e o mundo do alto do Olimpo. Organizado os deuses, falta a humanidade para servi-los e adorá-los.
Na luta pelo poder, Zeus travou uma guerra de dez anos contra os Titãs e os Gigantes. Vencidos, eles foram aprisionados no interior da terra. Um dos Titãs, Iápeto uniu-se à filha de Oceano, Ásia, com quem teve Atlas, Menécio, Prometeu e Epimeteu, formando a segunda geração de Titãs. Na luta dos Titãs contra Zeus, quando por ele derrotados, Atlas teve por castigado ter que carregar o mundo nas costas, enquanto que Menécio foi aprisionado para sempre no Érebo. Somente Prometeu e Epimeteu não foram castigados, por fingirem aceitar o reinado de Zeus. Mesmo a participar das assembléias olímpicas, Prometeu jamais aplacou o ódio aos deuses que humilharam os Titãs.

O Homem Surge das Lágrimas e do Ódio de Prometeu

Se a guerra sangrenta que derrotara os Titãs trouxera a paz entre os deuses e o fim das disputas entre eles, já não havia quem pudesse desafiar a nova ordem olímpica. Para que se quebrasse esta harmonia, Prometeu decidiu criar novos seres que se opusessem a ela. Molhou o barro com as suas lágrimas de ódio aos olímpicos e criou um ser à semelhança de uma divindade. Prometeu soprou a vida à escultura, chamando-a de homem. Gostou tanto da sua criação, que se pôs a esculpir um exército deles, todos inspirados em uma divindade. Das lágrimas e do ódio de Prometeu surgiram os homens.
Á criação, o Titã proveu da astúcia da raposa, da fidelidade do cavalo, da avidez do lobo, da coragem do leão e da força do touro. Mas a criação de Prometeu, apesar de bela, era feita da essência animal, apesar da aparência divina, era totalmente desprovida da essência dela, o que limitava as suas ações. Quando Atena (Minerva), viu tão sublime obra à semelhança dos deuses, mas com a essência e inteligência dos animais, encantou-se por ela. Amiga de Prometeu, a deusa da sabedoria despejou em um cálice o néctar divino, desceu para a terra e do cálice, pingou gotas sobre a criação de Prometeu. Imediatamente as criaturas perderam a essência animal, dotando-se da inteligência divina, adquirindo uma alma. Assim a humanidade, ao contrário dos animais, adquirira a alma divina, mas não a sua perenidade imortal.

Através do Fogo, Prometeu Torna o Homem Pensante

O homem criado por Prometeu adquirira uma alma, mas não sabia o que fazer com ela. O Titã queria uma raça que confrontasse e destruísse os olímpicos. Era preciso que se igualasse os homens aos deuses, era preciso que se lhes revelasse os segredos divinos e de si próprios. Cabia a Prometeu ensinar os conhecimentos universais à humanidade.
Zeus guardava o segredo do fogo distante da humanidade. O senhor dos deuses não via naquela criação que andava pelo mundo entre as trevas, qualquer habilidade que a fizesse mais especial que os outros seres viventes. Eram obedientes e servis aos deuses, o que agradava plenamente ao senhor do Olimpo.
Sabedor desta condição, Prometeu sentia cada vez mais a necessidade de organizar a alma humana. Um dia, ao andar pela terra, Prometeu pegou um pedaço de galho seco de um carvalho, voou até Hélios, o Sol, e encostou o galho no carro do deus, que se acendeu imediatamente. Prometeu tinha o fogo dos deuses nas mãos. Era o momento da sua vingança. Desceu à terra e entregou o fogo aos homens. Era o princípio da revelação da sabedoria à humanidade que se iria fazer mais inteligente e poderosa do que os deuses.
Na posse do fogo, os homens organizaram-se ao seu redor. Cozinharam os alimentos, forjaram inúmeros metais, aqueceram-se do frio no inverno, cozeram o barro para criar vasilhas onde pudessem guardar a água. A partir da descoberta da utilização do fogo dos deuses, a humanidade, orientada por Prometeu, floresceu no jardim dos seus conhecimentos. Já pouca diferença havia entre ela e os deuses.
Cada vez mais avançada nos conhecimentos, a humanidade aprendeu a fundir o ouro e a prata, a construir abrigos, arar a terra, proteger-se do frio. Já não precisa mais invocar proteção aos deuses, a sua sabedoria afrontava a cada dia o poder da divindade. A humanidade começava a ser feliz sem precisar dos deuses. Prometeu finalmente, criara aqueles que se oporiam aos olímpicos. Começara não uma guerra entre os imortais, mas entre deuses e homens. Os Titãs estavam vingados.

Pandora, a Mulher Feita do Bronze

Os deuses passam a temer os homens, que se expressam através da arte a raiva, o amor e o ódio, sem que precisem recorrer aos deuses. Tornam-se poderosos e cada vez mais independentes da presença divina. Esquecidos pelos homens, os deuses tramam uma vingança terrível, que lhes devolvam o poder usurpado e a submissão humana.
Zeus pede ao filho Hefestos (Vulcano), talentoso deus dos metais e da forja, que confeccione um homem de bronze, mas que seja diferente dos outros, para que possa encantá-los. Hefestos atende ao pedido, criando do bronze, a primeira mulher, bela e encantadora.
À mulher feita do bronze são dados vários presentes divinos. Afrodite (Vênus), deusa do amor, oferece-lhe uma infinita e sedutora beleza, além de encantos para enlouquecer os homens. Atena entrega à mulher uma túnica bordada que lhe cobre e realça a beleza harmoniosa do corpo. Hermes (Mercúrio), presenteia-lhe com a esperteza da língua, e Apolo confere-lhe uma voz melódica e suave. Está pronta a primeira mulher, que é chamada de Pandora, que significa “dotada por todos”. Ela estava pronta para ser enviada aos homens.
Zeus, antes de enviar Pandora aos homens, oferece-lhe uma caixa coberta com uma tampa. Dentro dela estão todos os germes da miséria humana. Assim, é enviada do Olimpo para os homens da Terra, a mulher, que trazia consigo a tentação, o símbolo dos desejos terrestres e todos os males do mundo.

Aberta a Caixa de Pandora

Quando chega a Terra, Pandora depara-se com Epimeteu, irmão de Prometeu. Ao ver tão bela criatura, o Titã encanta-se por sua beleza. Seduzido e apaixonado, ele recebe das mãos da bela mulher a caixa enviada por Zeus. Deslumbrado por tanta beleza, Epimeteu esquece-se da recomendação de Prometeu, que não recebesse nenhuma dádiva vindo do senhor do Olimpo, embevecido de paixão, nem desconfia do conteúdo caixa, abrindo-a prontamente. Subitamente, dela espalha-se um ar pestilento, os homens são afetados pelas doenças, pelas dores, pelo envelhecimento do corpo. Toma-lhes a alma a inveja, o rancor, a vingança. A essência humana, dantes pura e infinita, perde a inocência, tornando-se solitária e egoísta. Dentro da caixa de Pandora há um último elemento, a esperança, que ela deixa lá no fundo, ao fechá-la novamente. O homem perde o paraíso.
Pandora une-se a Epimeteu, criando uma nova geração de homens, desta vez vinda não do barro e das lágrimas de Prometeu, mas da união de um homem e de uma mulher. Os filhos desta união herdam a fragilidade da alma, as doenças, a miséria e todos os males que faz da humanidade a existência provisória diante da perenidade dos deuses.
Os deuses estão vingados. Através de Pandora destruíram a solidariedade entre eles, limitando o caminho vitorioso que percorreram até então. A conquista do fogo, que se fizera instrumento de transformação e progresso, passa a verter o seu lado destrutivo, que incendeia a alma humana.

Prometeu Acorrentado

Punida a humanidade, resta castigar Prometeu, que representava a consciência da humanidade e a libertação da sua mente intelectual. Zeus, mais uma vez, recorre à ajuda do artesão dos deuses, Hefestos. Pede ao divino obreiro que crie correntes que não se partam, a seguir, ordena-lhe que agrilhoe Prometeu ao cimo do monte Cáucaso. Hefestos obedece ao pai, acorrentando o Titã rebelde.
Aprisionado no monte Cáucaso, Prometeu sofre ainda, com uma águia enviada por Zeus, que lhe devora o fígado durante o dia. À noite, o órgão regenera-se, mas tão logo o sol nasce, começa a ser devorado novamente pela águia.
Prometeu vive acorrentado e a ter o fígado devorado pela águia por trinta anos. Mesmo diante de tanto sofrimento e dor, jamais pede perdão aos deuses. Sua maior dor é ver a humanidade que criara, degradar-se na sua efemeridade.
Um dia o oráculo diz a Zeus que uma terrível sorte está por se lhe abater em cima, e que só Prometeu poderia revelar-lhe que maldição seria aquela. O senhor dos deuses procura o Titã acorrentado, indaga-lhe sobre o segredo. Prometeu diz só revelá-lo quando for libertado. Sem alternativa, Zeus envia Héracles (Hércules) ao monte Cáucaso para libertar o Titã. Héracles mata a águia com uma flecha e liberta dos grilhões, o mais forte dos homens. Diante de Zeus, Prometeu revela-lhe que se esposasse a bela Tétis, o filho com ela gerado iria destroná-lo, assim como fizera com Cronos. Temeroso, Zeus entrega a bela nereida a Peleu.
Perdoado, Prometeu deseja voltar para o Olimpo, mas o castigo tirara-lhe a imortalidade, ele só poderia tê-la de volta se encontrasse um imortal que consentisse em trocar de destino com ele. O centauro Quirão, ferido pela flecha de Héracles, pede a Hades, deus dos mortos, que o deixe entrar no Érebo, consentindo em trocar a sua imortalidade com Prometeu.
Novamente imortal, Prometeu reconcilia-se com os deuses, voltando para o Olimpo, de onde observa a humanidade por ele criada, agora imperfeita, mas em paz com os deuses e com as suas limitações.

Os Mitos de Prometeu e Pandora

O mito criador de Prometeu reflete a preocupação do homem com as suas origens e diante da sua inteligência impar, que o difere do restante dos seres vivos da Terra. Prometeu era cultuado em Atenas nos altares erguidos na Academia, a famosa escola filosófica ateniense. Seus altares ficavam perto dos consagrados às Musas, às Graças, a Eros e a Héracles. Nas festas das lâmpadas, as Lampadodrimias, era venerado como divindade civilizadora ao lado de Atena e Hefestos.
Prometeu significa, em grego, “pensamento previdente”, por isto o mito é visto como o representante do despertar da consciência e princípio do pensamento intelectual do homem. É o reflexo da humanidade que se quer encaminhar para a perfeição, mas que se depara com os males e limitações da sua existência, reduzida ao nada da morte.
Pandora é a imagem da primeira mulher, vista de forma depreciativa por uma sociedade patriarcal. A mulher traria na sua essência todos os males do mundo, os homens, diante da sua sedução, perdem, assim como Adão, o paraíso e a inocência solidária. Pandora é um misto de Eva de Lilith, as primeiras mulheres da humanidade judaica. Assim como Lilith, traz os males do mundo, e como Eva, gera filhos imperfeitos, resultado da punição divina diante da ambição humana. Tanto Adão, como Epimeteu, ao acolherem a sedução da mulher, exercem totalmente o poder que têm da escolha diante da fatalidade e da rebelião.
 
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Quarta-feira, 27 de Maio de 2009

LEGAL - EXISTENCIALISMO UNDERGROUND

 

 

Os anos 1970 começam com uma geração dividida pelos acontecimentos históricos. A juventude engajada nos movimentos políticos de esquerda é cada vez mais isolada, líderes juvenis e políticos estão presos, exilados ou na clandestinidade. A juventude Flower Power que surgiu com o manifesto de Scott McKenzie com a música San Francisco, em 1967, e teve o seu apogeu em 1969 com Woodstock, lança o lema “Faça Amor, Não Faça Guerra”, incitando ao amor livre e à emancipação sexual. Esta juventude após Woodstock, vê a decadência do movimento hippie, cada vez mais voltado para o rock n’ roll e às drogas. É justamente as drogas que ceifa logo no início da década os seus ícones, Janis Joplin, Jimi Hendrix... Os Mutantes resistiram à ditadura, mas não às drogas, que prejudica alguns dos seus componentes de forma indelével, fazendo-os deixar por anos o mundo musical. Os Beatles dão seus últimos suspiros juntos. A ditadura está cada vez mais dura e fortalecida graças ao boom econômico que dá origem ao chamado “milagre brasileiro”, e à conquista do tri-campeonato mundial de futebol. Nos seus porões há gente morta e torturada. Surge uma juventude intelectual que impedida de falar e não aderindo à radicalização da esquerda ou ao Flower Power, menos atuante e mais leve, é chamada de juventude do desbunde. Aquela que tem consciência do momento vivido, mas que prefere ouvir música e curtir as praias do Brasil enquanto a ditadura não passa.
Nas malhas do desbunde e da contra-cultura, após o grito de protesto à interrupção da Tropicália em 1969, com o radical “Gal 1969”, surge o existencialista e vanguardista Legal. Constitui um retrato vivo do início da década de 1970, o que lhe dá a condição de ser o álbum mais anos setenta de Gal Costa. Tem a cor daqueles tempos e consegue não ser datado! O que é bom prevalece, sem ficar preso à época que o gerou, destacando-se do modismo passageiro. Após o exílio de Gilberto Gil e Caetano Veloso e a agonia tropicalista, este disco pode ser classificado alegoricamente como parte de uma Tropicália Underground. Vanguardista quando posto no mercado, hoje histórico e definitivo. Underground quando lançado, hoje um luxo!

Do Grito das Ruas de Londres ao Gemido da Acauã

Legal foi lançado no segundo semestre de 1970. É resultado do show “Deixa Sangrar”, que teve estréia no Teatro Opinião naquele ano. Traz capa de Hélio Oiticica, um dos ícones da Tropicália, dividindo o rosto da cantora ao meio, sobre um fundo azul, transformando os seus longos cabelos numa miscelânea de personalidades. É considerada até hoje, pelos críticos, a capa mais artística de um álbum de Gal Costa.
O álbum começa com a versão rock de “Eu Sou Terrível” (Roberto Carlos – Erasmo Carlos), que parece continuar a radicalização do álbum psicodélico anterior. Temos a sensação de que a explosão registrada no segundo álbum de 1969 vai adentrar por este álbum, mas, aos vinte e cinco anos, a inquietude de Gal Costa é sempre uma surpresa.
Apesar do início rascante, o álbum vai seguindo outra vertente com o baião “Língua do P” (Gilberto Gil), uma moda adolescente da época para mandar recadinhos de amor, introduzindo a letra P entre as sílabas, e fugir ao controle dos mais velhos. Traz gírias da época, como bulhufas, que a faz uma música datada.
Love, Try And Die” (Lanny - Gal Costa - Jards Macalé), canção leve que insere uma Gal Costa cantando em estilo Janis Joplin, num ritmo bem anos setenta. A música traz uma letra sem pretensões, um joguete de palavras, a curiosidade é ter a assinatura de Gal Costa como uma das compositoras da canção.
Depois de “Carcará” e “Asa Branca”, é a vez de mais uma ave nordestina refletir o sertão seco e pobre: “Acauã” (Zé Dantas). Aqui os agudos de Gal Costa imitam lindamente o canto da acauã, não trazendo a força do carcará, mas o lirismo melancólico da acauã, beleza única de um céu rasgado pelo sol e pelo chão dilacerado pela seca.
Gal Costa passara o natal de 1969 em Londres, na companhia dos amigos exilados Gilberto Gil e Caetano Veloso. Trouxe de lá as canções “Mini Mistério” (Gilberto Gil) e “London, London” (Caetano Veloso), gravando-as em um compacto e inserindo-as no álbum. “London, London” tornou-se um grande sucesso nas rádios daquele ano, alcançando o primeiro lugar nas paradas nacionais. Esta música caracteriza bem o Caetano Veloso exilado, a desfilar perdido pelas ruas de Londres. Tornou-se uma das canções que se atrelaram definitivamente ao repertório de Gal Costa, e seria revisitada e regravada em 1997, no “Acústico MTV”. Uma das interpretações mais passionais de Gal Costa à música de Caetano Veloso, de uma singular beleza melódica de uma voz de revolta poética. Talvez por ter sido gravada com o amigo ainda distante, traz esta força interpretativa tão perenemente bela. É a canção que marca este álbum.
Mini Mistério” é a preocupação de uma juventude calada pela força bruta e mais atormentada por dúvidas existencialistas, onde tudo é mistério, do cemitério do Caju à Santíssima Trindade, avisando que tudo está por um fio labiríntico, até mesmo a vida.

As Angústias do Desbunde da Verdadeira Baiana


Mas é sem dúvida “Hotel das Estrelas” (Duda – Jards Macalé) a canção que mais descreve a juventude do desbunde da qual Gal Costa tornar-se-ia a musa no ano seguinte. A juventude que vê amigos mortos pela ditadura e pela droga. A juventude que se sente tolhida e ameaçada. Nem a ditadura nem a droga oferecem saídas, mas a segunda alivia um pouco mais os tormentos. É a solidão dos anos vista pela janela e pela distância:

“Dessa janela sozinha
Olhar a cidade me acalma
Estrela vulgar a vagar
Rio e também posso chorar
Oh, e também posso chorar...”

Ao contrário dos gritos de fúria do álbum anterior, aqui os gritos acontecem, mas são diluídos em cantos e desencantos melancólicos, assim é a canção “The Archaic Lonely Star Blues” (Duda – Jards Macalé), com letra em inglês e em português, formando um grande e atormentado poema existencialista, com gritos rascantes de uma cantora jopliniana em seu apogeu vocal de juventude.
Distraindo um pouco a angústia, mas sem perde-la de vista, temos o frevo “Deixa Sangrar” (Caetano Veloso), que vem com o sub-título Carnaval 1971, frevo composto em Londres por Caetano para o carnaval do ano seguinte. O nome da canção é uma paródia ao título do álbum Let it Bleed dos Rolling Stones.
Fechando o álbum, mais uma canção que faria parte para sempre dos shows e da carreira de Gal Costa, “Falsa Baiana” (Geraldo Pereira). Com uma interpretação mais recôndita, temos uma Gal Costa outra vez bossa-nova, que a remete ao álbum de estréia, Domingo, de 1967. “Falsa Baiana” iria persistir ainda nos álbuns “Fa-tal – Gal A Todo Vapor” (1971) e “Acústico MTV” (1997), além de ter como reposta a canção “A Verdadeira Baiana” (Caetano Veloso), que viria no álbum “Plural” (1990).
Você Não Entende Nada” (Caetano Veloso) tornou-se um imenso sucesso no show e foi lançado em compacto. A Philips tentou inseri-la às pressas nas prensagens do álbum Legal após o seu lançamento, o que explica certos LPs lançados na época conter a música.
Vendo o álbum como um todo é que percebemos uma Gal Costa mais tranqüila do que em 1969. Os cabelos já não são estilo hippie, mas compridos e partidos ao meio, que seria sua marca até os dias de hoje. É um álbum tipicamente dos anos setenta que, como já se disse, consegue não ser datado. É o alicerce do show que Gal Costa faria no ano seguinte, “Gal a Todo Vapor”, que se tornaria o espetáculo mais visto pela juventude da época. Com ele encerrar-se-ia a fase jopliniana de admiração e o início da desaceleração no cantar vanguardista.
Gal Costa nesta época é moda entre a juventude cabeluda. É imitada, idolatrada. Faz parte da cultura do país. Sobrevivente absoluta da Tropicália. E naquele estranho fim de ano de 1970 ela cantava para o carnaval seguinte:

"...Deixa o mar ferver, deixa o sol despencar
Deixa o coração bater, se despedaçar
Chora depois, mas agora deixa sangrar
Deixa o carnaval passar...”

Legal é poesia underground, marginal, existencialismo convulsivo. É o começo do namoro dos cabeludos do desbunde e o seu movimento cultural, que tomou o canto de Gal Costa como hino.

Ficha Técnica:

Legal
Philips
1970

Direção da produção: Manoel Barenbein
Técnicos de gravação: Ary Carvalhaes, João Moreira, Mazzolla
Estúdio: CBD
Arranjos de base: Lanny Gordin e Jards Macalé
Arranjos de orquestra: Chiquinho de Moraes
Baixo Elétrico: Cláudio
Bateria: Norival D'Angelo
Guitarra: Lanny Gordin
Acordeom: não creditado no disco
Piano e órgão: Chiquinho de Moraes
Violão: Gal Costa
Coro (na faixa “Love, try and die”): Erasmo Carlos, Jards Macalé, Lanny Gordin e Tim Maia Capa: Hélio Oiticica

Faixas:

1 Eu sou terrível (Erasmo Carlos - Roberto Carlos), 2 Língua do P (Gilberto Gil), 3 Love, try and die (Lanny - Gal Costa - Jards Macalé), 4 Mini mistério (Gilberto Gil), 5 Acauã (Zé Dantas), 6 Hotel das estrelas (Duda - Jards Macalé), 7 Deixa sangrar (Caetano Veloso), 8 The archaic lonely star blues (Duda - Jards Macalé), 9 London, London (Caetano Veloso), 10 Falsa baiana (Geraldo Pereira)


 
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Terça-feira, 26 de Maio de 2009

MONTGOMERY CLIFT, ERRÁTICO E TALENTOSO

 

 

Desde que o cinema foi inventado, luz, imagem e vindo mais tarde, o som, tornaram-se elementos de sedução e paixão que fez sonhar multidões de platéias. O ator deixava os palcos para despontar o seu rosto e interpretação em uma grande tela. Carreiras cinematográficas tornaram-se ícones de um estrelato de atores que se fizeram deuses. Muitas dessas carreiras sublimemente confundiram-se com a vida dos seus ídolos, às vezes essa vida tornava-se maior do que a própria carreira. Uma das maiores lendas do cinema norte-americano, Montgomery Clift, foi um dos atores que a vida pessoal e a carreira travaram lutas muitas vezes diluídas nas angústias da existência. Se a vida privada e trágica de Marilyn Monroe foi maior do que os papéis que ela viveu na grande tela, a de Montgomery Clift desenhou-se na dimensão etérea, e muitas vezes, perdeu para o talento insuperável de um homem errático.
De uma angústia latente, um carisma enigmático, uma tristeza realçada por uma beleza rara, Montgomery Clift passou a vida a tentar equilibrar-se diante dos caminhos por estradas sinuosas que percorreu. O ator pertenceu à geração que revelou Marlon Brando, James Dean e Rock Hudson. Além de uma carreira de sucesso, ele tinha em comum com os três atores citados a homossexualidade que, ao contrário dos outros, ele jamais negou ou tentou lutar contra. Na época exigia-se que um astro de cinema escondesse a sua condição sexual através de um casamento, Clift preferiu ignorar a regra, vivendo a sua essência sem trair a si próprio. Esta condição, uma saúde debilitada, o vício pelo álcool e pelos barbitúricos, fizeram de Montgomery Clift um homem frágil, que despertava nas pessoas um sedutor sentimento de querer protegê-lo, por vê-lo tão vulnerável diante da vida. Esta vulnerabilidade transbordava por todas as personagens que o ator viveu tão bem, transformando-o em um dos maiores atores que o cinema norte-americano, ainda em sua fase criativa, já revelou. Rever os filmes de Montgomery Clift é sempre uma agradável descoberta, um convite ao sublime, ao belo e ao trágico, como foi a vida deste ator desaparecido ao 45 anos.

Primeiros Sucessos na Brodway

Edward Montgomery Clift, nasceu em Omaha, Nebraska, no dia 17 de outubro de 1920. Gêmeo de uma irmã, Roberta, nasceu no seio de uma rica e tradicional família estadunidense. O pai, William Brooks Clift, era um banqueiro e investidor da bolsa, que retrata bem a chamada “Geração Perdida” ou “Geração do Jazz”, período tão bem descrito nas obras de F. Scott Fitzgerald, que se encerra com o colapso das bolsas e instituições financeiras em 1929, originando uma grande depressão econômica. Até então, o pequeno Monty, a mãe e os irmãos, viveram uma vida de faustas viagens à Europa, muitas vezes ao lado de preceptores. Mas a fartura chegaria ao fim em 1929, quando falidos, a família é obrigada a mudar de cidade e reduzir drasticamente o nível de vida.
Montgomery Clift moldou uma personalidade rebelde, muitas vezes vividas nas esquinas que transitava. Aos treze anos descobriu a sua aptidão para ator, estreando-se na Brodway com a peça “Fly Away Home”. Mostrou-se tão bem sucedido, que a mãe, Ethel Fogg Clift, incentivou-o a abraçar os palcos e a tornar-se ator. Iniciava-se uma das mais magníficas carreiras do século XX. Aos 17 anos, ele ganha o estatuto de grande estrela da Brodway ao protagonizar “Dame Nature”. O sucesso nos palcos continuaria por longos anos, com peças como “There Shall be No Night”, “The Mother” e “Trincheira na Sala”.
Mas a saúde do ator mostrou-se frágil muito cedo. Em 1939, de férias no México, ao lado dos amigos, o compositor Lehman Engel e o ator John Garfield, foi obrigado a interromper a viagem quando acometido de disenteria amébico, doença que seria a responsável por sua dispensa do exército, considerado incapacitado, e que voltaria a incomodá-lo por toda a sua vida, evoluindo para uma colite ulcerosa.

Indicado ao Oscar na Estréia no Cinema

Dono de uma beleza etérea e de um grande talento, logo o ator atraiu os diretores e produtores de cinema, ávidos por revelar novos astros. Montgomery Clift foi convidado para fazer vários filmes, mas declinou a todos os convites por não ver nenhum papel interessante. Continuaria a dizer não ao cinema durante anos. Quando o ator decidiu negociar com os grandes de Hollywood, começou pela MGM, mas fez exigências que não foram atendidas e ele abandonou os estúdios. Foi imediatamente contratado pela United Artists, em 1948, para contracenar com John Wayne em um dos maiores westerns de todos os tempos “Rio Vermelho” (Red River), de Howard Hawks. Ainda naquele ano, o ator faria “Perdidos na Tormenta” (The Search), dirigido por Fred Zinnemann, que lhe valeria a primeira indicação para o Oscar de melhor ator e uma grande popularidade diante de platéias do mundo inteiro. O sucesso imediato valeu-lhe a capa da famosa revista “Life”, que em suas páginas mostrava-o como integrante de uma nova safra de grandes atores. Estava iniciada uma brilhante carreira cinematográfica.
Montgomery Clift passou a ser um dos homens mais assediado e desejado pelas mulheres, fato que lhe constrangia. A fama não o transformou no estereótipo do astro de Hollywood de então. Não adquiriu grandes mansões em Beverly Hills, preferindo os bairros de Nova York, não era um homem receptivo à idolatria e aos cortejos da fama, assim como não se rendeu às extravagâncias da moda ou dos hábitos de quem começava a aparecer constantemente nas revistas e nos jornais, ilustrando as páginas da fama.
Rígido em suas escolhas de personagens, o ator sofreria reveses por isto, como a que aconteceu em 1950, quando assinou contrato para fazer o filme “Crepúsculo dos Deuses” (Sunset Boulevard), de Billy Wilder, e faltando duas semanas para o início das filmagens, rescindiu o contrato, sendo substituído por William Holden no papel de Joe Gillis. O filme foi um dos maiores sucessos do cinema, constituindo uma perda para a carreira do ator.

Composição de Personagens Inesquecíveis

Após recusar fazer o filme de Billy Wilder, Montgomery Clift faria em 1951, “Um Lugar ao Sol” (A Place in the Sun), de George Stevens. O filme constitui uma das mais soberbas interpretações do ator, valendo-lhe nova indicação ao Oscar como melhor ator. Contracenando com Elizabeth Taylor, iniciar-se-ia uma longa amizade entre os atores, com vínculos que só seriam interrompidos com a morte prematura de Clift. A intensidade angustiante que empresta à personagem, faz com que o público esqueça da sua condição de assassino e queira apenas protegê-lo dos males do mundo. Será assim para sempre, os olhos intensos e atormentados de Clift darão esta sensação de desproteção diante da vida, como se não fosse resistir às suas armadilhas. A química entre Elizabeth Taylor e Montgomery Clift cria cenas antológicas de amor que mudariam a linguagem dos casais da grande tela. Os dois ainda voltariam a fazer mais dois filmes juntos.
Após “Um Lugar ao Sol”, Montgomery Clift ficaria afastado do cinema por algum tempo. Voltaria em 1953 com três filmes, sob a direção de três grandes diretores: “A Tortura do Silêncio” (I Confess), dirigido por Alfred Hitchcock; “Quando a Mulher Erra” (Indiscretion of an American Wife), de Vittorio de Sica, que seria o primeiro filme de baixa bilheteria do ator; e o clássico e inesquecível “A Um Passo da Eternidade” (From Here to Eternity).
O filme “A Um Passo da Eternidade” tornou-se uma das mais belas incursões do cinema à temática da Segunda Guerra Mundial. Repleto de fatos pitorescos e obscuros, os bastidores da película tiveram, entre tantas curiosidades, a oposição de Harry Cohn, poderoso executivo da Columbia à época das filmagens, ao nome de Montgomery Clift para o papel de Robert E. Lee Prewitt. O ator só ganhou o papel graças à intervenção do diretor Fred Zinnemann, que ameaçou abandonar o projeto caso não tivesse Clift no papel. O filme, composto por grandes estrelas como Burt Lancaster, Deborah Kerr e Frank Sinatra, traz o ápice da interpretação do ator para o cinema, que lhe valeu outra indicação para o Oscar de melhor ator. O consenso de que Clift levaria o prêmio era tão grande, que foi com surpresa e decepção que todos assistiram William Holden conquistar a estatueta pelo desempenho em “Inferno 17”. Culpa-se a aversão de Montgomery Clift a render-se ao glamour de Hollywood a não conquista de nenhum Oscar, apesar das várias indicações durante o percurso da sua carreira no cinema.
A solidão inacessível de um soldado, que vê a sensibilidade fugir diante das imposições de um universo cruelmente feroz, que se recusa a voltar a ser boxeador para preservar-se diante da crueza do mundo, às vésperas das bombas japonesas que se iriam chover sobre Pearl Harbor, abatendo-o de vez. É esta personagem fascinante que toma o rosto e a voz de Montgomery Clift. Assim como a personagem, também o ator seria arrebatado pela crueza de um mundo no qual ele sempre lutou para sobreviver, jamais para percebê-lo ou integrá-lo como um todo.
Depois das filmagens, Montgomery Clift construiu uma amizade com Frank Sinatra, que arrebataria o Oscar de melhor ator coadjuvante, e com James Jones, autor do livro do qual inspirara o filme. Segundo relatos, muitas foram as noites que os três saíram para beber juntos.

O Acidente

Depois de “A Um Passo da Eternidade”, o ator desapareceria das telas de cinema por um longo período. Neste período, apega-se cada vez mais ao consumo de álcool e ansiolíticos, tentando aliviar uma personalidade frágil e cada vez mais depressiva, que se refletiria no trabalho, isolando-o em um comportamento pouco social, obsessivo e cada vez mais solitário. Esta tendência iria piorar quando sofreria um terrível acidente que quase lhe custaria a vida.
Em 1956 Clift aceitou fazer o filme “A Árvore da Vida” (Raintree County), de Edward Dmytryk, sem sequer ler o roteiro, só pelo fato de saber que iria contracenar com a amiga Elizabeth Taylor. Seria uma volta às telas após três anos de ausência.
As filmagens corriam tranqüilas, já iam adiantadas quando Elizabeth Taylor decidiu dar uma festa em sua casa. Clift entrega-se à bebida e, após cansar-se da festa, saiu completamente embriagado, tentando em vão, dirigir o seu automóvel. Sem condições, o ator bateu violentamente o carro em um poste telefônico a poucos metros de distância da casa da amiga. Ao ser informada do acidente, a atriz correu até o local, chegando a tempo de salvar Clift de morrer sufocado pelo próprio sangue e ao tirar dois dentes presos na sua garganta. O resultado do acidente deixou uma profunda mutilação no rosto do ator, que além da falta dos dois dentes, quebrou a mandíbula, o nariz foi esmagado e lacerações faciais o obrigaram a submeter-se a uma cirurgia plástica.
O acidente deixou-o longe das filmagens de “A Árvore da Vida” por oito semanas. Quando se assiste ao filme, percebe-se nitidamente os dois rostos do ator, dantes e depois do acidente. As marcas indeléveis não ficaram gravadas apenas na face de Montgomery Clift, mas também nos seus hábitos, para fugir às dores, ingeria álcool e pílulas, que o deixou dependente de drogas, estimulantes e barbitúricos. A partir de então, a colite, a dependência química e as seqüelas do acidente, contribuíram para que a sua saúde começasse a deteriorar-se gradativamente.
Mesmo diante dos problemas e atrasos nas filmagens que a tragédia do acidente provocara, o diretor Edward Dmytryk, declararia que Clift tinha sido o ator mais criativo com o qual ele já trabalhara, e voltaria a dirigi-lo em 1958, em “Os Deuses Vencidos” (The Young Lion).

A Agonia Existencial do Ator

Após o acidente, a dependência química afetaria a cada dia o comportamento do ator, que o faria ser considerado uma pessoa difícil, avesso às badalações, mas vítima da sua própria inconstância emotiva. Este período foi maldosamente visto em Hollywood como o mais longo suicídio de um homem. Cada dia mais errático, em pouco tempo nenhum produtor queria contratá-lo. Montgomery Clift fugiu dos holofotes da fama, mas bateu de frente com os escândalos de si próprio, quando era visto bêbado e perdido, a correr nu pelas ruas e pelos corredores de alguns hotéis.
Cada vez mais isolado dos estúdios de cinema, por influência da eterna amiga Elizabeth Taylor, Clift foi convidado para fazer ao seu lado, em 1959, “De Repente, No Último Verão” (Suddenly, Last Summer), de Joseph L. Mankiewicz, uma versão cinematográfica da peça de Tennesse Williams. Os atrasos constantes às filmagens irritaram o diretor, que por várias vezes quis demitir o ator, só não o fazendo por imposição de Elizabeth Taylor. O sucesso do filme valeu todos os dissabores das filmagens.
Em 1960, Elia Kazan convidou Clift para protagonizar, ao lado da bela Lee Remick, o filme “Rio Violento” (Wild River). A atriz declararia mais tarde sobre Montgomery Clift: “Sua falta de auto-estima era muito comovente, muito comovente, muito triste... Havia um elemento de tristeza nele o tempo todo”.
Em 1960 John Huston reuniu Montgomery Clift, Marilyn Monroe e Clark Gable, naquele que seria o último filme dos dois últimos atores, “Os Desajustados” (The Misfits). A instabilidade emocional de Clift e Marilyn Monroe fez com que as suas cenas fossem refeitas várias vezes, causando atrasos nas filmagens. A atriz comentaria que na vida só Clift estava pior do que ela. Clark Gable morreria dias depois de encerrar as filmagens.
John Huston voltaria a dirigir Clift a interpretar o famoso pai da psicanálise, Sigmund Freud, no filme “Freud – Além da Alma” (Freud). O filme levou John Huston, Montgomery Clift e a Universal aos tribunais, por causa dos constantes atrasos nas filmagens que causaram grande prejuízo aos estúdios. Diante dos tribunais, tentaram culpar somente o ator, tentando que ele alegasse os problemas com a sua saúde ser a causa dos atrasos, recebendo assim, a indenização da cobertura do seguro. Clift recusou-se, alegando que os atrasos tinham sido responsabilidade de todos. Teve o salário cortado e gerou uma crise com os produtores. O ator ganharia a causa em 1963, mas os danos foram irreversíveis para a sua carreira, que ficou prejudicada diante dos produtores que se recusavam a chamá-lo para novos trabalhos. Durante o processo, ficou exposto a sua vida particular, o seu comportamento e a sua dependência diante do álcool, o que causou uma grande publicidade negativa à sua carreira.
Mesmo isolado, o ator faria uma participação brilhante no filme “O Julgamento em Nuremberg” (Judgment at Nuremberg), de Stanley Kramer. Sua participação era inferior a dez minutos, mas tão marcante, que lhe valeu a quarta indicação para o Oscar, desta vez como melhor ator coadjuvante.

Uma Morte Anunciada

Cada vez mais tido como praticante de um suicídio lento, o envolvimento do ator com o álcool e com os barbitúricos levou-o a uma depressão que o afastou das telas por outros longos anos. Em 1966 Elizabeth Taylor convenceu John Huston a chamar Clift para protagonizar ao seu lado, o filme “O Pecado de Todos Nós” (Reflections in a Golden Eye). Como a atriz estava presa às filmagens de um outro filme na Europa, há um atraso no início das filmagens, e a fatalidade impediria que Clift viesse a atuar ao lado da sua maior companheira em cena e na vida.
Enquanto esperava por Elizabeth Taylor, Montgomery Clift fez “Talvez Seja Melhor Assim” (The Defector), de Raoul Lévy. Este seria o seu último filme, pois morreria dias após a conclusão das filmagens.
No dia 22 de julho de 1966, Montgomery Clift recolheu-se à sua casa, em Nova York. Silencioso e solitário, assim o ator viveu o seu último dia de vida. À noite, o amigo e secretário pessoal, Lorenzo James foi ao seu quarto para desejar boa noite e dizer que a televisão passaria “Os Desajustados”, perguntando se ele queria ver, ao que o ator respondeu: “Absolutamente não!”. Foram as últimas palavras em vida dirigidas pelo ator a alguém. Na manhã seguinte, dia 23, Lorenzo James encontraria Clift nu e de costas sobre a cama, trazia os óculos e os punhos cerrados, sem vida. Uma autópsia ao corpo do ator revelou que a sua morte prematura, a poucos meses de completar 46 anos, não se devia a qualquer ato de suicídio, mas a uma doença arterial coronária, que o levou a um ataque cardíaco, provocando-lhe uma morte súbita.
Montgomery Clift faz parte daqueles homens que tentam sobreviver à sensibilidade fatal de si mesmo. De uma beleza bíblica, olhar de uma solidão latente e de uma tristeza intransponível, ele sobrevive da enorme empatia que tem com a arte, fazendo dela o refúgio e o talento magnificente. Sua vida confunde-se com as tragédias que viveu no cinema, onde a morte quase sempre vem precedida de um sonho e determinação. Clift teve as mais belas mulheres aos seus pés, e numa época que o ídolo de cinema tem que ser perfeito no seu glamour efêmero, ele prefere não se render ao óbvio, trilhando os caminhos mais difíceis e vivendo os meandros da essência da sua verdadeira sexualidade. Mesmo assim, Clift declara que o seu maior sonho é trazer para casa uma mulher como esposa e ter muitos filhos. A realidade entre o sonho e as suas verdades faz com que a sua sensibilidade seja constantemente agredida. A embriaguez da alma, regada a álcool e a barbitúricos, impulsiona-o a saltar em um precipício de calma momentânea, sem que se importe com os efeitos da queda.
Gêmeo de uma irmã, Montgomery Clift não nasceu sozinho, mas assim viveu a vida inteira, mesmo ladeado por uma legião de fãs, de gente que o amava e desejava. Errático na forma de caminhar, punia-se por se sentir culpado e envergonhado diante de seu comportamento com o álcool e da forma que conduzia a verdadeira face da sua sexualidade. Se a sua morte foi lenta, anunciada, a sua obra é eterna, cristalizada em um sublime momento do tempo. Dilacerado por uma sensibilidade comovente, Montgomery Clift morreu assim como viveu, sozinho e nu diante da vida e dos sentimentos.

FILMOGRAFIA E PEÇAS DE TEATRO

Filmes:

1948 – Red River (Rio Vermelho)
1948 – The Search (Perdidos na Tormenta)
1949 – The Heiress (Tarde Demais)
1950 – The Big Lift (Ilusão Perdida)
1951 – A Place in the Sun (Um Lugar ao Sol)
1953 – I Confess (A Tortura do Silêncio)
1953 – Indiscretion of an American Wife (Quando a Mulher Erra)
1953 – From Here to Eternity (A Um Passo da Eternidade)
1957 – Raintree County (A Árvore da Vida)
1958 – Lonleyhearts
1958 – The Young Lions (Os Deuses Vencidos)
1959 – Suddenly, Last Summer (De Repente, no Último Verão)
1960 – Wild River (Rio Violento)
1961 – Judgment at Nuremberg (O Julgamento de Nuremberg)
1961 – The Misfits (Os Desajustados)
1962 – Freud (Freud – Além da Arma)
1966 – The Defector (Talvez Seja Melhor Assim)

Teatro:

1934 – Fly Away Home
1935 – Jubilee
1938 – Your Ibedient Husband
1938 – Eye on the Sparrow
1938 – The Wind and the Rain
1938 – Dame Nature
1939 – The Mother
1940 – There Shall be No Night
1942 – Mexican Mural
1942 – The Skin of Our Teeth
1944 – The Searching Wind
1945 – Foxhole in the Parlor
1945 – You Touched Me!
1954 – The Seagull

CRONOLOGIA

1920 – Nasce, no dia 17 de outubro, em Omaha, Nebraska, Edward Montgomery Clift, gêmeo de Roberta Clift.
1929 – Colapso na bolsa leva William Brooks Clift, pai de Montgomery, à falência.
1934 – A família muda-se para Sharon, Massachusetts. Estréia aos 13 anos, na Brodway em “Fly Away Home”.
1938 – Ao fazer “Dame Nature”, torna-se, aos 17 anos, grande astro da Brodway.
1939 – É vitimado por uma doença, disenteria amébico, que o perseguiria para o resto da vida, evoluindo para colite crônica. Por este motivo, é dado como incapaz para servir o exército.
1948 – Estréia no cinema, ao lado de John Wayne, no filme “Rio Vermelho”, de Howard Hawks. Faz o filme “Perdidos na Tormenta”, de Fred Zinnemann, que lhe valeria uma indicação para o Oscar de melhor ator.
1950 – Rescinde contrato e desiste de fazer “Crepúsculo dos Deuses”, sendo substituído por William Holden.
1951 – Protagoniza “Um Lugar ao Sol”, de George Stevens, ao lado de Elizabeth Taylor, com quem inicia uma longa e comovente amizade, que o acompanharia até a sua morte. É indicado para o Oscar de melhor ator.
1953 – Trabalha com o mestre Alfred Hitchcock no filme “A Tortura do Silêncio”. É dirigido por Vittorio de Sica no filme “Quando a Mulher Erra”. Volta a trabalhar com Fred Zinnemann no mítico “A Um Passo da Eternidade”. É indicado para o Oscar de melhor ator por esta atuação.
1954 – Volta aos palcos com “The Seagull”.
1956 – Após alguns anos de afastamento, volta a filmar “A Árvore da Vida”, ao lado de Elizabeth Taylor. Durante as gravações sofre um grave acidente, ao dirigir bêbedo um automóvel. Tem parte do rosto desfigurado, sendo obrigado a uma cirurgia corretiva para reconstrução do mesmo.
1959 – Volta a contracenar com Elizabeth Taylor, no filme “De Repente, no Último Verão”, filme de Joseph L. Mankiewicz, inspirado na peça de Tennesse Williams. No elenco a presença luxuosa da atriz Katharine Hepburn.
1960 – Protagoniza “Rio Violento”, de Elia Kazan, ao lado de Lee Remick. Faz “Os Desajustados”, filme que iria estrear em 1961, ao lado de Clark Gable e Marilyn Monroe, que se tornaria o último filme destes atores.
1961 – Faz uma participação especial no filme “O Julgamento de Nuremberg”, de Stanley Kramer, que lhe valeria a quarta indicação para o Oscar.
1962 – Protagoniza o tumultuado “Freud – Além da Alma”, de John Huston, que terminaria com grandes atrasos nas filmagens e em tribunal.
1966 – Convidado para fazer o filme “O Pecado de Todos Nós”, de John Huston, ao lado de Elizabeth Taylor. Enquanto aguardava a volta da atriz, que estava filmando na Europa, para iniciar as filmagens, fez o último filme da sua vida, “Talvez Seja Melhor Assim”. Morre a 23 de julho, pouco depois de encerrar as filmagens, vítima de uma doença arterial da coronária, que lhe causou parada cardíaca e morte súbita. Da sua vida, a frase pronunciada por ele, definiu a sua visão de ser ator: “Olha, eu não sou esquisito. Só estou a tentar ser um ator, não um ator de cinema, mas um ator.”
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Sábado, 23 de Maio de 2009

OS NEGROS NAS TELENOVELAS

 

 

O Brasil é um país plural, com uma população formada por várias raças e etnias. País construído por colonizadores europeus, nativos indígenas e negros africanos em sua essência. Se o índio faz parte de uma minoria de brasileiros, negros e brancos quase que empatam em número populacional. Apesar da paridade numérica, os abismos sociais entre negros e brancos continuam a ser uma grande ferida na integridade racial do Brasil.
A presença dos negros nas telenovelas brasileiras, o maior veículo de comunicação de público do país, apesar de ter avançado nos últimos anos, ainda é tímida e muitas vezes feita de uma forma negativa e presa ao estereótipo. Apesar de ser um país de grandes atores negros, que desfilaram ou desfilam pelas décadas da dramaturgia brasileira, como Grande Otelo, Ruth de Souza, Lázaro Ramos, Milton Gonçalves, Isaura Bruno, Taís Araújo, Chica Xavier, Neuza Borges, Jacira Silva, Zezé Motta, Cléa Simões, Zózimo Bulbul, Lea Garcia e tantos outros; os negros vêm sendo ignorados há décadas pelas telenovelas. Desde a primeira levada ao ar em 1963, este veículo tornou-se o condutor que moldou comportamentos, opiniões, criando ou derrubando preconceitos. A linguagem da telenovela reprimiu por muitos anos a imagem da verdadeira face do Brasil, fazendo dele um país de falsa identidade branca, negando a sua história e cultura. A televisão foi, e ainda o é (apesar de hoje em dia sofrer mais críticas e render-se às evidências da pluralidade) a maior propagandista e difusora dos conceitos do branqueamento da população brasileira, iniciada ainda no Brasil colônia.
Se hoje uma telenovela de horário nobre da poderosa TV Globo insere em suas tramas o amor entre raças, e o público, já moldado para aceitar a verdadeira identidade do país, aceita as personagens, nem sempre foi assim. Já houve tempo em que a rejeição ao amor entre um casal de cor branca e negra atingiu a total intolerância. A presença do negro na ficção da teledramaturgia era visível apenas em pequenas tramas paralelas às principais. De Mamãe Dolores (Isaura Bruno) a Xica da Silva (Taís Araújo), do Rodney de Zózimo Bulbul em “Vidas em Conflito” (1969) ao Foguinho de Lázaro Ramos em “Cobras & Lagartos” (2006), o espaço do negro nas telenovelas vem sendo conquistado com perseverança à discriminação. Um longo e árduo caminho foi percorrido pela constelação de grandes talentos negros, até que se deslumbrasse como protagonistas de algumas telenovelas.

O Branqueamento Histórico da População Brasileira

A presença negra na formação do Brasil veio através dos grupos étnicos africanos capturados em suas tribos e feitos escravos nas terras da colônia. Desde então negros, brancos e índios misturaram-se, construindo uma população miscigenada com maioria visível de negros. O impacto da presença negra na população do Brasil sempre foi motivo de preocupação entre os colonizadores, que temiam uma rebelião da raça contra a minoria branca. Em 1609, para aumentar a população branca do Brasil, o rei Filipe II de Portugal (III da Espanha), proibiu a fundação de conventos no Brasil, para que os brancos europeus que migravam à colônia não fossem somente padres e missionários sem compromissos com a procriação. O medo de uma rebelião negra aumentou drasticamente em 1804, quando os escravos nativos de Hispaniola, no mar do Caribe, tomaram a parte ocidental da ilha e declararam a independência do Haiti, abolindo a escravidão. Muitos receavam que se sucedesse o mesmo no Brasil, e antes que acontecesse, foi iniciado um branqueamento da população brasileira durante o primeiro e o segundo impérios. Esta medida culminou com o incentivo do governo em trazer para o Brasil o imigrante europeu. Derrubadas as últimas fronteiras de disputa com a Espanha, o sul do Brasil passou a ser colonizado por imigrantes europeus, fazendo parte do processo político de branqueamento da população brasileira. Este conceito ultrapassou o Brasil imperial, não se esvaiu com a abolição da escravatura, em 13 de maio de 1888.
No século XX, já com o poder da mídia como fonte de propaganda de uma nação, a partir dos anos sessenta, a televisão tornou-se o principal veículo desta propaganda. A telenovela é o produto de comunicação mais consumido pela população. Tornou-se tão poderosa, que dita a moda e os modismos, os conceitos sociais e políticos e a forma linear de difusão de pensamentos de uma nação.
Se a telenovela dominou o Brasil com a sua linguagem, estes domínios atravessaram as fronteiras, atingindo outros países. O sucesso das exportações das telenovelas para o exterior fez com que se pensasse nela como um cartão postal, trazendo um conceito de imagem da geografia humana do Brasil idealizado por uma falsa identidade. Tanto que se discute em Portugal, na Itália, Espanha, China, e outros países para onde a telenovela brasileira foi exportada e tornou-se grande sucesso de consumo, se no Brasil afinal não há negros. Sim, esta pergunta foi feita nos outros países, porque na telenovela brasileira a presença do negro era quase decorativa, quase exótica, como se raro fosse no cotidiano desta imensa nação.

O Negro nas Primeiras Telenovelas Brasileiras

Uma das primeiras telenovelas a ter muitos negros em seu elenco foi “A Gata”, novela de Ivani Ribeiro que estreou em 1964, na extinta TV Tupi. O tema da telenovela não era dos problemas do negro brasileiro, mas os dos escravos das Antilhas do início do século XIX . A trama girava em volta de uma senhora branca, Adriana (Marisa Woodward), chamada de Gata. O fracasso diante do público levou os patrocinadores a uma pesquisa para saber os motivos. Um deles era o excesso de escravos da trama. Para solucionar o problema, a autora fez com que uma epidemia na senzala matasse mais da metade dos escravos. Apesar de um grande número de atores negros, nenhum deles teve o nome creditado junto ao restante do elenco branco da telenovela.
Ainda em 1964, estreou na TV Tupi, “O Direito de Nascer”, primeira telenovela de grande sucesso no Brasil. O folhetim era uma adaptação de Talma de Oliveira e Teixeira Filho ao texto original do cubano Félix Caignet. A história da negra Dolores (Isaura Bruno) comoveu o Brasil. Empregada de uma abastarda e poderosa família, que ao ver Maria Helena (Nathália Timberg), a filha do patrão, engravidar e ter que, por imposição do preconceito por ser mãe solteira, abandonar o filho, tomou para os seus cuidados esta criança, criando-a como filho. Mamãe Dolores e o seu filho adotivo Albertinho Limonta (Hamilton Fernandes) levaram o Brasil às lágrimas. Isaura Bruno tornou-se a primeira atriz negra a fazer grande sucesso diante do público. Com ela inicia-se a imagem benevolente da mãe preta gorda, de colo amplo para acolher os filhos, que se encaixaria em outras atrizes negras, como Cléa Simões, que seria a Mamãe Dolores da versão de 1978 da novela; Zeny Pereira e Jacira Sampaio, a eterna Tia Anastácia do seriado “Sítio do Picapau Amarelo”. Mas o grande sucesso de Isaura Bruno foi logo esquecido devido à inexistência de papéis à altura do seu talento e carisma, sempre interpretando pequenos papéis subalternos até a sua morte.
Um momento raro da história do negro na televisão brasileira nos incipientes anos sessenta aconteceu na telenovela “A Cor da Pele”, de Walter George Durst, que estreou na TV Tupi em 1965. Apesar da sua obscuridade como registro, foi a primeira novela a propor falar sobre o preconceito racial. A história de amor entre a mulata de olhos verdes Clotilde (Yolanda Braga), e o português Dudu (Leonardo Villar), trouxe para a pequena tela o primeiro beijo inter-racial da sua história. Yolanda Braga foi a primeira protagonista negra de uma telenovela brasileira.
O ano de 1969 marcaria de formas diferentes, a história dos negros nas telenovelas. Três produções, duas na extinta TV Excelsior – “Vidas em Conflito” e “Os Estranhos” - e uma na TV Globo – “A Cabana do Pai Tomás” -, assinalam uma página bizarra na presença dos atores negros.
Vidas em Conflito”, de Teixeira Filho, traz pela primeira vez à telenovela uma família de classe média negra. Zózimo Bulbul viveu o primeiro protagonista negro da televisão. A história seria válida não fosse construída sobre uma sinopse racista, Débora (Leila Diniz) apaixona-se por Walter (Paulo Goulart), homem que a sua mãe Cláudia (Nathália Timberg) ama, por vingança, ela começa a namorar o negro Rodney (Zózimo Bulbul). A idéia de vingança revela a agressão que era uma mulher branca namorar um negro, eliminando da trama o convite à reflexão contra o racismo, sem nunca deixar de evidenciá-lo.
Os Estranhos”, de Ivani Ribeiro, aconteceu no momento histórico em que o homem pisava na lua, daí a imaginação da autora estar voltada para os extraterrestres. A novela era protagonizada por Regina Duarte, Rosamaria Murtinho, Cláudio Correa e Castro, seres que vinham do planeta Gama Y-12, e por Pelé. A presença inesperada do rei do futebol brasileiro, à época no auge da sua carreira , como protagonista de uma telenovela, não contribuiu em nada para a presença do ator negro no gênero. Na trama estava uma celebridade, não um ator. Pelé vivia Plínio Pompeu, escritor rico e dono de uma ilha, que se deparava com os extraterrestres. A personagem tinha pouco texto e em nenhum momento teve um envolvimento amoroso dentro da trama. Apesar de protagonista, tornou-se meramente decorativo. Caso o papel de Plínio tivesse sido entregue a um ator de verdade, a dimensão do crescimento e a importância na trama seriam diferentes.
A Cabana do Pai Tomás”, escrita por Hedy Maia, Péricles Leal e Walter Negrão, é o caso mais bizarro e vergonhoso de racismo registrado em uma telenovela. Baseada no romance homônimo de Harriet Beecher Stowe, é a história do escravo Tomás, homem de bom coração, que passa por vários e cruéis senhores de engenhos durante a Guerra da Secessão nos Estados Unidos. Feita com esmero e dentro de um grande orçamento, a novela foi pensada para ser um grande sucesso épico, mas tornou-se um dos maiores fracassos e de um resultado grotesco. Para viver o protagonista negro Pai Tomás, a subsidiária norte-americana da Colgate-Palmolive no Brasil, que patrocinava as telenovelas da época, exigiu que o papel fosse vivido pelo ator branco Sérgio Cardoso. O absurdo obrigou Sérgio Cardoso a pintar o corpo com uma tinta negra, usar peruca e rolhas no nariz. A novela estreou sob os tumultos de aclamados protestos, um movimento liderado pelo jornalista e dramaturgo Plínio Marcos, em sua coluna diária no jornal “Última Hora”, achava que o personagem deveria ser interpretado pelo ator Milton Gonçalves. Tudo em vão. A novela foi um fiasco em seus 205 capítulos. Mesmo de cunho racista, “A Cabana do Pai Tomás” teve o maior elenco negro até então.

Subalternos e Escravos

Nos anos setenta a telenovela deixava os dramalhões de época, as histórias que dantes se passavam nas Antilhas, nos desertos árabes, no sul dos EUA, são transportadas para o cotidiano brasileiro, mostrando as praias cariocas, os subúrbios paulistanos. A telenovela torna-se uma espécie de retrato da urbanidade nacional, ou, em raras exceções, do ruralismo além do litoral. Nesta nova composição do gênero, o negro é esquecido. O ator Antonio Pitanga desabafaria mais tarde, que na época as personagens das tramas noveleiras sequer tinham um vizinho negro. O negro passava a figurar em tramas paralelas, a viver personagens subalternas. Zezé Motta conta que ao fazer um curso de interpretação, foi abordada por alguém que lhe questionou o porquê de tanto preparo se iria fazer só papel de empregada nas novelas. Diante dessa dura realidade, a atriz deixou de fazer telenovelas por muitos anos, recusando-se ser a eterna serviçal das tramas televisivas.
Na industrialização das telenovelas, os negros tiveram que gritar e protestar por papéis mais importantes, mas nem sempre o grito ecoava diante do preconceito. Temáticas de racismo eram retratadas timidamente, como em “Verão Vermelho”, novela de Dias Gomes, estreada na TV Globo em 1970. Na trama Geralda (Lúcia Alves), jovem de cor branca, esconde a mãe negra Clementina (Ruth de Souza). Em 1971 Janete Clair cria a personagem de Otto von Muller (Jardel Filho), um dos protagonistas de “O Homem Que Deve Morrer”, um vilão racista que é salvo da morte ao receber em transplante o coração de um negro. Zeny Pereira interpreta Conceição, mãe do negro que doou o coração a Otto. Para que ele não se esqueça, ela anda com o coração inutilizado dentro de um vidro, lembrando-lhe que o que bate em seu peito é o de um negro. Em “O Rebu” (1974), de Bráulio Pedroso, a desequilibrada Lupe (Tereza Rachel), mulher rica e frágil, tem no final da novela a proteção e o amor do negro Astorige (Haroldo de Oliveira). Milton Gonçalves que interpretaria um padre na versão proibida pela censura de “Roque Santeiro” (1975), pediu para Janete Clair uma personagem que pudesse usar gravata. Para presenteá-lo a autora criou o doutor Percival de “Pecado Capital” (1975), um psiquiatra negro formado em Havard. Quando “Roque Santeiro” foi levada ao ar em 1985, o padre negro embranqueceu, sendo interpretado por Paulo Gracindo.
Na segunda metade da década de setenta a Globo começa a adaptar vários clássicos da literatura brasileira. “Gabriela” (1975), novela de Walter George Durst extraída das páginas de Jorge Amado, teve várias pretendentes ao papel, entre elas duas atrizes negras, Zezé Motta e Vera Manhãs, esta última na época casada com o ator Antonio Pitanga, mãe dos atores Rocco e Camila Pitanga. A emissora preferiu escurecer a pele de Sonia Braga, transformando-a na mulata Gabriela. Outras adaptações da literatura geraram as personagens dos escravos. Durante muito tempo o negro viveu o escravo das novelas das 18 horas da TV Globo. Entre as novelas estavam “A Moreninha” (1975), “Escrava Isaura” (1976), “Sinhazinha Flô” (1977) e “Memórias de Amor” (1979).
Escrava Isaura”, adaptação de Gilberto Braga da obra de Bernardo Guimarães, é sem dúvida um dos marcos do racismo velado, mas tenaz, que paira na cultura brasileira. Tanto o romance, como a novela, consegue ser o registro literário mais racista feito no Brasil. Nele o problema da escravidão não reflete a injustiça contra a raça negra, mas a uma infeliz mulher de pele branca que teve a pouca sorte de nascer escrava. Na novela Isaura (Lucélia Santos) é perseguida e maltratada por Leôncio (Rubens de Falco). Várias vezes ela era ameaçada de ser açoitada no tronco, quando isto acontecia, o público ficava arrepiado, indignado. Os açoites à Isaura não passavam de ameaças, enquanto que os escravos negros da novela eram açoitados e não havia a comoção do público, afinal a lógica dizia aos telespectadores que os negros eram naturalmente escravos, não havia injustiça ou injustiçados, mas Isaura era branca, uma verdadeira iniqüidade ela ser escrava.

Rejeição do Público aos Amores Entre Raças

Nos anos oitenta movimentos em defesa do negro começam a ganhar força e a exigir uma maior presença dentro da teledramaturgia. Afinal é a década do centenário da Abolição, é preciso que o negro saia da senzala e das cozinhas dos patrões brancos, que se torne vizinho do branco, colega de escola. É preciso acreditar que em 100 anos do fim da escravidão no país, o negro faça parte da identidade nacional, ou da identidade vendida pelas telenovelas no exterior e apresentada para o público no Brasil.
Janete Clair foi confrontada em um programa de rádio em 1980, do porquê de não ter atores negros em papéis que não fossem de subalternos em suas novelas, ou que tivessem uma maior importância. A autora respondeu que nunca havia parado para pensar no assunto, e prometeu criar melhores papéis para os negros. Realmente ela amplia um pouco esta participação em suas tramas, “Coração Alado” (1980) e “Sétimo Sentido” (1982) refletiram um pouco a promessa, com papéis mais destacados criados para Jacira Silva e Ruth de Souza.
Em 1984 Gilberto Braga decidiu ousar um pouco mais, abordando o preconceito racial em “Corpo a Corpo”, criando o amor inter-racial entre Cláudio (Marcos Paulo) e Sônia (Zezé Motta). O público rejeitou o romance. Marcos Paulo chegou a ser indagado se estava a precisar de dinheiro para aceitar a beijar uma negra. Também Zezé Motta foi hostilizada pelo preconceito do público. Curiosamente, os atores tinham vivido um romance na vida real anos antes.
Sinhá Moça”, adaptação de Benedito Ruy Barbosa da obra homônima de Maria Dezonne Pacheco Fernandes, trazia um herói mascarado branco Rodolfo (Marcos Paulo na versão de 1986 e Danton Mello na de 2006), que libertava os negros do cativeiro, transportando-os para os quilombos. A Abolição era tratada como pano de fundo no romance de Maria Dezonne Pacheco Fernandes, mas que Benedito Ruy Barbosa deu ênfase, transformando a novela em um grande sucesso. Tony Tornado teve um bom momento na televisão como o Capitão do Mato. A segunda versão de “Sinhá Moça”, vinte anos depois da primeira, foi vista com outros olhos pelos movimentos negros do Brasil. Um inquérito civil foi instalado contra a novela, acusada de deturpar a história da escravidão no Brasil e de prejudicar a auto-estima da população negra. Um promotor do Ministério Público da Bahia acusou Benedito Ruy Barbosa de mostrar o negro como apático, passivo, que precisava de heróis brancos para libertá-lo.
Roque Santeiro”, novela de Dias Gomes, censurada em 1975, foi finalmente ao ar em 1985, com co-autoria de Agnaldo Silva. Tony Tornado, viveu Rodésio, o fiel capataz da viúva Porcina (Regina Duarte), o ator revelaria mais tarde que foram gravados três finais diferentes para a telenovela, cada um deles dando destinos distintos à fogosa viúva, em um dos finais ela terminaria com Roque (José Wilker), em outro com Sinhozinho Malta (Lima Duarte) e em um terceiro, terminaria com Rodésio. A emissora divulgou apenas os dois primeiros finais, segundo Tony Tornado, por temer que a reação do público fosse negativa diante de um possível final de Porcina com um negro.
Várias obras de Jorge Amado foram adaptadas para as telenovelas, e todas às vezes que se sucederam as adaptações, o universo da Bahia negra de Jorge Amado quase que desapareceu. Além de “Gabriela”, quase não havia negros nas novelas “Terras do Sem Fim” (1981), “Tieta” (1989) e “Porto dos Milagres” (2001). Imperdoável o branqueamento dado pela Globo à Bahia de Jorge Amado.

Maior Integração e Participação nas Novelas Atuais

A década de noventa trouxe mudanças ao conceito da imagem do brasileiro retratada pela teledramaturgia. O negro passou a ter mais espaço, saindo da submissão ao homem branco para uma classe média mais próxima da realidade. Esta mudança pequena, mas significativa, passou a ser feita de forma irreversível e contínua, já não se podia negar a identidade negra no universo teledramático.
A Próxima Vítima” (1995), de Silvio de Abreu, soprou os ventos da mudança na participação dos negros, que aqui teve um núcleo sólido, retratando uma família de classe média encabeçada por Fátima (Zezé Motta), o marido Cleber (Antonio Pitanga) e os filhos Sidney (Norton Nascimento), Jefferson (Lui Mendes) e Patrícia (Camila Pitanga). Desde então, os eternos papéis de subalternos destinados aos negros não foram extintos, mas deixaram de ser o único retrato apresentado de uma raça.
Em 1996 Walcyr Carrasco, sob o pseudônimo de Adamo Angel, levou para a televisão a personagem histórica de Xica da Silva. Dirigida por Walter Avancini e produzida pela extinta TV Manchete, “Xica da Silva” trazia Taís Araújo como protagonista, sendo um grande sucesso de público. A trama trazia vários personagens negros. Zezé Motta que vivera Xica da Silva no cinema, na telenovela fez o papel de mãe da personagem.
Nos últimos anos, a TV Globo, numa tentativa histórica de redimir-se da segregação negra em suas telenovelas, não por fazer uma autocrítica, mas por pressão das mudanças sociais dos tempos, criou em suas tramas várias personagens negras bem-sucedidas. Em 2004 lançou a sua primeira telenovela protagonizada por uma atriz negra, “Da Cor do Pecado”, de João Emanuel Carneiro, retratando o amor do milionário Paco (Reynaldo Gianecchini) pela romântica Preta (Taís Araújo). Além de “Da Cor do Pecado”, outras novelas globais trouxeram personagens negros bem-sucedidos, como “Mulheres Apaixonadas” (2003), “Celebridade” (2003), “Páginas da Vida” (2006). Em 2006 Lázaro Ramos conquistou o público brasileiro ao viver o Foguinho de “Cobras & Lagartos”, tornando-se protagonista absoluto da telenovela de João Emanuel Carneiro, fazendo cenas antológicas ao lado de Marília Pêra e Taís Araújo. Em 2007 o mesmo Lázaro Ramos viveu em “Duas Caras” o tórrido amor da sua personagem Evilásio pela rica Júlia (Débora Falabella). Ao contrário do que sucedera em Corpo a Corpo”, de 1984, o romance inter-racial conquistou o público. Em 2008, Milton Gonçalves voltou às gravatas para interpretar o rico e corrupto político Romildo Rosa de “A Favorita”. Já não precisou pedir ao autor da novela para poder usá-las, como aconteceu na década de setenta.
Se hoje há uma maior visibilidade do negro na telenovela, as oscilações continuam conforme sopram os ventos. No começo da primeira década de 2000, um polêmico projeto de lei do então senador Paulo Paim, obrigava que as emissoras de televisão incluíssem 25% de negros nas telenovelas. Imposição que causou mal estar inclusive entre os atores afro-brasileiros. O racismo não desapareceu da telenovela, a participação dos negros tão pouco alcançou o patamar que reflita o seu real lugar na identidade do Brasil. Mas perto do que já foi, um longo caminho foi percorrido, alcançado grandes vitórias. Para isto as mudanças sociais tiveram que ser absorvidas por uma conservadora e preconceituosa sociedade. E a telenovela tem esta função de mudar preconceitos e moldar opiniões. Cabe aos autores, diretores e produtores do gênero assumirem este compromisso de querer mostrar a verdadeira face do brasileiro e do Brasil.
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Terça-feira, 19 de Maio de 2009

LENDAS DE PERSONAGENS POPULARES DA HISTÓRIA

 

 

Algumas personagens da história construíram à sua volta um misticismo desbravador e pioneiro, que geraram lendas e mitos que muitas vezes superaram os próprios fatos históricos.
Deixando a verdade histórica de cada personagem aqui citado, percorreremos a lenda, o imaginário popular, o fantástico e a veracidade criativa. Três lendas relacionadas com a nossa história, sejam elas às vezes trágicas, às vezes pungentes, mas sempre vistas com ludismo diante dos acontecimentos reais.
Os Pirilampos do Abaré-Bebê, lenda do litoral paulistano, propagada pelo homem caiçara, narra os milagres supostos do padre Leonardo Nunes, jesuíta português que esteve em trabalho missionário no Brasil quinhentista. Do padre muito que se disse, muito que se lhe atribuiu em forma de lenda, como a sua gagueira e a sua incomum agilidade e rapidez nos passos. Como cenário da lenda temos as ruínas do Convento, em Peruíbe, que hoje fazem parte do patrimônio histórico brasileiro.
Antonio Conselheiro Não Morreu, passamos aqui do Brasil quinhentista para o país da jovem República, que na sua inexperiência incipiente, massacrou o arraial de Canudos, em 1897. Canudos tornara-se terra de jagunços e pessoas desvalidas pela sociedade, que chefiados por Antonio Conselheiro, rebelaram-se contra a República e defenderam a monarquia extinta. Na sua confusão mística, Antonio Conselheiro pregava o messianismo do rei português, Dom Sebastião, morto no deserto da África em 1578, cujo corpo jamais foi encontrando, gerando a lenda de que ele não morreu, mas que voltaria a qualquer momento para restituir a glória portuguesa. O próprio Antonio Conselheiro virou uma lenda messiânica para os mais antigos da Canudos reconstruída, que juraram que o velho beato jamais havia morrido.
A Nuvem Branca do Jaraguá relata a saga dos bandeirantes paulistanos, desbravadores do Brasil que quebrou o Tratado de Tordesilhas, expandindo-se para dentro da selva impenetrável. A grande muralha formada pelo morro do Jaraguá era a última fronteira que cercava o Brasil desconhecido do Brasil litoral. Belíssima lenda da gloriosa história dos bandeirantes, amados ou odiados.

OS PIRILAMPOS DO ABARÉ-BEBÊ

O bom padre jesuíta Leonardo Nunes, lá por volta de 1549, deixou as terras lusitanas para vir catequizar os brasilíndios. Sua imensa fé converteu um vasto número daqueles habitantes pagãos. Tão bom e amado era o padre, que certos dons passaram a fazer parte da sua vida. Tornou-se o homem mais ligeiro do mundo. Os índios guaranis que habitavam entre Santos, São Vicente, São Paulo de Piratininga, Itanhaém e Peruíbe, desconfiavam que o padre voava, tamanha rapidez que se deslocava de um local para o outro, subindo e descendo as serras da região. Leonardo Nunes passou a ser chamado de Abaré-Bebê, que significava “padre voador”.
Em Peruíbe, Abaré-Bebê e outros jesuítas construíram no cimo do outeiro de São João Batista uma igreja que levou o mesmo nome. Na igreja eram batizados os índios convertidos. Também ali eram enterrados. As suas urnas eram cobertas por ostras, que com o tempo formaram belos sambaquis.
Um dia Abaré-Bebê foi chamado a Roma para dar conta ao Vaticano das missões no Brasil. Foi com grande tristeza que os índios se despediram do padre, que embarcou em um navio, em Santos. Tão logo partiu, uma grande tempestade abateu-se sobre a embarcação, afundando-a em alto mar. Muito empenho teve Abaré-Bebê em ajudar a salvar os náufragos, que acabou por ele mesmo perder a vida. Os que sobreviveram contam que após salvar várias pessoas, o padre rumou para o meio da tempestade com a finalidade de socorrer tantas outras, mas uma onda gigante elevou-se ao seu redor, uma nuvem de pirilampos cercou o corpo do padre, formando uma grande luz que brilhava intensamente no meio da escuridão da tempestade. Com o rosto iluminado pelos pirilampos, o bom padre desapareceu em alto mar, nunca mais sendo visto.
Em Peruíbe, o tempo passou. Um dia espalhou-se que na velha igreja no cimo do outeiro de São João Batista estava escondido um tesouro deixado pelos jesuítas. Uma debanda de caçadores de tesouros rumou para o sítio. Cavaram, derrubaram paredes, transformando a igreja nas Ruínas do Abaré-Bebê. Numa das procuras, um dos caçadores achou um velho baú. Na esperança de ter encontrado o cobiçado tesouro, abriu a arca e viu sair de dentro dela uma grande nuvem de vaga-lumes e pirilampos, que acenderam tanta luz, quase o cegando. Era o dia da data da morte de Abaré-Bebê. Entre a nuvem de pirilampos, as paredes da antiga igreja reergueram-se, no meio do altar surgiu o rosto sorridente do bom padre, que com o seu amor habitual pelos homens, rezou ali mesmo uma missa. Todos os caçadores de tesouro pararam para contemplar o milagre e ouvir a missa de Abaré-Bebê.
Ainda hoje, por volta da data da morte do padre jesuíta, em Peruíbe, quem olha para o outeiro de São João Batista, pode ver surgir milhares de pirilampos, trazendo uma resplandecente nuvem de luz, que ilumina as ruínas, fazendo o templo reerguer-se por inteiro, e no meio do altar, o padre Abaré-Bebê volta das profundezas do mar, a rezar uma missa quinhentista.

ANTONIO CONSELHEIRO NÃO MORREU

A rebelião de Canudos chegara ao fim. Os cinco mil soldados legalistas dão os últimos tiros contra a população do arraial. Entusiasmados, gritam a vitória, adentrado pela Canudos rebelde, tomando-a de vez. Já no centro do arraial, deparam-se com a igreja nova totalmente destruída, cravada de balas. Em pé só encontraram o cruzeiro de pau de aroeira, com os seus três metros de altura, rechaçado de balas, defronte dos escombros da igreja, pingando ainda o sangue quente dos mortos. Os soldados legalistas procuram pelos sobreviventes, para impor e comemorar ante eles a vitória. Após a busca, encontram os sobreviventes: dois homens magros e cansados, um velho avançado nos anos, quase moribundo e uma criança esquálida, com olhar de terror!
Deitado numa esteira, coberto por um lençol branco, com a sua batina azul, e o inseparável crucifixo sobre o peito, jazia Antonio Conselheiro, líder da rebelião, considerado santo e messiânico pelos rebeldes dizimados. Canudos tinha sido destruída finalmente. A criança foi levada pelos soldados. Ainda olhou uma última vez para trás, a despedir-se da desolação sanguinária do arraial. Viu de repente, em frente ao cruzeiro, o beato rebelde: Antonio Conselheiro, de braços abertos, acenava-lhe, mostrando que não morrera.
Muitos anos se passaram, uma nova Canudos foi construída, para lá foi removido o velho cruzeiro de madeira, posto em um lugar que não fosse atingido pelas cheias do rio Vaza-Barris. A criança sobrevivente da guerra cresceu, casou-se e teve filhos. Antes de morrer, ainda pôde ver o Conselheiro aparecer na lua cheia de setembro, a rezar defronte ao cruzeiro. Aos seus filhos foi dado o dom de poder ver a aparição milagrosa nas noites de luar pleno.
Mas o progresso bateu às portas da nova Canudos, que foi mais uma vez destruída, desta vez submersa pela construção do açude Cocorobó. Quando as águas do açude afundaram o lugar, os netos da criança sobrevivente ainda olharam para trás. Lá estava Antonio Conselheiro, de braços abertos, com o seu bastão nas mãos. Sempre a fazer uma oração, a clamar pelo cavalo de Dom Sebastião, que voltava com ele para proteger os oprimidos do sertão, aos poucos foi sucumbindo diante das águas do Cocorobó. Nunca mais se viu a figura de Antonio Conselheiro nas noites de lua cheia.
Na terceira Canudos, a seca era combatida pela fartura das águas do açude. Os seus habitantes jamais esqueceram o beato que se rebelara contra a opressão ao homem sertanejo e contra a própria instituição republicana. Mas um dia a seca voltou a Canudos. E das profundezas do açude, de repente a Canudos esquecida no tempo emergiu, vomitando todo o passado sangrento de outrora. E numa noite de lua cheia de um setembro seco, de repente uma velha senhora, neta da criança sobrevivente da guerra, ela própria a mulher mais velha do local, viu surgir das águas emergidas a igreja destruída. Na beleza da visão, viu o velho cruzeiro brilhar em cada buraco das balas que o perfurara. À sua frente, ajoelhado, a rezar, lá estava Antonio Conselheiro. Ao ver a mulher, o beato levantou-se, apoiando-se no seu bastão. A sua batina azul brilhava à luz do luar, seu rosto era iluminado pelas estrelas. De braços abertos, como se abençoasse a velha mulher, Antonio Conselheiro chamou por el rei Dom Sebastião, já pronto para montar no cavalo do rei menino, pronto para cavalgá-lo sobre as águas quase secas do açude. A velha mulher já poderia morrer aliviada, com a certeza que a morte brutal dos seus antepassados não fora em vão. Antonio Conselheiro, ao lado de Dom Sebastião, vagava pelos desertos secos do sertão do mundo. Se Canudos foi submersa pelo sangue dos seus mortos e pelas águas do Cocorobó, das suas entranhas emergia, seca, sem perdão, as suas ruínas, os clamores dos mortos, as vozes dos fantasmas que não se calaram, e, principalmente, emergia o beato... Antonio Conselheiro não morreu...

A NUVEM BRANCA DO JARAGUÁ

Quando os primeiros colonizadores chegaram à costa sul das terras brasileiras, despertou-lhes atenção especial uma imensa elevação chamada de "Senhor dos Vales”, que mais tarde ficou conhecido como morro do Jaraguá. Os primeiros habitantes da Serra do Mar, viam o Jaraguá de longe, recortando o horizonte azul, imponente e belo, um gigante no meio da selva hostil, ainda desconhecida. Várias eram as informações de que no vale havia grandes jazidas de ouro e pedras preciosas. Misterioso, o morro do Jaraguá era a última fronteira entre o litoral e o sertão desconhecido. O fascínio pela conquista além do morro era a obsessão dos bandeirantes.
Considerada região sagrada pelos índios, o vale era defendido por eles, que constantemente atacavam os moradores de Piratininga. Para penetrar o sertão desconhecido, além da muralha do morro do Jaraguá, foi convocada uma força comandada por Antonio Sardinha, o mais temido inimigo dos silvícolas. Assim, tomando o morro como bússola, começou a penetração do desconhecido sertão. A partir de Antonio Sardinha, várias bandeiras foram organizadas para pear índios, conquistar o sertão e chegar ao interior da colônia, repleto de lendas atemorizantes, que assustavam até mesmo os indígenas nativos da região e suas circunvizinhas.
Outros bandeirantes seguiram, outras bandeiras... outros desbravadores paulistas... Manuel Preto, Belchior Dias Carneiro, Antonio Raposo Tavares, Fernão Dias Pais, Bartolomeu Paes de Abreu... Todos eles partiram em busca do ouro, das pedras preciosas, dos índios, do domínio do interior da colônia. Seguiam a partir do Jaraguá. Podiam avistar o morro por três dias de caminhada, sabendo que por lá deixavam a família, a única certeza da volta era acalentada pelo sonho de enriquecer. Sonho muitas vezes terminado pelas febres da selva, pelo combate com os índios, pela fome do sertão agreste e inóspito.
Cada vez que partiam, os bandeirantes deixavam as mães, as mulheres, os filhos, todos presos à saudade e à ilusão de uma volta que, em muitos casos, jamais aconteceria. Para dar adeus aos maridos e aos filhos que partiam, as mulheres subiam ao pico do Jaraguá, empunhavam lenços e lençóis brancos, amarrados a um mastro, que ao vento, formavam as flâmulas brancas do adeus. Assim, paradas, solitárias, tristes, ficavam a acenar para os seus homens que se distanciavam para dentro da mata desconhecida. Por lá ficavam até a certeza, três dias depois da partida, de que os seus entes queridos já não poderiam vê-las. Era o adeus, o último olhar, a última lágrima, o último momento de proximidade simbólica àqueles que jamais retornariam.
Desesperadas pela espera, muitas lágrimas derramaram aquelas mulheres no pico do Jaraguá. Lágrimas eternas, de olhos que jamais voltariam a ver os seus destemidos e desbravadores homens. A saudade e a tristeza da espera sem fim, faziam com que tão sofridas mulheres definhassem para sempre.
Milhares de bandeiras partiram... Poucas voltaram. Milhares de mulheres subiram o pico do Jaraguá para a cerimônia do adeus. Suas lágrimas foram tantas, que correram pelo morro, evaporadas pelo sol. Das lágrimas, uma densa nuvem branca formou-se sobre o morro. Nuvem construída pela dor do adeus, da esperança e da saudade. Cada gota de lágrima representava um bandeirante que partira. Cada lágrima juntou-se à nuvem branca do adeus, que permaneceria para sempre no topo do pico do Jaraguá.
Mesmo hoje em dia, já distante o tempo das bandeiras, quando chega o mês de maio, época que no passado servia como marco da partida dos bandeirantes, esteja o tempo nublado ou o céu límpido, quem olhar para o morro do Jaraguá, verá em seu topo a nuvem branca formada das lágrimas da tristeza das mulheres dos gloriosos bandeirantes paulistas, desbravadores dos sertões brasileiros. A nuvem branca ainda persiste no céu do Jaraguá, como prova de uma época construída pela dor e pela coragem.

Ilustrações: José Lanzellotti
Adaptação livre de Jeocaz Lee-Meddi para textos de Brasil, Histórias, Costumes e Lendas
 
publicado por virtualia às 04:25
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Sexta-feira, 15 de Maio de 2009

OS AMANTES E OUTROS CONTOS - DAVID MOURÃO-FERREIRA

 

 

Quando comparamos a ficção com a história, podemos situar os autores no exato momento histórico da criação das suas obras, e assim compreendermos melhor a sua ficção. De uma forma ou de outra todos estão lá, inseridos no tempo e na história. Com os contos de David Mourão-Ferreira - que vamos analisar tal momento preso na história - não acontece este tempo histórico. Lemos os seus contos e chegamos a conclusão de que eles poderiam ter sido escritos hoje, ou amanhã, talvez ontem, enfim, são de uma atemporalidade que faz da sua obra algo fascinante e perturbador.
Da obra de David Mourão-Ferreira, destaca-se em poesia : Tempestade de Verão (1954), Cancioneiro de Natal (1971), No Veio de Cristal in Obra Poética 1948-1988 (1988), Música de Cama (1994); as novelas de Gaivotas em Terra (1959); os contos: Os Amantes (1968) E Outros Contos (1974), As Quatro Estações (1980); além de vários ensaios, crítica, crônica e teatro. Escreveu ainda o romance Um Amor Feliz (1986). Foi como contista que a crítica literária consagrou David Mourão-Ferreira, e será como contista que iremos também saudá-lo.
Tomaremos como referência o seu livro de contos Os Amantes e Outros Contos (7ª edição - Editorial Presença -1996). Curiosamente o livro teve a sua primeira edição no mês de Maio de 1968. Sobre a primavera deste ano não é necessário esclarecer a sua importância para a história, lembramos-nos automaticamente dos estudantes da Sorbonne, dos canhões soviéticos nas ruas de Praga, e da queda de Salazar da sua cadeira no fim do verão. Os ventos da história a soprarem mudanças. Inicialmente o livro era composto por cinco contos, chamava-se Os Amantes, que foram escritos ao longo dos anos sessenta: O Viúvo, em 1962; Nem Tudo é História, em 1966; A Boca, em 1967; Amanhã Recomeçamos e Os Amantes, em 1968. Os seis anos que há de espaço entre o primeiro e o último, são os perturbados anos sessenta, que a tudo transforma e a tudo agride. Nunca o conceito das tradições políticas, familiares, religiosas e morais foram tão contestadas, tão criticadas e mesmo desafiadas. Pelas ruas marchavam milhões de jovens de roupas coloridas e cabelos longos. Nos palcos dos teatros, o mundo parava para assistir ao Hair; os Beatles proclamavam-se “mais populares do que Jesus Cristo”. O mundo de ficção de David Mourão-Ferreira nesses contos é assim, perturbador, a quebrar tabus, a trazer-nos um cheiro de erotismo e violência onírica em cada conto. Em 1974, foi acrescentado à segunda edição mais três contos e este passou a chamar-se Os Amantes e Outros Contos. Os outros contos - Agora Que Nos Encontramos, Trepadeira Submersa e Ao Lado de Clara -, apesar de terem sido escritos entre 1973-1974, traziam a atmosfera (segundo o próprio autor), dos outros cinco.

Simulacros de Tempo e de Narrativas

A narrativa dos contos mostra-nos cenários e espaços perdidos em um universo mágico, em simulacros de tempo e de narrativa. Ao ler os contos de Miguel Torga, não conseguiríamos imaginar que aquelas personagens pudessem viver além das aldeias e das montanhas transmontanas. Com David Mourão-Ferreira o espaço é extratemporal, as personagens podem circular tanto pela Europa Central, como por Portugal, como pelo Leste Europeu, porque quem caminha não são os seus corpos, mas sim as suas mentes, as suas almas. Aqui o fantástico é quem impera.
Ao lermos os contos, não estamos a descobrir certezas e fatos históricos, estamos a ser transportados numa alucinante aventura da mente e do corpo à procura dos sentidos, todos eles aguçados. O cheiro, tanto do mar, como da carne, como do sangue, todos perdidos numa fusão do olfato. O tocar nos corpos, nos objetos, no inatingível de nós mesmos, no enganar do tato. Ver as sucessivas imagens da mente, quase a nos tragar em labirintos de fotografias a preto e branco, em lembranças envoltas por brumas, em prisões no tempo e no espaço, onde as cores são vivas e cinzas ao mesmo tempo. Talvez ouvir e sentir o gosto das coisas seja o enigma dos sentidos menos aguçados, mas sem dúvida os mais procurados.
Para explicar a narrativa de David Mourão-Ferreira, vejamos o que diz no livro o posfácio de Eduardo Prado Coelho:

Indiquemos ainda o jogo que entrelaça o tempo da narração, com os vários tempos da ficção. Aquele que conta instala-se num extratempo: e os vários tempos da ficção driblam, fintam, ultrapassam, esperam, serpenteiam o tempo da narração. Esse privilégio de extratemporalidade que o narrador adquire permite que ele continue a narrar depois da sua morte, sem que esse “depois” lhe venha sequer ferir o fluxo da voz narrativa, circulando ele sem entraves no espaço de ninguém onde estes contos nos transportam.”

Confrontos Entre a Vida Psicológica e a Morte Física

Para melhor compreendermos a linguagem dos contos, é preciso que nos deixemos guiar pelo universo deles. Comecemos pelo conto que dá título ao livro: “Os Amantes”. Talvez o que mais surpreenda, não pela atitude do homem diante da morte, mas da morte diante do homem. A narrativa mostra-nos um homem que foge das imediações de um quartel militar, após o falhanço de uma rebelião. Perseguido, ele tenta chegar à casa da mulher desejada. Depois de uma fuga alucinante, acorda nos braços da amante crioula. Passado o momento do idílio dos corpos, o homem acorda só e nu. De repente é prisioneiro em uma estranha sala, na qual encontra álbuns de fotografias que lhe revelam toda a sua vida. De uma forma fantástica a história do homem é contada através das fotografias. Aos poucos, ele revela-se em várias faces e fases, a que foi em criança, a que foi depois de uma plástica que lhe mudara o rosto (seria um fugitivo nazista?), a sua vida atual em um país tropical, os braços da amante, o seu corpo cor de ébano. Na tentativa de fuga da casa da amante, todos os quartos estão fechados. Ele está nu, pois as suas roupas desapareceram. Nu no confronto final consigo mesmo. Por fim, o homem descobre que não há saída, pois ao fugir do quartel, tinha sido abatido e morto. Não enganara a morte, mas fora enganado. Conformado, deita-se ao lado da amante, também ela morta, aceitando a vitória da sua última rebelião, ou seja, contra a morte. Ao narrar a sua história, ele o faz já morto, já do outro lado das fotografias:

Ajoelho e curvo-me sobre as folhas abertas, à espera de mais revelações. Ao contrário, porém, de todos os outros, este álbum encontra-se ainda intacto, sem uma única fotografia colada nas suas páginas. Muito mais me intriga, aliás, o modo como ele e o anterior aqui surgiram, o modo como ambos pareceram empurrados... E descubro, de súbito, que tanto esta como a outra estante, de escura madeira envernizada, se dispõem em torno de cilindros metálicos - que fortemente as prendem ao tecto, que certamente as ligam ao andar de cima, que porventura as tornam comandadas a partir daí. Fazem lembrar, na parte superior, periscópios de submarinos. E principiam agora a mover-se, numa lentíssima rotação... E a seguir mais depressa, cada vez mais depressa! E as estantes principiam a girar, a rodar, a rodopiar... Tão vertiginosamente a velocidade vai aumentando que já alguns álbuns começam a ser projectados, atirados para o chão, arremessados de encontro às paredes; e já outros se desconjuntam, se rasgam, se esfarrapam, ainda antes de saírem das prateleiras... Com semelhante ritmo, de segundo a segundo mais frenético, decerto que nem um permanecerá no seu lugar.

Se compararmos os contos de David Mourão-Ferreira com os contos de Sophia de Mello Breyner Andresen - nomeadamente “A Viagem” e “A História da Gata Borralheira” - , vamos encontrar o fantástico como ponto de convergência. Mas o fantástico de um difere largamente do outro. Enquanto que Sophia de Mello Breyner Andresen faz do universo fantástico dos seus contos algo assim como as fantasias dos contos infantis, ou a fantasia do popular, em que já ouvimos falar diversas vezes da visita do diabo à casa de um rico senhor, deparamos com o fantástico como técnica de escrita, mas com um conteúdo que traz sempre uma evidência religiosa, intencionalmente católica, onde o bem e o mal tecem dois muros distintos, quando um atravessa o outro, o efeito é sempre o castigo, a moral e os dogmas como tema. David Mourão-Ferreira faz da técnica do fantástico o pulsar dos sentimentos e das sensações, o saltar da alma entre o psicológico e o metafísico. No seu mundo fantástico o universo das personagens não acompanha os seus corpos, mas sim as suas almas, os seus sonhos, os seus medos. O homem não é um eterno viajante do bem e do mal, é apenas prisioneiro do seu vazio, do seu corpo a flutuar no nada, sente-se quase que o rodopiar da alma, a vertigem da morte, o latejar do sangue. Vida e morte, paixão e desejo, tudo a formar um emaranhado de emoções que se tornam um todo. A poesia é latente nas sucessivas palavras cobertas de labirintos caudalosos, de olhares presos nas imagens dispersas no infinito do nosso eu pleno, quase a flutuar no inatingível, na solidão suprema de cada ser, nascimento e morte tornam-se o redimir dessa solidão.

Armadilhas e Desejos nos Rostos das Mulheres

No conto “O Viúvo”, a narrativa do universo psicológico das personagens toma o lugar do fantástico. O conto é na terceira pessoa, e o que está em causa são os desencontros do amor. Novamente a morte como pano de fundo. Um homem (Adriano) de meia idade, que ao ter um caso extraconjugal com uma mulher (Paula), faz do seu prazer o universo, e quando perde a amante em um acidente de automóvel, percebe que o amor é mais ambíguo do que o prazer. Torna-se viúvo dos desencontros da vida e do amor. Viúvo dos seus sentimentos. Deixa Lisboa para passar o natal nas Berlengas, num hotel que costumava ir com os pais quando jovem. Encontra-se com Rita, uma amiga antiga, também ela perdida entre as confusões dos sentimentos e os desencontros da solidão. As personagens conhecem-se umas as outras, mas se revelam em cada gesto:

E há um ano? Precisamente há um ano, mas um pouco mais tarde (já então as rasgadas janelas do bar do hotel se afogueavam, por entre a chuva do crepúsculo, com o revérbero das luzes de Lisboa...), há um ano, precisamente há um ano, tudo teria sido porventura diferente - se houvesse chegado a murmurar, a sussurrar, a arremessar, de qualquer modo, o nome da Paula.

Ao deixarmos o universo de desilusões de “O Viúvo”, vamos percorrer o universo inquietante de “Agora Que Nos Encontramos”. Mais uma vez o fantástico é quem nos vai conduzir como uma brisa turva no universo das personagens. Uma viagem às vezes erótica, outras vezes acidentada, muitas vezes armadilhada. Aqui uma figura não identificada fala com um homem que está numa cama de hospital, após uma intervenção cirúrgica por causa de uma úlcera. A estranha personagem faz uma viagem ao passado do homem,. A figura de uma bela e sedutora mulher é mostrada nos momentos de maior perigo da vida do homem. A primeira imagem é a da mulher o mostrar os seios dentro de um vagão de comboio, antes de ele colidir e arremessar o homem para baixo dos destroços, sem sentidos, quase morto. A viagem continua por um cabaré de Amsterdã. Uma mulher a fazer strip-tease, a conduzir novamente para um desejo que não é concretizado. Todas as vezes que ele a tem, ele a perde, em cada encontro perde um pouco da vida. Agora, no hospital, quase moribundo, é o encontro decisivo com a figura da mulher, o encontro do mergulho no vazio, o encontro da morte na forma de mulher, a mesma mulher que sempre perseguiu a imagem durante toda a vida, quase como uma promessa nunca cumprida de possuir-lhe o corpo. Mais uma vez a certeza de que o homem mergulha dentro das suas obsessões de imagens e desejos, fazendo deles os mais íntimos prazeres da existência não vivida, onde o caminho conduz armadilhadamente ao nada da morte e do espaço que faz da alma um salto no éter:

É chegado o momento (vês?) de ser eu própria a abrir o casaco. Nada receies. Não se trata agora de nenhuma trucagem. Não vais tornar a ver - descansa! - o esqueleto que viste em vez do corpo da outra rapariga. Agora é diferente: agora não vês nada; não há nada. Mas talvez este nada seja tão ilusório como o tudo que sempre procuraste no corpo de tantas mulheres. Seja como for, sei que é a altura de ficar contigo. Nem seria possível - agora que nos encontrámos - que mais uma vez nos viéssemos a perder.”

Viagem Dentro de um De Soto Preto

Dois contos tocam por si mesmos, o lado exótico da sensualidade, aqui traduzida numa forma ínfima de prazer. Em “Trepadeira Submersa” e “Ao Lado de Clara”, o homossexualismo feminino é visitado de uma forma sensual, quase como numa pintura renascentista nas descrições de “Ao Lado de Clara”. No primeiro - “Trepadeira Submersa” -, a personagem que narra a história oculta o seu sexo quase até ao fim do conto, quando estamos iludidos de que quem narra é um homem, surge-nos o narrador a revelar-se atrás da personagem o seu sexo de mulher e a sua atração pela professora, mulher mais velha, mais conservadora. A aluna escreve poemas para a professora, e na sua coragem de ninfeta apaixonada e ardente, não tem medo de revelar-se, tem medo da desilusão da musa que esconde a luz que lhe revela os poemas. Mas a professora, sem nunca perder o título, critica os poemas, a escrita, o português mal trabalhado, menos os desejos da aluna. Pede-lhe de uma forma velada, nunca diga explicitamente, que esqueça tudo, pois não é possível correspondência, pede que ela leve embora os seus sentimentos, mas que lhe deixe os poemas, único motivo pelo o qual bastaria uma vida de enganos para tê-los:

Ás mãos tinham retirado, debaixo do pesa-papéis, um pequeno maço de folhas onde reconheci a minha letra. E não era só o meu rosto que me parecia ter ficado tão vermelho como o vestido que ela trazia, como o próprio pesa-papéis: era também o mar, era também a água do aquário, eram também as lombadas de todos os livros. Por outro lado, só então reparei como aquela ténue e caprichosa flora, lá dentro do aquário, sugeria o desenho de uma trepadeira submersa.

Ao Lado de Clara”, a vida do palco confunde-se com a vida cotidiana. Atores vivem em casa cenas repetidas do palco. Verdade e ficção caminham nas mais diversas formas. Obsessão e desejo confundem-se com o universo das personagens. A atriz e o autor, o homem e a mulher, a personagem que parece criar vida e emergir das páginas angustiadas do autor. Por todos os lados, os olhos do narrador deparam-se com ninfas a transbordar de desejo os seus corpos. Mulheres que encontram no desejo mais íntimo do corpo o olhar de voyeur dos sátiros e dos faunos, ou seja, dos homens sedentos de penetrar no universo do sexo do qual assistem calados, frustrados. O teatro e a vida a criar simulacros para quebrar com o marasmo, a tentar criar tentações e libertações do corpo e das máscaras. Cada personagem dissimula, como se estudasse um texto diante da vida. Aqui o psicológico é mais denso do que o fantástico, cada personagem traz dentro de si uma sutil armadilha, um forte desejo:

Em todas as ruas serão em número cada vez maior os automóveis abandonados. Aperceber-te-ás de como eles vão sendo cada vez mais aproveitados por amantes de acaso, para encontros de ocasião. E verás sempre, no banco traseiro do enorme De Soto negro, de antes da guerra, o mesmo grupo das duas mulheres de meia-idade, estreitamente enlaçadas, enquanto, no banco da frente, todo encolhido, um homenzinho lívido e calvo, que se parece com Giorgio, viciosamente as espreita pelo retrovisor.(...)”

Os contos são repletos de objetos que nos surgem como simbólicos. No texto acima - “Ao Lado de Clara” - , reencontramos neste conto de 1973, o mesmo automóvel preto, o De Soto, que nos foi revelado em 1966 no conto “Nem Tudo é História”. Este conto abre um leque no fantástico e no maravilhoso dos contos de David Mourão-Ferreira. Talvez o mais violento de todos eles, onde nascimento e morte têm um momento único, o sangue jorra das luvas da mulher misteriosa, as mesmas luvas que vamos encontrar na outra personagem de “Agora Que Nos Encontramos”, também de 1973. Em 1973 David Mourão-Ferreira voltava com estes dois contos ao universo iniciado em 1966. Um começa onde o outro termina, ou vice-versa. Sempre o meteoro inconstante das imagens diante dos delírios supremos da vida e da morte. “Nem Tudo é História” narra-nos a vida de um homem quase que vista em um ecrã gigante, em que ligamos a tela e diante dos nossos olhos passam guerras, um vulto de mulher, um braço e uma luva, um carro negro, bares, gritos, um parto, o sangue, a história, mesmo quando não nos é dada uma história:

Noites e noites a fio, quase de madrugada, desenrolava-se a mesma cena: um grande automóvel preto - um carro americano de antes da guerra, talvez um De Soto dos anos trinta - parava de repente ao pé de mim. O motorista, fardado de negro, mantinha-se muito hirto no seu lugar; eu não chegava sequer a ver-lhe o rosto. Mais me intrigava aliás o próprio carro, que parecia ter estado debaixo de água - ou ter sido fabricado no fundo do mar - , embora não apresentasse, na carroçaria, nenhum vestígio de humidade. Mas o capot faiscava, na sombra, como o dorso de um cetáceo; o flanco fusiforme dos faróis denunciava não sei que secreto comércio com os peixes; e a porta de trás, que vinha agora de entreabrir-se - sem que ninguém lhe houvesse tocado -, evocava irresistivelmente, pelo crebro palpitar em que ficara, o inquietante mistério de uma guelra.”

E é no interior de um automóvel preto, um De Soto dos anos trinta, que entramos no mundo dos contos de David Mourão-Ferreira. Nele percorremos as páginas de “A Boca”, onde uma boca oculta surge nas ancas de Rossana. Aqui temos a nítida sensação de mergulharmos num quadro surrealista, talvez numa aquarela de Dali. Mas o De Soto não pára e continuamos pelo universo de “Amanhã Recomeçamos”, um conto feito só com diálogos, cada diálogo é uma revelação perturbante, quase paranóica, de um teatro esquizofrênico em que as personagens fazem das deixas as armadilhas que nos arremessará para o abismo, sem que tenhamos dado por isso. Por fim o De Soto é deixado numa sucata presa no tempo, em nós a certeza de que a viagem foi poética, perturbadora, e o universo de David Mourão-Ferreira é quase um ícone nos contos portugueses nas últimas décadas do findar do segundo milênio.

David Mourão-Ferreira

David Mourão-Ferreira foi um dos maiores poetas contemporâneos portugueses, nascido em Lisboa, em 24 de fevereiro de 1927, destacou-se também como contista e já no fim da vida, revelou-se um grande romancista.
Além da literatura, teve uma vida dedicada ao magistério, sendo ao longo dos anos, professor dos ensinos técnico, liceal e universitário. Licenciado Filologia Românica, a partir de 1957 foi professor da Faculdade de Letras de Lisboa, tendo a carreira interrompida por questões políticas na época da ditadura salazarista. Neste período, em 1963, foi eleito secretário-geral da Sociedade Portuguesa de Autores. Após a Revolução dos Cravos, em 1974, que pôs fim ao salazarismo, o escritor ocupou várias vezes o cargo de secretário da cultura em diversos governos.
Poeta, romancista, crítico e ensaísta, David Mourão-Ferreira é dono de uma obra densa, de uma tensão lírica latente, onírica, sempre voltada para o maravilhoso e fantástico da mente humana, de uma linguagem rítmica e rica, repleta de imagens eróticas latentes, que o fez ser visto como o poeta do erotismo da literatura portuguesa. Sua obra está voltada para o inalcançável da alma humana, sempre em equilíbrio com a mente, mas jamais com o corpo e com a vida.
Vários poemas de David Mourão-Ferreira tornaram-se fados de sucessos interpretados pela incomparável Amália Rodrigues.
Desde cedo David Mourão-Ferreira ligou a sua vida à literatura, as suas primeiras poesias foram publicadas aos 18 anos, na Seara Nova, revista da qual seu pai era colaborador. Na década de 50 revela uma plenitude literária como poeta, ensaísta, crítico, dramaturgo e prosador. Em 1954 torna-se um dos diretores de Távola Redonda. Em 1986 publica o romance Um Amor Feliz, que lhe valeu a consagração como escritor, atraindo um grande número de leitores para a sua obra, o romance rendeu vários prêmios, entre eles o Grande Prêmio de Romance da APE e o Prêmio de Narrativa do Pen Clube Português.
David Mourão-Ferreira viria a falecer em 16 de junho de 1996, deixando uma belíssima e representativa obra da literatura contemporânea portuguesa.

OBRAS:

Poesia

1946 – Rumos (antologia de contos e poemas em co-autoria)
1950 – A Secreta Viagem
1954 – Tempestade de Verão
1958 – Os Quatro Cantos do Tempo
1962 – Infinito Pessoal
1962 – In Memoriam Memoriae
1966 – Do Tempo ao Coração
1967 – A Arte de Amar (antologia)
1969 – Lira de Bolso (antologia)
1971 – Cancioneiro de Natal
1973 – Matura Idade
1974 – Sonetos do Cativo (antologia)
1976 – As Lições do Fogo (antologia)
1980 – Entre a Sombra e o Corpo
1980 – Ode à Música
1980 – Obra Poética (antologia 2 volumes)
1980 – À Guitarra e à Viola (1º volume da antologia Obra Poética)
1980 – Órfico Ofício (2º volume da antologia Obra Poética)
1983 – Antologia Poética
1985 – Os Ramos Os Remos
1987 – O Corpo Iluminado
1987 – As Pedras Contadas (antologia)
1988 – Obra Poética 1948-1988
1988 – No Veio do Cristal in Obra Poética 1948-1988
1992 – Lisboa Luzes e Sombras
1992 – A Arte de Amar (antologia)
1994 – Música de Cama (antologia)

Conto e Novela

1959 – Gaivotas em Terra (novelas)
1968 – Os Amantes (contos)
1974 – Os Amantes e Outros Contos (contos)
1978 – Maria Antónia e Outras Mulheres (antologia de contos escolhidos)
1980 – As Quatro Estações (contos)
1987 – Duas Histórias de Lisboa
1992 – Maria da Luz e Outras Esfinges (antologia)

Romance

1986 - Um Amor Feliz

Teatro

1956 – Contrabando
1965 – O Irmão

Ensaio, Crítica, Crônica

1960 – Vinte Poetas Contemporâneos
1961 – Aspectos da Obra de Manuel Teixeira-Gomes
1962 – Motim Literário
1966 – Hospital das Letras
1969 – Discurso Direto
1969 – Tópicos de Crítica e de História Literária
1976 – Sobre Viventes
1977 – Presença da “Presença”
1979 – Lâmpadas no Escuro
1987 – O Essencial Sobre Vitorino Nemésio
1988 – Nos Passos de Pessoa
1988 – Marguerite Yourcenar: Retrato de Uma Voz
1989 – Os Ócios do Ofício
1989 – Sob o Mesmo Teto
1992 – Tópicos Recuperados
1992 – Terraço Aberto (antologia)
1992 – Elogio Acadêmico de Vitorino Nemésio
1993 – Evocação de Sebastião da Gama
1993 – Magia Palavra Corpo
1995 – Em Movimento

Divulgação e Tradução de Poesia

1972 – Imagens de Poesia Européia - Volume I (Grécia, Roma, Os Séculos Obscuros)
2003 – Vozes da Poesia Européia I (Colóquio-Letras, nº 163, Janeiro-Abril)
2003 – Vozes da Poesia Européia II (Colóquio-Letras, nº 164, Maio-Agosto)
2003 – Vozes da Poesia Européia III (Colóquio-Letras, nº 1645, Setembro-Dezembro)

Vários

1993 – Jogo de Espelhos – Reflexos para um Auto-Retrato

CRONOLOGIA:

1927 – Nasce no dia 24 de fevereiro, em Lisboa, David Mourão-Ferreira, filho de Teresa de Jesus Mourão-Ferreira e de David Ferreira.
1929 – Nasce Jaime Alberto, irmão de David.
1942 – Publica o seu primeiro artigo no jornal escolar Gente Moça, órgão do Colégio Moderno.
1945 – Inicia a carreira literária publicando os primeiros poemas nas páginas da revista Seara Nova.
1946 – Colabora com as revistas Seara Nova e Aqui e Além.
1947 – Estreita amizade com os escritores José Régio, José Rodrigues Miguéis e Antonio Manuel Couto Viana, entrando para o grupo de intelectuais que freqüentavam o Café Chave d’Ouro.
1948 – Colabora como ator e autor, sob a direção de Gino Saviotti, no Teatro-Estúdio do Salitre.
1949 – Publica na revista Ocidente o artigo Acerca de uma Trajetória na poesia de Cesário Verde.
1950 – Funda com Antonio Manuel Couto Viana e Luís de Macedo, as folhas de poesia Távola Redonda. Publica seu primeiro livro de poesia, A Secreta Viagem.
1951 – Licencia-se em Filologia Romana. Inicia uma longa amizade com Amália Rodrigues, para a qual escreveria a letra de muitos fados.
1953 – Casa-se com Maria Eulália de Carvalho.
1954 – Publica o livro de poesias Tempestade de Verão. Da união com Maria Eulália nasce o primeiro filho, David João.
1956 – Colabora com a revista Graal e com o jornal Diário Popular. Inicia amizade com Natália Correia.
1957 – Assistente da Faculdade de Letras de Lisboa. Nasce a filha Adelaide Constança.
1958 – Publica Os Quatro Cantos do Tempo (poesia).
1959 – Recebe pelo livro de novelas Gaivotas em Terra, o Prêmio Ricardo Malheiro, da Academia de Ciências de Lisboa.
1963 – Por perseguição do regime salazarista, não lhe renovam o contrato de professor da Faculdade de Letras de Lisboa.
1964 – Inicia com os programas radiofônicos Música e Poesia e Hospital das Letras a colaboração com a RTP (Rádio Televisão Portuguesa).
1965 – É afastado da RTP. Logo a seguir acontece um grande protesto contra o fechamento temporário da Sociedade Portuguesa de Escritores. Nomeado secretário-geral da Sociedade Portuguesa de Escritores.
1966 – Casa-se pela segunda vez, com Maria Pilar de Jesus Barata.
1968 – Publica o livro de contos Os Amantes.
1970 – É reintegrado na função de docente da Universidade de Lisboa.
1974 – Assume a direção do jornal A Capital.
1976 – Nomeado Secretário da Cultura.
1977 – Morre o irmão Jaime Alberto.
1981 – Assume a direção das Bibliotecas Itinerantes e Fixas da Fundação Calouste Gulbenkian.
1984 – Eleito presidente da Associação Portuguesa de Escritores.
1986 – Publica o seu único romance, Um Amor Feliz, pelo qual recebe vários prêmios, entre eles, o Grande Prêmio de Romance da Associação Portuguesa de Escritores, o Prêmio de Narrativa do Pen Clube Português, Prêmio D. Dinis da Fundação Casa de Mateus e o Prêmio de Ficção do Município de Lisboa.
1991 – Nomeado presidente do Pen Clube Português.
1994 – Publica a antologia de poesia erótica Música de Cama.
1995 – É acometido de uma grave doença, com a qual luta com determinação.
1996 – Recebe o Prêmio de Consagração de Carreira da Sociedade Portuguesa de Autores. Morre em Lisboa, no dia 16 de junho, sendo sepultado no Cemitério dos Prazeres.
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Quarta-feira, 13 de Maio de 2009

POEMAS AMERÍNDIOS

 

 

O Estado moderno é resultado de várias conquistas que resultaram na submissão dos mais fracos pelos mais fortes, na dizimação de culturas e extinção de muitos povos. A Terra Prometida por Deus, onde jorrava o leite e o mel era habitava por tribos pagãs e de costumes hostis aos ensinamentos judaicos, foi preciso a guerra e a aniquilação dessas tribos para que se erguesse o Templo ao Deus de toda a civilização ocidental.
Assim também aconteceu com a América descoberta por Cristóvão Colombo. Os grandes navegantes encontraram às costas do Mar Oceano (Atlântico), imensas terras transbordantes de leite e mel, de rios límpidos e solo fértil. O novo continente urdia por ser explorado. Mas povos pagãos que nessas terras habitavam, eram providos de uma cultura paralela, de deuses próprios e filosofia voltada para a natureza, esses povos contrapunham aos desígnios dos conquistadores europeus. Considerados ilidimos na sua fé, aos poucos os americanos verdadeiros, chamados de índios pelos europeus, e que habitavam a América do Alasca à Terra do Fogo, foram conquistados, catequizados, aprisionados, mortos e extintos, dando passagem para fronteiras invisíveis de nações concretas.
Do grito das civilizações pré-colombianas, alguns poemas chegaram aos nossos dias. Chegam aos nossos ouvidos como uma brisa ecoada pelo sangue derramado em nome da civilização moderna, mostrando-nos a imarcescibilidade de uma glória que o tempo aclama. São os Poemas Ameríndios, lúdicos na natureza em que se inspiram, eternos no grito de nações extintas e povos que derramaram o seu sangue em nome da utopia do que se veio a ser o continente descoberto por Colombo, a América única, sem norte, sem sul, sem fronteiras ou símbolos patrióticos.

Extrato do Discurso de Seattle, Chefe dos Dwamish e Squamish

“Cada parcela deste solo é sagrada, no modo de ver do meu povo. Cada encosta, cada vale, cada planície e bosque foi santificado através de algum acontecimento triste ou alegre em dias há muito desaparecidos. A própria poeira sobre a qual vocês agora se erguem responde mais amorosamente aos seus passos do que aos vossos, porque foi enriquecida com o sangue dos nossos antepassados e os nossos pés nus estão conscientes da empatia do contacto. Até as criancinhas que aqui viveram e se divertiram durante uma breve estação irão amar estas solidões sombrias e, ao cair da noite, saudarão os assombrados espíritos que regressam. E quando o último Pele-Vermelha tiver perecido e a memória da minha tribo se tiver tornado um mito entre o Homem Branco, os mortos invisíveis da minha tribo irão pulular por essas praias; e quando os filhos dos vossos filhos se julgarem sós no campo, no armazém, na loja, na estrada ou no silêncio das florestas sem caminhos, não estarão sós. Pela noite, quando as ruas das vossas cidades e vilas estão silenciosas e vocês as supõem desertas, estarão apinhadas com as hostes que regressam e que outrora encheram e ainda amam esta bela terra.”

Poema (Astecas)

As flores nascem, amadurecem, completam-se,
Abrem as corolas.
- De dentro de saem as flores do canto:
derrama-las sobre os homens, sobre eles as esparzes:
tu és um cantor!
- Fruí do canto, todos vós,
fruí, dançai, entre as flores respira o canto:
e eu, cantor, respiro no meu canto!

Canto de Amor de um Jovem (Kwakiutles)

Cada vez que como, como a dor do teu amor.
Cada vez que tenho sono, sonho com o teu amor.
Cada vez que estou em casa deitado de costas, estou deitado sobre a dor do teu amor.
Cada vez que ando, ponho o pé sobre a dor do teu amor.

Canção (Araucanos)

A terra inteira é uma só alma,
somos parte dela.
Mudar, sim, mudarão as nossas almas,
mas não morrerão nunca as nossas almas.
Somos uma alma única
como única é a terra.

Canção do Tear Celeste (Tewas)

Pai-Céu, Mãe-Terra,
somos vossos filhos, e nas costas cansadas
trazemos as dádivas.
Para nós mesmos trazemos as vestes esplendorosas.
Que seja a urdidura a luz branca da aurora,
que a trama seja a luz vermelha da tarde,
que sejam as franjas a chuva que tomba,
que a orla seja o arco-íris que se levanta.
Para nós mesmos tecemos as vestes esplendorosas.
Para podre caminhar por onde cantam os pássaros,
para poder caminhar por onde é verde a erva,
Pai-Céu, Mãe-Terra.

Poema (Astecas)

Se me ponho a cantar,
como vermelha trepadeira se entrelaça o meu canto:
flor que cheira a milho torrado, onde se ergue a Árvore:
perfume de flor de cacau: dança junto ao tambor,
dança libertando o teu perfume.
Ergue-se além o sol:
num vaso de esmeralda coberto de quetzal,
cinge-o um colar de turquesas,
e as flores caem entre todas as cores.

Canções (Quíchuas)

Nasci qual planta que no deserto
irrompe sem seiva e sem calor:
no caule que sobe, ríspido, hirto,
abrolha um germe, não abre a flor.
Que não vi estrela assim tão áspera:
fechada nas trevas, nunca arder.
E sobre o meu berço agras lágrimas:
porque eu nasci só para morrer.
Acabará minha estéril história
que a si própria se liga por dentro:
a vida, o nome, a minha memória,
gravados fundo no esquecimento.

Canto do Sonho (Papagos)

Ali onde a montanha se acaba,
Lá em cima, nem eu mesmo sei aonde,
Vagueei por ali, por onde a minha cabeça
e o meu coração pareciam perdidos.
Vagueei lá longe.

Poema (Zunis)

Cobre a terra minha mãe quatro vezes de flores inumeráveis.
Que os céus se cubram de nuvens acumuladas.
Que a terra se cubra de névoa; cobre a terra de chuvas.Grandes águas, chuvas, cubram a terra. Relâmpago, cobre a terra.
Que se oiça o trovão por cima de toda a terra; que se oiça o trovão.
Que se oiça o trovão por cima das seis regiões da terra.

Poema (Tewas)

A minha casa lá longe, a minha casa lá longe!
A minha casa lá longe, agora me recordo!
E quando vejo essa montanha lá longe,
Pois bem, choro. Ai! Que posso fazer?
Que posso fazer? Ai! Que posso fazer?
A minha casa lá longe, agora me recordo.

Canto do Veado de Cauda Negra (Pimas)

Do alto das moradas da magia,
Do alto da moradas da magia,
Sopram os ventos. Nos meus cornos,
Nas minhas orelhas, juntos, sopram ainda mais forte.
Lá longe, corria tremendo,
Lá longe, corria tremendo:
Arcos e flechas perseguindo-me.
Quantos arcos havia na minha pista!

Poema (Siouxs)

Como desejaria vaguear na noite
Contra os ventos.
Vaguear na noite
Quando a coruja ulula.
Como desejaria vaguear.
Como desejaria vaguear na alba
Contra os ventos.
Vaguear na alba
Quando a gralha grita.
Como desejaria vaguear.

Poema (Makahs)

Por mais que me esforce por te esquecer,
Voltas sempre aos meus pensamentos.
E é quando me ouves cantar,
Que te choro.

Poema (Chippewas)

Às vezes
Sucede que me compadeço
Enquanto que, levado pelo vento,
Atravesso o céu.

Poema (Papagos)

Ao entardecer
Chove.
Além, nos confins da terra
Há um ruído como um ranger,
Há um ruído como o de uma queda.
Além, abaixo, continua a bramir
Continua a tremer.

Poema (Kiowas)

Esse vento, esse vento
Sacode a minha tenda. Sacode a minha tenda
E canta uma canção para mim
Canta uma canção para mim.

Poema (Winnebagos)

Era digno de se ver,
esse mundo novamente criado.
Sobre toda a largura e amplidão
da terra, nossa avó,
estendia-se o reflexo verde
da sua cobertura
e os perfumes que ascendiam
eram doces de respirar.

Poema (Apaches)

O dia levantou-se por entre uma chuva suave.
O lugar chamado “onde fica a água do relâmpago”,
O lugar chamado “ali onde surge a alba”,
Quatro lugares denominados “a alba da vida”,
Ali é onde toco a terra.
Os filhos do céu, vou por entre eles.
Chegou até mim com uma longa vida.
Quando fala por cima do meu corpo com a mais longa vida,
A voz do trovão falou quatro vezes
Falou-me quatro vezes com vida.
O santo jovem celeste falou-me quatro vezes.
Quando me falou, chegou o meu alento.

Prece para Curar a Epilepsia (Maias)

Fogo verde, névoa no ar,
tornas-te epilepsia.
Fogo amarelo, tornas-te epilepsia.
Vento norte,
tornas-te epilepsia,
epilepsia engendrada pelo sono, engendrada pelo
sonho,
epilepsia,
névoa branca, tornas-te epilepsia,
névoa vermelha, tornas-te epilepsia.
Desatamos,
nove vezes desatamos,
desfazemos,
nove vezes desfazemos,
aplacamos, Senhor, nove vezes aplacamos.
Uma hora, meia hora, para que saia como uma névoa,
para que saia como uma borboleta, para que saia.
Regula-te, pulso grande! Regula-te, pulso pequeno!
Os dois pulsos numa hora, meia-hora,
Senhor, assim seja.
Sais agora, epilepsia, sais agora
sobre treze montanhas,
sobre treze cumeeiras,
sais ao meio de treze renques de árvores,
sais ao meio de treze renques de pedras,sais agora.
publicado por virtualia às 01:48
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Sexta-feira, 8 de Maio de 2009

A ORCHESTRE DES CHAMPS-ÉLYSÉES NO BRASIL

 

 
Em 2005 foi realizado o “Ano do Brasil na França”, com eventos culturais brasileiros que eclodiram por terras francesas, marcando momentos de grande sucesso no intercâmbio, Em 2009 chegou a vez do Brasil retribuir, assim, em abril, foi aberto o “França.Br 2009 - Ano da França no Brasil”, com uma programação de mais de 600 eventos culturais a acontecer por todo o país tropical.
Na leva do “França.Br 2009 - Ano da França no Brasil”, pôde ser visto, pela primeira vez em solo tupiniquim, a apresentação de uma das mais conceituadas e famosas orquestras da Europa e do mundo, a Orchestre des Champs-Élysées de Paris, sob a regência do genial maestro Philippe Herreweghe.
A orquestra é conhecida pela pluralidade da sua formação, comportando cerca de 172 músicos, com idades distintas e nacionalidades diversas, como franceses, bósnios, alemães, romenos, norte-americanos, italianos, colombianos, belgas, holandeses, e muitas outras, o que lhe traz esta atmosfera universal e de unidade musical sempre a surpreender e fascinar a platéia. Pela quantidade de músicos e instrumentos, torna-se difícil trazer uma orquestra deste porte. Este obstáculo foi possível de ser vencido devido à generosidade do maestro Philippe Herreweghe, que abriu mão de grande parte dos músicos, criando um concerto grandioso com apenas 81 componentes da orquestra original.
Os momentos da Orchestre des Champs-Élysées no Brasil foram marcados por quatro concertos, sendo três em São Paulo, dois na Sala São Paulo, iniciando a temporada da Sociedade Cultura Artística; e, um no Sesc Itaquera; e um em Brasília, no Teatro Nacional Cláudio Santoro. Com exceção das apresentações na Sala São Paulo, as demais tiveram entrada franca, sendo patrocinadas pelo “França.Br 2009 - Ano da França no Brasil”.
Mesmo com noventa músicos a menos, Philippe Herreweghe regeu um espetáculo monumental, com três concertos distintos, “Escocesa - Sinfonia nº 3 em La Menor, Op. 56”, de Felix Mendelssohn; “Sinfonia Fantástica – Episódios da Vida de um Artista, Op. 14”, e “Lélio ou Retorno à Vida - Op. 14”, criação de Hector Berlioz. A dimensão apoteótica dada pelo maestro, parecia que mais de uma centena de músicos enchiam as salas por onde passou a orquestra, como se os contrabaixos fossem mais de uma dúzia, e os violinos infinitos. O apogeu foi alcançado com a “Sinfonia Fantástica” de Berlioz, momento sublime de uma concepção que transcendia a platéia, fazendo-a ardorosa e emocionada. Grandiosa, eloqüente, emocionante, e vários adjetivos afins, são poucos para descrever as apresentações da Orchestre des Champs-Élysées no Brasil, deixando-nos com a perspectiva do porque de ser uma das maiores orquestras do mundo, e com a certeza do seu retorno em solo brasileiro.

A Orchestre des Champs-Élysées

A Orchestre des Champs-Élysées foi fundada em 1991, numa iniciativa de Alan Durel, diretor do Théâtre des Champs-Élysées, e de Philippe Herreweghe, que se fez desde então, o seu diretor musical e regente. Ao longo de quase duas décadas, a orquestra acumulou prestígio, sendo uma das mais conceituadas e admiradas no mundo.
Após a sua fundação, a orquestra esteve residente por muitos anos no Théâtre des Champs-Élysées em Paris, e, no Palais des Beaux-Arts de Bruxelas, na Bélgica. Tornou-se uma orquestra com características distintas, que se especializou na interpretação da música que se estende desde a metade do século XVIII ao início do século XX. Os instrumentos tocados pelos músicos são originais da época, com cordas especiais feitas das tripas de ovelhas, o que lhe concebe a originalidade garantida do som que se fazia pelos séculos passados. A dimensão musical tornar-se, através da Orchestre des Champs-Élysées, uma concepção única, que passa por um vasto repertório, de Mahler a Berlioz, de Haydn a Mendelssohn.
Formada por músicos de nacionalidades plurais, o que lhe confere uma lufada de constante renovação e aprimoramento vindos de várias partes do mundo, garantindo-lhe uma erudição internacional, a Orchestre des Champs-Élysées já se apresentou nas principais salas de concertos da Europa e do mundo, entre elas, a Musikverein de Viena, Gewandhaus de Leipzig, Alter Oper de Frankfurt, Barbican Center de Londres, Philharmonic Hall de Berlim e Munique, Concertgebouw de Amsterdã e tantas outras. Além do circuito europeu, a orquestra apresentou-se com exímio sucesso, no Lincoln Center de Nova York, no Teatro Nacional de Brasília, e diversos países como Austrália, Japão, China e Coréia.
Desde a fundação, a orquestra esteve sempre sobre a direção artística de Philippe Herreweghe, com o seu perfeccionismo caracterizado pela execução de um repertório tecido por instrumentos de época. A Orchestre des Champs-Élysées esteve, ocasionalmente, sob a regência de famosos maestros convidados, entre eles Louis Langrée, Daniel Harding, Christophe Coin, Christian Zacharias, René Jacobs e Bruno Weil.
A Orchestre des Champs-Élysées produziu, ao longo da sua trajetória, uma extensa obra discográfica, que incluí interpretações de Mozart (“Grande Messe en ut Mineur”, “Requiem”), Mendelssohn (“Elias”, “Paulus”), Beethoven (“Missa Solemnis”), Brahms (“Un Requiem Allemand”), Schumann (“Symphonie nº 2 e 4”), Bruckner (“Symphonie nº 7”) e Mahler (“Des Knaben Wunderhorn”), entre tantos.

Philippe Herreweghe, o Regente

Conheci Philippe Herreweghe em Lisboa, em fevereiro de 1994, em um concerto do Ensemble Musique Oblique, da qual ele era regente, e que marcava a abertura do evento “Lisboa Capital Européia da Cultura – 1994”, realizado no Centro Cultural de Belém (CCB). Na noite que precedeu ao concerto, estivemos em uma tertúlia no Bar Mahjong, no Bairro Alto, ao lado do músico e amigo Michel Maldonado, da assessora de imprensa Sylvia Vaez, e do fotógrafo Stanislas Kalimerov. Dono de um humor agradável e de uma erudição cultural despida de pedantismos, Philippe Herreweghe conquista com o seu carisma particular, às pessoas que o ladeiam, mostrando-se afável e generoso.
Nascido na Bélgica, na cidade de Ghent, Herreweghe traz a simpatia sofisticada e arraigada dos flamingos. Foi na sua cidade natal, na Flandres, que estudou piano no conservatório. Desviou-se da música para que se pudesse dedicar aos estudos de medicina, especializando-se em psiquiatria. Já na faculdade, Philippe Herreweghe fundou o Collegium Vocale de Ghent, chamando para si as atenções de Nikolaus Harnoncourt e Gustav Leonhardt, fascinados pela qualidade do conjunto vocal por ele fundado, convidando-o de imediato para que se unisse a eles e participasse da gravação completa das “Cantatas de Bach”.
Desde então, Philippe Herreweghe empenhou-se em trazer para a sua regência um amplo repertório que vai do Renascimento à música erudita contemporânea, o que o levou a criar várias orquestras (ensembles), com integrações distintas e plurais, com as quais fez cerca de sessenta gravações em disco. Entre os ensembles estão: Ensemble Vocal Européen, especializado na interpretação da música polifônica renascentista; o Collegium Vocale de Ghent, que há trinta anos dedica-se à música de Bach e seus precursores; a Chapelle Royale, dedicada à Música Barroca Francesa; a Orchestre des Champs-Élysées, especializada em música clássica e romântica, e a Ensemble Musique Oblique, especialista em música erudita contemporânea.
Além de ser um dos fundadores da renomada Orchestre des Champs-Élysées, em 1991, é desde então, o seu diretor artístico e regente. Philippe Herreweghe costuma reger como convidado, outras grandes orquestras de prestígio internacional, como a Orquestra do Concertgebouw de Amsterdã; a Orquestra Rotterdam Philharmonic, de Roterdã; a Orquestra da Gewandhaus de Leipzig; a Mahler Chamber Orchestra; a Stavanger Symphony Orchestra; a Royal Flandres Philharmonic Orchestra, da qual é diretor desde 1997. Dirigiu também, as orquestras Filarmônicas de Berlim e de Viena.
Philippe Herreweghe participou como diretor artístico do prestigiado Festival de Saintes, no sudoeste da França, no período de 1982 a 2002. Em 1990 foi agraciado com o título de Personalidade Musical do Ano; Músico Europeu do Ano, em 1991; Embaixador Cultural da Flandres através do Collegium Vocale de Ghent, em 1993. Foi-lhe outorgado, em 1994, a Orden de Officier des Arts et Letters; nomeado Doctor Honoris Causa da Universidade da Lovaina, em 1997. Em 2003, foi nomeado Cavalheiro da Legião de Honneur, sendo-lhe concedido um título nobiliárquico pelo rei da Bélgica.
Pelo talento, por todas as qualidades mencionadas, Philippe Herreweghe é hoje um dos maiores nomes da música clássica, erudita e contemporânea do mundo, sendo um dos maiores regentes das últimas décadas.

A Orchestre des Champs-Élysées em São Paulo

Apesar de ter se apresentado nas maiores salas de espetáculos do planeta, a Orchestre des Champs-Élysées só aportou no Brasil graças às comemorações do “França.Br 2009 - Ano da França no Brasil”. Com cerca de 172 músicos, o deslocamento da orquestra exige uma grande infraestrutura, tornando-se demasiadamente dispendiosa, o que necessita sempre de mecenas e patrocinadores.
A negociação com os organizadores do “Ano da França no Brasil” e a Orchestre des Champs-Élysées foram longas, feitas em mais de um ano. Graças à generosidade de Philippe Herreweghe, que aceitou cortar substancialmente no número de músicos e, principalmente, conseguiu manter o nível de qualidade erudita com uma orquestra desfalcada de mais de noventa dos seus membros integrantes, que o Brasil pôde, finalmente conhecer este imponente ícone da música erudita mundial.
Feitos os cortes, a Orchestre des Champs-Élysées chegou ao Brasil no fim de abril de 2009, com 81 músicos, o ator argentino Marcial Di Fonzo Bo, um grupo de bailarinas, o tenor Robert Getchell e o barítono Pierre-Yves Pruvot, todos sob a regência e direção de Philippe Herreweghe.
Na programação, a orquestra tinha a função de abrir oficialmente o “França.Br 2009” no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Mas os problemas de infraestrutura estavam longe de uma solução definitiva. Curiosamente, uma cidade como o Rio de Janeiro não ofereceu recursos para que se recebesse uma orquestra deste porte. O Teatro Municipal, uma das mais belas casas de espetáculos do país, foi fechado em outubro de 2008 para restauração. Como solução, chegou a ser anunciada a apresentação da orquestra no Teatro João Caetano, mas os organizadores chegaram à conclusão de que o teatro estava degradado, a necessitar de obras, não oferecendo condições para receber um concerto da grandiosidade da Orchestre des Champs-Élysées. Assim, uma cidade da importância do Rio de Janeiro, foi excluída do roteiro da orquestra, uma vergonha para os governantes e representantes da cultura carioca.
Em São Paulo, a orquestra apresentou-se ao ar livre, no Sesc Itaquera, brindando o paulistano com a belíssima apresentação de “Lélio ou Retorno à Vida - Op. 14", de Hector Berlioz. A apresentação contava com intervenções narrativas do ator argentino Marcial Di Fonzo Bo, dois cantores e um coro, tendo entrada franca, sendo registrada pela TV Cultura, que transmitiu o concerto ao vivo, alcançando grande sucesso e receptividade do público. A apresentação musical, a cenografia e a encenação foram complementadas por projeções em vídeo criadas por Jean-Philippe Clarac e Olivier Deloeuil. Foram feitas outras duas apresentações na Sala São Paulo, para um público pagante, iniciando a temporada da Sociedade Cultura Artística. Concebido exclusivamente para São Paulo, quando a Orchestre des Champs-Élysées deixou a cidade, o ator, os cantores e bailarinos não os acompanharam até o Distrito Federal, antecipando a volta para a França.

A Orchestre des Champs-Élysées em Brasília

Após o contratempo que excluiu a cidade do Rio de Janeiro do roteiro, e o grande sucesso em São Paulo, a orquestra partiu para o Distrito Federal, com 81 músicos, tendo o honroso compromisso de abrir oficialmente o “França.Br 2009” na capital do Brasil.
Já familiarizados com o país, os músicos sentiram-se confortáveis em Brasília, o que contribuiu para que se pudessem entregar sem medos à composição de um grande concerto, que conquistaria a platéia brasiliense.
Em Brasília, o concerto foi organizado com grande pompa, com a presença de Antoine Pouillieute, embaixador da França no Brasil, a discursar na abertura. Para esta apresentação, Philippe Herreweghe preparou um concerto dedicado a Félix Mendelssohn e a Hector Berlioz.
Na primeira parte da apresentação, Mendelssohn abria o espetáculo, com “Escocesa – Sinfonia nº 3 em Lá menor, Op.56”. O perfeccionismo de Herreweghe dilatava-se logo à entrada, com a sua obsessão perene pela autenticidade do som e dos instrumentos de época. O toque precioso da emoção contagiava o público da Sala Villa-Lobos, do Teatro Nacional de Brasília, que aplaudia com veemência a cada movimento encerrado. A “Sinfonia nº 3”, devidamente intitulada “Escocesa”, alcançou com Herreweghe a conotação precisa da mobilidade da música de Mendelssohn, um romântico que nos dá um à vontade em suas fugas.
Ao fim da primeira parte, um breve intervalo foi regado por um autêntico Champagne oferecido ao público. Apesar de longo, o intervalo não quebrou a atmosfera que se conseguiu durante a execução da obra de Mendelssohn.
Na segunda parte do concerto, estava o momento mais esperado, a “Sinfonia Fantástica – Episódios de uma Vida, Op. 14”, de Hector Berlioz. A sinfonia conta a história de um jovem compositor que, por amor, envenena-se com ópio, mas ao ingerir uma dose não suficiente para matar, faz com que ele mergulhe em um estado letárgico repleto de visões. As visões apresentam-se na sinfonia, originalmente chamada de “Episódio da Vida de Um Artista”, que se desenvolve em cinco movimentos.
A apresentação econômica da orquestra desaparece diante das mãos decididas de Philippe Herreweghe, que faz com que a dimensão sonora seja grandiosa, e que a platéia pense que ali estão mais de 40 violinos, quando eram apenas 24. Ao fim de cada movimento, novos aplausos eclodiam de uma platéia totalmente rendida à orquestra. Os instrumentos usados são os mesmos que Berlioz idealizou e tocou, em 1830, quando escreveu a Sinfonia. Ao final suntuoso, com o último movimento, “Sonho de Uma Noite de Shabat”, a platéia foi ao delírio. Quando o concerto foi encerrado, a generosidade do público mostrou os resultados de um grande trabalho, os aplausos eclodiram incessantemente por longos dez minutos, obrigando Philippe Herreweghe a voltar ao palco por duas vezes. Encerrava-se assim, de forma apoteótica, a vinda da Orchestre des Champs-Élysées ao Brasil, deixando um gosto de quero mais e a imensa expectativa de que ela retorne muitas vezes, e brevemente, quem sabe, com todos os músicos.
Ao fim dos concertos, uma grande excursão de músicos fez-se presente pelas ruas e pelos monumentos da cidade inventada por Oscar Niemeyer. Em um ano que se programou mais de 600 eventos artísticos vindos da França, a Orchestre des Champs-Élysées foi o presente de estréia, em um momento de puro êxtase cultural e reverências a Philippe Herreweghe e aos seus 81 músicos.


Orchestre des Champs-Élysées – Composição

Original

Regente: Philippe Herreweghe

Violinos: Alessandro Moccia (violino solo), Roberto Anedda, Assim Delibegovic, Virginie Descharmes, Philippe Jegoux, Marion Larigaudrie, Corrado Lepore, Baptiste Lopez, Martin Reimann, Nicole Tamestit, Enrico Tedde, Marie Viaud, Bénédicte Trotereau, Marieke Bouche, Adrian Chamorro, Isabelle Claudet, Federica della Janna, Jean-Marc Haddad, Pascal Hotellier, Clara Lecarme, Corrado Masoni, Giorgio Oppo, Andreas Preuss, Sebastiaan van Vucht, Catherine Arnoux, Marieke Blankestijn, Alessandro Braga, Karine Crocquenoy, Ilaria Cusano, Maud Giguet, Elisabeth Glab, Charlotte Grattard, Solenne Guilbert, Peter Hanson, Alexander Janiczek, Matilda Kaul, Thérèse Kipfer, Bérénice Lavigne, Catherine Montiers, Liesbeth Nijs, Aki Saulière, Henriette Scheytt, Kio Seiler, George Willms

Violas: Jean-Philippe Vasseur, Marie-Elsa Bretagne, Maïlyss Cain, Brigitte Clément, Delphine Grimbert, Lika Laloum, Lucia Peralta, Catherine Puig, Silvia Simionescu, Bonoit Weeger, Agathe Blondel, Mathilde Bernard, Laurent Bruni, Blandine Faidherbe, Jean-Charles Ferreira, Laurent Gaspar, Dorothée Leclair, Luigi Moccia, Wendy Rymen

Violoncelos: Vincent Malgrange, Ageet Zweistra, Hilary Metzger, Michel Boulanger, Arnold Bretagne, Andrea Pettinau, Gesine Queyras, Harm-Jan Schwitters, Hager Spaeter-Hanana, Florent Audibert, Julien Barre, Fabrice Bihan, Claire Giardelli, Jennifer Morsches

Contrabaixos: Michel Maldonado, Joseph Carver, Elise Christiaens, Damien Guffroy, David Sinclair, Christine Sticher, Massimo Tore, Axel Bouchaux, Clothilde Guyon, Marion Mallevaes, James Munro, Francis Palma-Pelletier, Alessio Povolo, Jean-Baptiste Sagnier, Miriam Shalinsky, Maria Vahervuo

Flautas: Mathias von Brenndorff, Amélie Michel, Giulia Barbini, Laura Colucci, Oeds van Middelkoop, Jane Mitchell, Takashi Ogawa, Jan de Winne

Oboés: Marcel Ponseele, Taka Kitazato, Pier-Luigi Fabretti, Christian Moreaux, Rafaël Palacios, Antoine Torunczyk, Stefaan Verdegem

Clarinetes: Nicola Boud, Daniele Latini, Benjamin Dieltiens, Luca Luchetta, Markus Springer, Marc Withers

Fagotes: Julien Debordes, Jean-Louis Fiat, Philippe Miqueu, Robert Percival, Margreet Bongers, Alain de Rijckere, Jani Sunnarborg, Javier Zafra

Trompas: Rafaël Vosseler, Christiane Vosseler, Jean-Emmanuel Prou, Frank Clarysse, Luc Bergé, Jeroen en Billiet, Mark De Merlier, Miek Laforce, Ursula Monberg, Martin Mürner, Martin Roos

Trompetes e Cornetas: Steven Verhaert, Andreas Bengtsson, Leif Bengtsson, Alain de Rudder, Guy Ferber, Patrick Henrichs, Femke Lunter, Thibaud Robinne, Geerten Rooze

Trombones: Dennis Close, Wim Becu, Charles Toet, Guy Hanssen, Saman Maroofi, Harry Ries

Oficleides, Tuba, Serpent: Marc Girardot, Stephen Wick, Erhard Schwartz

Tímpanos 1: Marie-Ange Petit, Peppie Wiersma

Tímpanos 2: Hervé Trovel, David Joignaux

Percussão: François Garnier, Antoine Siguré, David Joignaux, Hélène Brana, Bernard Heulin, Hervé Trovel

Harpas: Pascale Schmitt, Aurélie Saraf

No Brasil

Regente: Philippe Herreweghe

Primeiros Violinos: Alessandro Moccia (violino solo), Roberto Anedda, Assim Delibegovic, Virginie Descharmes, Philippe Jegoux, Marion Larigaudrie, Corrado Lepore, Baptiste Lopez, Martin Reimann, Nicole Tamestit, Enrico Tedde, Marie Viaud

Segundos Violinos: Bénédicte Trotereau, Marieke Bouche, Adrian Chamorro, Isabelle Claudet, Federica della Janna, Jean-Marc Haddad, Pascal Hotellier, Clara Lecarme, Corrado Masoni, Giorgio Oppo, Andreas Preuss, Sebastiaan van Vucht

Violas: Jean-Philippe Vasseur, Marie-Elsa Beaudon, Maïlyss Cain, Brigitte Clément, Delphine Grimbert, Lika Laloum, Joël Oechslin, Lucia Peralta, Catherine Puig, Silvia Simionescu, Bonoit Weeger

Violoncelos: Vincent Malgrange, Ageet Zweistra, Hilary Metzger, Michel Boulanger, Arnold Bretagne, Andrea Pettinau, Gesine Queyras, Harm-Jan Schwitters, Hager Spaeter-Hanana

Contrabaixos: Michel Maldonado, Joseph Carver, Elise Christiaens, Damien Guffroy, David Sinclair, Christine Sticher, Massimo Tore

Flautas: Mathias von Brenndorff, Amélie Michel

Oboés: Marcel Ponseele, Taka Kitazato

Clarinetes: Nicola Boud, Daniele Latini

Fagotes: Julien Debordes, Jean-Louis Fiat, Philippe Miqueu, Robert Percival

Trompas: Rafaël Vosseler, Christiane Vosseler, Jean-Emmanuel Prou, Frank Clarysse

Trompetes: Steven Verhaert, Andreas Bengtsson

Cornetas: Leif Bengtsson, Alain de Rudder

Trombones: Dennis Close, Wim Becu, Charles Toet

Oficleides: Marc Girardot, Stephen Wick

Tímpanos: Marie-Ange Petit, Hervé Trovel

Percussão: François Garnier, Antoine Siguré, David Joignaux

Harpas: Pascale Schmitt, Aurélie Saraf

Discografia da Orquestra

1992 – Wolfgang Amadeus Mozart – Grande Messe en ut Mineur
1993 – Felix Mendelssohn – Elias
1994 – Felix Mendelssohn – Le Songe D’Une Nuit D’Été
1995 – Hector Berlioz – Nuits D’Été Herminie
1995 – Ludwig van Beethoven – Missa Solemnis
1996 – Felix Mendelssohn – Paulus
1996 – Johannes Brahms – Un Requiem Allemand
1997 – Wolfgang Amadeus Mozart – Requiem
1997 – Wolfgang Amadeus Mozart – Gran Partita K. 361 / Sérénade pour Vents K. 388
1997 – Robert Schumann – Symphonie nº 2 / Symphonie nº 4
1997 – Robert Schumann – Concerto pour Violoncelle / Concerto pour Piano
1997 – Hector Berlioz – L’Enfance du Christ
1998 – Robert Schumann – Scènes de Faust
1999 – Ludwig van Beethoven – Symphonie nº 9
2002 – Gabriel Fauré – Requiem (Version pour Grand Orchestre) / César Franck – Symphonie en Ré
2002 – Franz Schubert – Messe en La Bémol / Feliz Mendelssohn – Psaume 42
2004 – Anton Bruckner – Symphonie nº 7
2006 – Anton Bruckner – Symphonie nº 4 “Romantique”
2006 – Gustav Mahler – Des Knaben Wunderhorn
2007 – Robert Schumann – Symphonie nº 1 “Printemps” / Symphonie nº 3 “Rhénane”
2008 – Anton Bruckner – Messe nº 3 en Fa Mineur
2009 – Anton Bruckner – Symphonie nº 5
publicado por virtualia às 03:38
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