
Sophia de Mello Breyner Andresen tem uma obra vastíssima, principalmente na poesia, com obras como “Dia do Mar” (1947), “Mar Novo” (1958), “O Cristo Cigano” (1961), “O Nome das Coisas” (1977), “Ilhas” (1989), ou ainda, com um grande destaque aos contos para crianças, tais como “A Menina do Mar” (1958), “A Floresta” (1968) ou “Noite de Natal” (1960). Foi justamente como escritora de contos infantis que Sophia de Mello Breyner Andresen tornou-se um mito da infância de algumas gerações. Analisá-la aqui como contista de ficção para adultos é quase como analisar uma raridade na sua obra literária, uma vez que só escreveu dois livros de contos para adultos: Contos Exemplares (1962) e Histórias da Terra e do Mar (1984). É o mundo destes dois livros de ficção que será analisado aqui. Se a compararmos com Miguel Torga, Alves Redol, Vergílio Ferreira ou Manuel da Fonseca, vamos encontrar uma contista mais leve em sua análise ao cotidiano português. De uma estética narrativa vinda dos contos infantis, impregnando as personagens de linhas explícitas do maniqueísmo humano, alegorias entre o bem e o mal, o sacro e o profano, sendo os temas arrematados por uma necessidade de uma moral das fábulas infantis e da catequese religiosa dos adultos.
Contos Exemplares, Início dos Anos Sessenta

Ao analisarmos os “Contos Exemplares” de Sophia de Mello Breyner Andresen desta época (início dos anos sessenta) , ficamos perdidos entre uma provocatória convicção do bem e do mal, do

“O Dono da Casa entregou um cheque e o Homem Importante entregou outro cheque.
O Abade de Varzim tinha sido vendido por um tecto.
Ninguém falou em troca nem em venda. Ninguém disse palavras chocantes. Mas quando se levantaram os três e se dirigiram para junto dos outros convidados para a sala grande, o espírito do Bispo estava pesado de confusão. Ele era como um homem que, envolvido num negócio que não entende bem e convencido por um hábil advogado, compra o que não quer comprar e vende o que não quer vender.
E Deus no Céu teve dó daquele Bispo porque ele estava só e perdido e não sabia lutar contra os hábeis discursos dos donos do Mundo.”
Aqui a história gira em torno de um senhor dono de terras (o Dono da Casa) que, ao sentir-se ameaçado por um jovem padre (o Abade de Varzim), que representa a conscientização das massas diante do novo tempo, contra os velhos hábitos dos latifundiários, resolve convencer o Bispo a mandá-lo embora da sua freguesia. O Bispo, que quer um teto para uma das suas igrejas, pois tinha vindo abaixo, procura o Dono da Casa para pedir-lhe o dinheiro para o novo teto. Ambos se reúnem em um jantar na quinta do latifundiário. No meio da conversa são surpreendidos pela figura estranha de um visitante (o Homem Importante). Na cozinha da quinta surge uma figura ainda mais estranha, o Mendigo. Durante a conversa, o Homem Importante convence o Bispo a mudar o padre, também colaborando com dinheiro para o teto da igreja. As personagens deste conto, que, se analisarmos minuciosamente, vamos acabar por classificá-lo não como um conto, mas como uma pequena novela dada às suas características de ficção; são desde o início delineadas, até certo ponto maniqueístas. O Dono da Casa, que não vê escrúpulos para atingir os seus fins; o Homem Importante, que é claramente a figura do diabo, surgindo e desaparecendo de uma forma mística; o Bispo, misto de ingenuidade e de consciência religiosa. O Bispo não pode vender a sua fé, está apenas confuso. O Mendigo é talvez, o Cristo, o bem, a consciência do Bispo. Arrependido, o Bispo volta à casa do latifundiário para devolver o dinheiro que aceitara para correr com o jovem padre. Na casa a sensação de todos é que Deus e o diabo ali estiveram, mas metamorfoseados de ricos e de pobres. Assim são as personagens de Sophia de Mello Breyner Andresen, um misto de boas e más. As boas, quando assumem forma de más, são castigadas. Quase que vendem a alma ao diabo, por isso a catequese e o moralismo estão sempre contidos nos seus contos de uma forma explícita.
A Velha Alegoria do Bem e do Mal

“O “hall” era enorme e tinha no meio uma palmeira nostálgica. A decoração era de 1920, num estilo especial que só existia naquela terra.
Nos bancos verdes, encostados às paredes brancas, cobertas até ao meio por grades de madeira verde, estavam pequenos grupos de pessoas sentadas em frente das mesas verdes.
Havia três grupos escuros de homens e dois grupos mais claros de senhoras de uma certa idade.”
Neste conto intitulado “A Praia”, está o exemplo claro de uma narrativa convencional, o sujeito que a relata é perfeitamente distinto do objetivo relatado. Uma narrativa mais racional do que emocional, onde à partida, o leitor fica a saber que o “hall” era grande, com uma palmeira ao meio. Que havia bancos verdes, paredes brancas cobertas de grades de madeira verde e mesas também verdes. O que a autora quis dizer com “grupos escuros de homens” e “mais claros de senhoras”? Talvez nada, uma mera redundância. Assim, os contos de Sophia de Mello Breyner Andresen apresentam uma linguagem quase estética (não confundir com o termo informação estética, cujo conceito é visto pela possibilidade de certas mensagens provocarem um efeito de surpresa, onde há uma quebra de ruptura narrativa, surgindo o inesperado e o inovador), tão tipicamente cinematográfica, quase que de influência de uma época de mudança de estilos de moda. Quase a enterrar o desgastado neo-realismo português pela presença do fantástico.
Continuando a percorrer as páginas dos “Contos Exemplares”, vamos encontrar o segundo equívoco: “Retrato de Mónica”:
“Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de

Aqui estamos diante de uma crônica, que é intitulada de conto. Tal como “O Jantar do Bispo”, com aspecto de pequena novela e não de conto, em “Retrato de Mônica” estamos ante uma pequena crônica. O estilo da autora é inconfundível. Novamente o tema anda às voltas da moral burguesa e católica da autora, Mónica é tida como uma mulher vencedora, porém, para vencer, é descrita como fútil. Em Mónica o interesse pelas artes, pela cultura, é visto como futilidade. Será que a mulher para ser atuante precisa ser fútil? Mónica está ao serviço de todos os amigos e principalmente, do diabo, seu principal amo. Outra vez o castigo das trevas para quem brilha, para quem vende a imagem. Outra vez o sentido da catequese.
Devemos ressaltar a beleza do conto “A Viagem”. Aqui as personagens perdem-se por uma estranha estrada, onde as formas das coisas adquirem um realismo fantástico. As personagens procuram uma saída, procuram comida, procuram água. Tudo está al alcance deles, mas nada é real. Estão perdidos e sem saída. Estarão mortos? Novamente a sensação de “O Purgatório” de Dante está presente:
“Mas o carreiro tinha desaparecido. Agora havia apenas um estreito rebordo onde ela não cabia, onde nem os seus pés cabiam. Um rebordo sem saída. Aí ficou, de lado, com os pés um em frente do outro, com o lado direito do seu corpo colado à pedra da arriba e o lado esquerdo já banhado pela respiração fria e rouca do abismo. Sentia que as ervas e as raízes a que se segurava cediam lentamente com o peso do seu corpo. Compreendia que agora era ela que ia cair no abismo. Viu que, quando as raízes se rompessem, não se poderia agarrar a nada, nem mesmo a si própria. Pois era ela própria o que ela agora ia perder.”
Neste conto caminhamos à procura do fantástico, onde podemos ter uma sensação de percorrermos as páginas de Kafka ou de Egard Alan Poe - sem a certeza se iríamos encontrá-los.
Histórias da Terra e do Mar, Paisagens Além do Mar Português

O primeiro conto de “Histórias da Terra e do Mar” é “A História da Gata Borralheira”, de 1965, é uma continuação dos anteriores, um misto de “Alice no País das Maravilhas” com “Cinderela”. A moça pobre e humilhada no seu primeiro baile, decide que será uma mulher de sucesso, uma mulher rica e poderosa. Que jamais será humilhada uma outra vez. Novamente a figura do diabo aparece na forma de um belo homem, que dança com a infeliz mulher na noite da humilhação. Depois da escolha, a personagem muda-se para a casa da madrinha rica, casa-se com um homem rico, torna-se poderosa. Um dia, vinte anos depois, volta ao salão onde acontecera o seu primeiro baile. Ali reencontra o belo homem que lhe proporcionara o sucesso. Ele exige-lhe o sapato de brilhantes que ela trazia e a vida. Novamente a certeza de que a mulher para tornar-se vencedora precisa vender a alma ao diabo, o sucesso é fútil, o castigo vem sempre. A catequese também:
“Lúcia quis fugir mas o seu corpo estava rígido e ela não pôde mover nenhum dos seus membros. Quis gritar mas a sua voz estava muda.
O homem inclinou-se, tirou-lhe do pé o sapato de brilhantes e calçou-lhe o sapato de farrapos.”
No conto “A Casa do Mar”, de 1970, a personagem central é a casa. Um conto de parágrafos e parágrafos a nos mostrar o estético, as cores da casa confundem-se com o cheiro da brisa do mar. O vento perde a cor nos bancos (sempre verdes) da varanda. Percorremos jardins inatingíveis, com lírios com perfume de jasmim, com frutas recheadas de cores. Sentimo-nos verdadeiras aves tontas nas alturas. Quase como uma vertigem da paisagem que nos chega com os parágrafos. Viajamos quase que por uma aquarela de natureza morta em forma de palavras:
“Entre a casa e a cidade longínqua estendem-se as dunas como um grande jardim deserto, inculto e transparente onde o vento que curva as ervas altas, secas e finas faz voar em frente dos olhos o loiro dos cabelos. Ali crescem também os lírios selvagens cujo o intenso perfume, pesado e opaco como o perfume de um nardo, corta o perfume árido e vítreo das areias.”
“Saga”, de 1972-1981, irá nos levar ao mundo imaginário da autora. Não nos sentimos em Portugal, não reconhecemos as personagens como as das vilas, as das aldeias de pescas, somos transportados para uma realidade quase da época em que lemos “Robson Crusoé”, ou “Gullliver”. Estudar Sophia de Mello Breyner Andresen torna-se agradável, mas faz com que saibamos perceber porque um Miguel Torga é inatingível como contista, é a essência portuguesa que nos foge entre a estética do mar da autora.
Sophia de Mello Breyner
Uma das mais conhecidas escritoras portuguesas do século XX, Sophia de Mello Breyner

Freqüentou de 1936 a 1939, o curso de Filologia Clássica, na Faculdade de Letras de Lisboa, adquirindo paixão pelo clássico grego, que seria de grande influência em toda a sua obra. Os mitos gregos, o ideal de beleza, impregnam a obra de Sophia de Mello Breyner, arrematada pelo emblemático mar português.
O primeiro livro de Sophia de Mello Breyner, Poesia, foi publicado em 1944, tendo uma tiragem de 300 exemplares, sendo essa edição paga pelo seu pai.
Em 1946 a escritora casou-se com o advogado, jornalista e político Francisco Sousa Tavares, com quem viria a morar definitivamente em Lisboa. Do casamento nasceriam cinco filhos, entre eles Miguel Sousa Tavares, conhecido jornalista português.
Ao lado do marido, Sophia de Mello Breyner tornou-se uma das maiores opositoras à ditadura salazarista. Ao longo da sua vida sempre foi uma lutadora empenhada pelas causas da liberdade e justiça. Antes do 25 de Abril, que pôs fim ao Estado Novo, pertenceu à Comissão Nacional de Apoio aos Presos Políticos. Depois da Revolução dos Cravos, continuou a sua militância política.
Sophia de Mello Breyner morreu no dia 2 de julho de 2004, aos 84 anos. Foi a primeira mulher portuguesa a receber o Prêmio Camões. Sua literatura infantil fez parte da imaginação de várias gerações de crianças portuguesas.
OBRAS:
Poesia
1944 – Poesia

1947 – O Dia do Mar
1951 – Coral
1954 – No Tempo Dividido
1958 – Mar Novo
1962 – Livro Sexto
1962 – O Cristo Cigano
1967 – Geografia
1970 – Grades
1971 – Poemas
1972 – Dual
1975 – Antologia
1977 – O Nome das Coisas
1983 – Navegações
1989 – Ilhas
1994 – Musa
1994 – Signo
1997 – O Búzio de Cós
1999 – Primeiro Livro de Poesia (infanto-juvenil)
2001 – Mar (antologia organizada por Maria Andresen de Sousa Tavares)
2001 – Orpheu e Eurydice
Ficção:
Contos
1962 – Contos Exemplares
1984 – Histórias da Terra e do Mar
Contos Infantis
1958 – A Menina do Mar
1958 – A Fada Oriana
1959 – Noite de Natal
1964 – O Cavaleiro da Dinamarca
1965 – O Rapaz de Bronze
1968 – A Floresta
1985 – Árvore
Teatro
2000 – O Bojador
2001 – O Colar
Ensaio
1956 – A Poesia de Cecília Meireles
1960 – Poesia e Realidade
1975 – O Nu na Antiguidade Clássica
CRONOLOGIA:
1919 – Nasce a 6 de Novembro no Porto, onde passou a infância.
1922 – Primeiro contacto de Sophia com a poesia, aos 3 anos, quando uma criada lhe recita A Nau

1926 – Freqüenta o Colégio do Sagrado Coração de Maria, no Porto, até aos 17 anos.
1931 – Aos doze anos escreve os primeiros poemas. Entre os 16 e os 23 tem uma fase excepcionalmente fértil na sua produção poética.
1936 – Estuda Filologia Clássica, na Faculdade de Letras de Lisboa, mas não leva a licenciatura até ao fim.
1939 – Regressa ao Porto, onde vive até casar com Francisco Sousa Tavares, altura em que se muda definitivamente para Lisboa.
1944 – Publica o primeiro livro, Poesia, uma edição de autor de 300 exemplares, paga pelo pai, que sairia em Coimbra por diligência de um amigo: Fernando Vale. Em 1975 seria reeditado pela Ática. Este livro é uma escolha, que integra alguns poemas escritos com 14 anos.
1946 – Casa-se com Francisco Sousa Tavares.
1947 – Publica pela Editora Ática, O Dia do Mar.
1950 – Publica Coral, pela Livraria Simões Lopes.
1954 – Publica No Tempo Dividido.
1956 – Publica o livro de literatura infantil O Rapaz de Bronze.
1958 – Publica Mar Novo, A Menina do Mar (infantil) e A Fada Oriana (infantil). Escreve um ensaio sobre Cecília Meireles.
1960 – Publica Noite de Natal (infantil). Publica o ensaio Poesia e Realidade.
1961 – Publica O Cristo Cigano.
1962 – Publica Livro Sexto e Contos Exemplares (ficção).
1964 – Livro Sexto é distinguido com o Grande Prêmio de Poesia da Sociedade Portuguesa de Escritores. Publica O Cavaleiro da Dinamarca (infantil).
1967 – Publica Geografia.
1968 – Publica A Floresta (infantil) e Antologia, cuja 5ª edição (1985 – Figueirinhas) é prefaciada por Eduardo Lourenço.
1970 – Publica Grades.
1972 – Publica Dual.
1975 – Publica o ensaio O Nu na Antiguidade Clássica, integrado em O Nu e a Arte, uma edição dos Estúdios Cor. Eleita deputada pelo Partido Socialista à Assembléia Constituinte.
1977 – Publica O Nome das Coisas, distinguido com o Prêmio Teixeira de Pascoaes.
1983 – Publica Navegações, recebe o Prêmio da Crítica do Centro Português da Associação de Críticos Literários.
1984 – Publica Histórias da Terra e do Mar (ficção).
1985 – Publica Árvore (infantil).
1989 – Publica Ilhas, distinguido com os Prêmios D. Dinis, da Fundação Casa de Mateus e
1990 – Reúne toda a sua obra em três volumes: Obra Poética, com a chancela da Editorial Caminho; é distinguida com o Grande Prêmio de Poesia Pen Clube.
1992 – Grande Prêmio Calouste Gulbenkian de Literatura para Crianças.
1994 – Publica “Musa”. Recebe o Prêmio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores. Publica Signo, um livro/disco com poemas lidos por Luís Miguel Sintra.
1995 – Placa de Honra do Prêmio Petrarca, atribuída em Itália.
1996 – Homenageada do Carrefour des Littératures, na IV Primavera Portuguesa de Bordéus e da Aquitânia.
1998 – Seu livro O Búzio de Cós, é distinguido com o Prêmio da Fundação Luís Miguel Nava.
1999 – É a primeira mulher portuguesa a receber o Prêmio Camões.
2003 – Recebe o Prêmio Rainha Sofia de poesia ibero-americana.
2004 – Morre, no dia 2 de Julho, Sophia de Mello Breyner.