
Com uma sonoridade poética e saudosista, o álbum identifica-se com a Bossa Nova, somando características próprias. Lançado em julho de 1967, ele surge às vésperas da explosão da Tropicália, já nascendo ultrapassado na mente fértil e criativa de Caetano Veloso, onde já fervilhava idéias e projetos que mudariam a história da MPB, tanto na forma de compor, como na de cantar. Em novembro daquele mesmo ano, Caetano Veloso apresentava-se com a singular “Alegria, Alegria”, distanciando-se milhas do seu álbum de estréia.
João Araújo contratou Gal Costa e Caetano Veloso, na impossibilidade de produzir dois álbuns, juntou-os em um só. “Domingo” foi produzido por Dori Caymmi, que ao lado de Francis Hime e Roberto Menescal, fez os arranjos do disco. Lançado pela Philips, traz doze faixas, das quais Caetano Veloso canta a solo em quatro, Gal Costa em cinco, e juntos, dividem três belas canções.
Com “Domingo” estão iniciadas oficialmente, as carreiras de Gal Costa e Caetano Veloso. A partir de então, com exceções dos álbuns temáticos de autores, o artista baiano participou de todos os discos de Gal Costa, como compositor ou como convidado. O álbum mostra nitidamente uma identidade consistente dos seus intérpretes. Tanto que não envelheceu. Continua sendo algo à parte e especial na discografia de Gal e Caetano Velloso (no álbum com dois Ls). Não somente por ser o primeiro, mas por ser ímpar na carreira de ambos. Nunca mais repetiram o que e como aqui cantaram, tendo um encontro paralelo em “Cantar” (1974). Quem ouviu “Domingo”, viu na capa os cantores comportados, em fotografias a preto e branco, ambos cabelos cortados, suaves, jamais pensou que guardavam o vulcão que explodiriam meses depois, abalando o Brasil com a Tropicália.
Primeiros Passos Para a Fama

Como Maria da Graça, a cantora gravara um compacto simples, em 1965, com as faixas “Eu Vim da Bahia” (Gilberto Gil) e “Sim, Foi Você” (Caetano Veloso), vendendo na ocasião, 80 cópias, todas compradas por seu antigo patrão, dono de uma loja de discos em Salvador. É também daquele ano, a sua participação no álbum de estréia de Maria

Foi neste clima pré-fama que Dori Caymmi convenceu João Araújo, na época diretor artístico da Philips, a fazer um long play reunindo Gal Costa e Caetano Veloso. Assim, contratados da gravadora, os cantores entraram em estúdio para o registro do primeiro álbum. A eles foram dadas as manhãs para as gravações, horário reservado aos iniciantes, o que deixou Caetano Veloso indisposto, visto que os hábitos boêmios, comuns entre os artistas, atrapalhavam a concentração matinal, normalmente guardada para o repouso do sono. Sob os raios de um sol matinal, desenhou-se a sonoridade poética de “Domingo”.
Saudosismo Melancólico na Evolução da Poesia de Caetano Veloso

“Meu coração não se cansa de ter esperança
De um dia ser tudo o que quer
Meu coração de criança
Não é só a lembrança
De um vulto feliz de mulher”
O disco segue suave, como um delírio poético, despido de qualquer vício. “Onde Eu Nasci Passa Um Rio” (Caetano Veloso), solo de Caetano Veloso, lembra o poema de Fernando Pessoa, “O Rio da Minha Aldeia”, trazendo um autor mais poeta do que compositor. É a descoberta de que o rio não tem dono, deságua longe do lugar que se lhe viu passar, como longe da terra natal deságuam os sonhos de quem precisa explodir o talento.
Gal Costa estréia a solo, absoluta, na faixa

“Um Dia” (Caetano Veloso), salta dos palcos dos festivais para o disco, constituindo, segundo Caetano Veloso, a canção que ele mais gostou de ouvir a si mesmo interpretar em todo o álbum. A canção descreve uma paisagem bucólica do interior, de onde parte o autor, despedindo-se, seguindo o destino, com a sensação de que preparara uma volta que não se concretizaria. Era o próprio autor a distanciar-se das águas do mar da Bahia. Sem dúvida o melhor solo de Caetano Veloso no álbum.
“Domingo” (Caetano Veloso), que dá título ao álbum, mais uma vez traduz uma paisagem do interior, prestes a ser deixada na distância do tempo. Como uma ciranda de despedida, a canção destila-se entre a suavidade poética e o dueto de Gal Costa e Caetano Veloso, seguindo a temática das canções até então espargidas por todo o disco.
Passeio de Gal Costa Pela Música de Outros Compositores

Gal Costa prossegue a solo, distanciando-se do universo incipiente de Caetano Veloso para interpretar “Candeias” (Edu Lobo), atingido o ápice do álbum, em uma das mais belas interpretações da carreira. De um requinte harmônico lato, a canção encaixava-se com a proposta do disco, feita para Gal Costa gravar, ela trazia as lembranças do autor das suas férias no nordeste. É como se Edu Lobo arrematasse o saudosismo de Caetano Veloso, afinal era fácil situar a canção na Bahia, quem conhece o Recôncavo Baiano provavelmente já passou pela cidadezinha de Candeias. Na voz de Gal Costa a pequena cidade assume proporções poéticas da terra do interior de todos nós. Ao contrário das outras músicas de Caetano Veloso, que cantam a partida, "Candeias" faz o reverso, é a volta da cidade grande para a pequena cidade entre as samambaias das lembranças. “Candeias” dá a dimensão do apogeu que a voz de Gal Costa revela, mostra a doçura da lírica dos primeiros cantos da sereia, que seduziria milhões de fãs marinheiros.
“Ainda hoje vou me embora pra Candeias
Ainda hoje meu amor eu vou voltar
Da terra nova nem saudades vou levando
Pelo contrário, pouca história pra contar”
“Remelexo” (Caetano Veloso), um

"Minha Senhora" (Gilberto Gil -Torquato Neto), dá o toque de Gal Costa, que mesmo vinculada a Caetano Veloso, de quem traduz a sua essência musical, ela respira por instantes, outros universos de jovens compositores. “Minha Senhora” era uma canção com a qual Gal Costa apresentara-se no I Festival Internacional da Canção em 1966, sem grande repercussão na sua carreira. A letra da música acentua as raízes nordestinas da cantora, jamais perdidas no universo das canções que viria a interpretar.
Caetano Veloso faz o seu último solo em “Quem me Dera” (Caetano Veloso), mais um samba-canção que começa intimista e expande-se na desenvoltura que o cantor, aos poucos, vai adquirindo. Como todas as outras, segue a temática saudosista, com versos tristes que avistam a despedida da Bahia para os palcos do Brasil e do mundo. Com esta despedida, ele está pronto para encerrar o registro de um trabalho que já fizera, abraçando o que queria fazer.
Gal Costa faz o seu último solo com a alegre "Maria Joana" (Sidney Miller). Durante três faixas consecutivas, mostrou, além de Caetano Veloso, o universo de futuros grandes compositores do Brasil. Nesta canção, a cantora é totalmente discípula de João Gilberto, sem medo de misturar universos, cantando naturalmente samba ou Bossa nova.
Cravado na Jugular da Bossa Nova

“Domingo” mostra o princípio de duas carreiras, traz a germinação do porquê que iria tornar Gal Costa a maior intérprete de Caetano Veloso. Voz e autor conseguem alcançar a identidade procurada. O álbum tem aspectos intimistas da Bossa Nova, mas não o é. As poesias de Caetano Veloso são mais acadêmicas e não se assemelham às de Vinícius de Moraes e às de Tom Jobim. A Bossa Nova, na sua essência bruta, tem uma característica de elemento carioca, de um Rio de Janeiro do fim dos anos dourados.”Domingo” é mais litoral nordestino, São Paulo retirante, quase Recôncavo Baiano, os compositores são baianos ou do nordeste (Caetano Veloso e Gilberto Gil são da Bahia, Torquato Neto de Teresina, Piauí), até o carioca Edu Lobo, no disco exalta Candeias. Sidney Miller com a sua "Maria Joana" lembra-nos um Rio de Janeiro misto de Noel Rosa e Vinícius de Moraes, meio Bossa Nova, meio samba.
É esta peculiaridade de “Domingo”, parecer Bossa Nova, mas não ser. Gal Costa parecer intimista e comportada na voz, lembrando Nara Leão, mas não ser. Há um agudo reprimido, há uma cantora preste a emitir acordes dissonantes. Caetano Veloso lembra a poesia de Fernando Pessoa. Mas na cabeça já tem “Alegria, Alegria", e breve, a forma de poesia tornar-se-á menos acadêmica, terá mais jogos de palavras, mais desconstrução na métrica, o registro das marcas e produtos de então, "eu tomo uma Coca-Cola" ou, "o Sol nas bancas de revista" (o “Sol” foi um jornal que teve uma vida curta dentro da época da ditadura, considerado o pai do Pasquim). A desconstrução de “Domingo” será a construção da Tropicália. O álbum parece, mas não é Bossa Nova, é, como definiu Caetano Veloso: “sub-Bossa Nova. A única coisa que não é sub ali é a voz da Gal. É bonito, tem alguma graça, mas desde aquela época eu achava isso mesmo.”
Texto da Contracapa do Disco, por Caetano Veloso

II
Eu gosto muito de cantar. Mas jamais consegui gostar muito de cantar as minhas composições. Um velho baião, uma canção antiga, o último samba de um amigo, isso é bom de cantar: uma música que eu mesmo tenha inventado me aparece informe pela proximidade e eu desconfio de tudo que escrevi. Neste disco estou enfrentando uma experiência nova: ouço essas coisas que fiz transformadas em música por Dori, Menescal e Francis e procuro amá-las despreocupadamente, tento aceitá-las como prontas (não há mais como compô-las): cantar as músicas que eles me devolveram, não aquilo que eu lhes dei.
III
Acho que cheguei a gostar de cantar essas músicas porque minha inspiração agora está tendendo pra caminhos muito diferentes dos que segui até aqui. Algumas canções deste disco são recentes (UM DIA, por exemplo), mas eu já posso vê-las todas de uma distância que permite simplesmente gostar ou não gostar, como de qualquer canção. A minha inspiração não quer mais viver apenas da nostalgia de tempos e lugares, ao contrário, quer incorporar essa saudade num projeto de futuro. Aqui está – acredito que gravei este disco na hora certa: minha inquietude de agora me põe mais à vontade diante do que já fiz e não tenho vergonha de nenhuma palavra, de nenhuma nota. Quero apenas poder dizer tranqüilamente que o risco de beleza que este disco possa correr se deve a Gal, Dori, Francis, Edu Lobo, Menescal, Sidney Miller, Gil, Torquato, Célio, e também, mais longe, a Duda, a seu Zezinho Veloso, a Hercília, a Chico Mota, às meninas de Dona Morena, a Dó, a Nossa Senhora da Purificação e a Lambreta.
Caetano Veloso
Ficha Técnica:
Domingo

Philips
1967
Produção: Dori Caymmi
Arranjos: Roberto Menescal, Francis Hime e Dori Caymmi
Faixas:
1 Coração vagabundo (Caetano Veloso) Interpretação: Gal Costa e Caetano Veloso, 2 Onde eu nasci passa um rio (Caetano Veloso) Interpretação: Caetano Veloso, 3 Avarandado (Caetano Veloso) Interpretação: Gal Costa, 4 Um dia (Caetano Veloso) Interpretação: Caetano Veloso, 5 Domingo (Caetano Veloso) Interpretação: Gal Costa e Caetano Veloso, 6 Nenhuma dor (Torquato Neto – Caetano Veloso) Interpretação: Gal Costa, 7 Candeias (Edu Lobo) Interpretação: Gal Costa, 8 Remelexo (Caetano Veloso) Interpretação: Caetano Veloso, 9 Minha Senhora (Gilberto Gil – Torquato Neto) Interpretação: Gal Costa, 10 Quem me dera (Caetano Veloso) Interpretação: Caetano Veloso, 11 Maria Joana (Sidney Miller) Interpretação: Gal Costa, 12 Zabelê (Gilberto Gil – Torquato Neto) Interpretação: Gal Costa e Caetano Veloso