Sexta-feira, 17 de Outubro de 2008

MARCELO RUBENS PAIVA EM SANTOS (1984) - POR JEOCAZ LEE-MEDDI

 

 

Outro dia, quando procurava por alguns documentos antigos, encontrei um relato histórico, perdido entre papéis antigos. No verão de 1984, Marcelo Rubens Paiva, então um jovem de 24 anos, era recebido em Santos, no auditório das Faculdades Santa Cecília. Relatei o debate, que seria matéria do jornal O Estudante, do Centro dos Estudantes de Santos (CES), do qual eu era secretário geral na época. O Estudante era o órgão oficial do CES, tinha uma tiragem de15 mil exemplares, impresso no jornal A Tribuna, sob a responsabilidade do jovem jornalista e meu amigo Raul Christiano, com distribuição gratuita para todas as faculdades existentes à época em Santos e no Guarujá. Por problemas com a diretoria e com os patrocinadores do jornal, cancelamos a tiragem, e o artigo com Marcelo Rubens Paiva nunca saiu. Ficou esquecido no meio de alguns documentos. 24 anos depois, a ler o artigo, vi que tinha um excelente documento histórico. Decidi finalmente publicá-lo aqui no VIRTUÁLIA.
É uma agradável viagem através do tempo, quando surgiu o fenômeno Marcelo Rubens Paiva e o seu livro Feliz Ano Velho, lançado em 1982, livro que se tornou um dos símbolos da década de oitenta. Na época questionava-se se o jovem autor ao relatar a sua vida até o acidente que o deixara paraplégico, seria um modismo ou se tínhamos um novo escritor. Tudo era especulação, que passadas mais de duas décadas, já temos as respostas. Marcelo Rubens Paiva hoje é um senhor que atinge a idade madura, com vários romances publicados e peças escritas para o teatro.
Com um atraso de 24 anos, segue o artigo que feitas as devidas correções de linguagem, procurei transcrevê-lo na íntegra, conservando aquela atmosfera do verão de 1984, momentos antes da explosão do movimento Diretas Já, que sacudiria o Brasil e a ditadura militar, já agonizante na UTI da história.

 

 


Artigo do Jornal O Estudante com Marcelo Rubens Paiva em 1984 – Por Jeocaz Lee-Meddi

Marcelo Rubens Paiva foi recebido no auditório do Santa Cecília, num cenário que se via de um lado espaços cobertos por faixas de propaganda do PT, e de um outro, pessoas sentadas ou em pé, lotando o auditório. Marcelo Rubens Paiva entrou, trazendo o seu olhar maroto, meio infantil, meio adolescente. Percebia-se a satisfação de encontrar tanta gente a sua espera. Correu com os olhos todo o salão, sorriu satisfeito com o que via, como se acumulasse uma certa vitória em voltar a Santos, lugar onde viveu há anos atrás, como um ídolo.
Nos últimos tempos falar de Marcelo Rubens Paiva tornou-se moda nos bastidores da juventude anos oitenta. Instantaneamente nasceu um novo ídolo nacional. O mais curioso é que não é um ídolo imponente e de vigor inatingível, mas frágil pelas limitações de se encontrar em cima de uma cadeira de rodas. Sua presença trouxe ao auditório além dos candidatos e militantes do PT, pessoas de várias tendências políticas do grande balaio que chamam de Frente Democrática, agregadas às diversas alas do PMDB. Divergências políticas à parte, todos estavam ansiosos para ouvir o filho de Rubens Paiva falar. Curiosos para saber suas posições políticas, sua visão de mundo e de Brasil, suas experiências como escritor, enfim, não havia uma pauta ou um tema escolhido. O debate era aberto, à deriva dos curiosos e da capacidade carismática do jovem escritor. Numa época em que os eleitos em 1982 começam a decepcionar, talvez ter um ídolo limitado pela deficiência física traga a esperança de que o brasileiro e a juventude sejam maiores do que o Brasil que se constrói debaixo de uma ditadura. Um ídolo sem a demagogia dos políticos é tudo que essa juventude anseia. Uma esperança além das limitações.
Como explicar o fenômeno Marcelo Rubens Paiva? Mesmo tão jovem, já com uma história que ao se olhar para o seu passado, podemos dividi-lo em antes e depois do acidente que o vitimou, deixando-o paraplégico. A primeira fase da sua vida foi marcada pelo desaparecimento do pai, o deputado Rubens Paiva, levado pela ditadura militar no início dos anos setenta. Apesar da subtração do pai na sua vida, viveu aqui por Santos uma adolescência tão comum quanto a de qualquer um de nós. Fez parte desta cidade, estudando inclusive no mesmo colégio que eu estudei. Santos é uma lembrança tenaz, conforme ele mesmo afirma:
“Santos para mim representa o meu passado. Representa os meus pais, os meus avós, os meus amigos. Eu passei a minha adolescência aqui, estudei no Tarquínio Silva. Minha relação com Santos é sexual. Aqui tive minhas primeiras relações.”
Ao ouvi-lo falar, parece que estamos a ouvir qualquer um de nós que tomou cerveja no Gonzaga e apanhou onda no José Menino. Não nos damos conta da roda-viva que de repente este jovem foi atirado, fazendo com que seja obrigado a tomar posições e ter idéias formadas sobre todos os temas, porque ser escritor neste país é sinônimo de engajamento intelectual.
Após a adolescência em Santos, Marcelo Rubens Paiva foi parar aonde a maioria dos jovens santistas vão, São Paulo. O fato de ter tido um pai deputado e assassinado pela repressão, fez com que crescesse tendo uma visão política consciente e engajada. Muito cedo descobriu o que significava o regime autoritário que se instaurou no Brasil desde 1964. Em 1977, freqüentava a UNICAMP, é das dificuldades no movimento estudantil dessa época que ele nos fala:
”Naquela época fazer movimento estudantil era difícil. Não havia liberdade. Havia liderança de verdade. Quando um líder estudantil falava em greve, havia greve. Só haviam dois partidos políticos. Hoje o estudante tem mais opções, isso dividiu o movimento, porque o estudante não faz só movimento estudantil, ele faz política partidária também.”
Há uma distância muito grande entre o estudante de engenharia da UNICAMP e o Marcelo Rubens Paiva atual, cerceado de jovens a idolatrá-lo e a fazê-lo um ídolo. Percebe-se que assim como o sucesso o fascina, causa-lhe uma ligeira intimidação e uma perturbação ao cotidiano. São tantas as cobranças de posições mais claras, definições mais elaboradas, obrigando-o a refletir sobre todos os temas impostos, que diante da pressão de tantas perguntas sobre temas diversos e delicados fazem com que se assuste e vocifere tenazmente:
“Oh gente, não sou nenhum gênio.”
A curiosidade em saber se ele já superou o fato de ter se tornado um deficiente físico incomoda-o, principalmente quando as pessoas olham-no com uma certa tristeza, comentam que moço tão bonito não deveria estar em cima de uma cadeira de rodas. Foi contra esse tipo de preconceito e comiseração humana que ele mais lutou. Lutar contra os preconceitos foi o ponto de partida que deu origem ao livro Feliz Ano Velho.
“Eu queria mostrar para todo mundo que queria ser tratado como normal, apesar de ser deficiente. Escrevi esse livro para mostrar o lado leve da minha deficiência física, que foi o lado que eu encontrei. De repente, é difícil ver alguém que anda em cadeira de rodas sorrindo. Eu tive muito preconceito. E ainda tenho. Eu não me sinto um deficiente, mas já me acostumei com isso. É claro que é um tabu. Na minha faculdade eu tenho um cara que anda de cadeira de rodas e eu digo ‘olha que coitado’, até me esqueço que eu também ando sobre uma. A vida do deficiente é uma barra, você não tem como sobreviver em uma cadeira de rodas, não dá, em São Paulo ou em qualquer lugar do país. Eles não oferecem condições para isso. Mesmo a medicina, é um lado da Ciência que é difícil, microscópica, e, no entanto, ninguém faz investimento nisso, pois um ataque cardíaco dá mais dinheiro do que um deficiente. Todos têm preconceitos. É uma vida difícil, sem futuro, a não ser quando você escreve um livro.”
Feliz Ano Velho tornou-se um dos maiores best-sellers do Brasil. Um fenômeno em vendas. Tornou-se leitura obrigatória entre os universitários brasileiros. Seu sucesso fabuloso ganhou uma adaptação para o teatro, a peça homônima do livro, dirigida por Paulo Betti, foi a maior revelação dos palcos paulistanos no ano passado. Há a cogitação de uma adaptação também para o cinema. O fenômeno Marcelo Rubens Paiva é uma exceção em um país que se fabrica ídolos através da música, do cinema e mais comumente, da televisão, mas nunca através de um livro. Tornar-se um escritor consagrado com um único livro publicado raramente aconteceu na história da literatura brasileira. Escrito como um relato pessoal, sem maiores pretensões literárias, traz uma história direta, sem utilizar uma linguagem rebuscada, pelo contrário, traz uma linguagem próxima da falada pelos jovens de hoje, com os seus tradicionais palavrões, aliás, palavrões que o próprio Marcelo Rubens Paiva usa em sua linguagem com o público. Tentar explicar o porque de Feliz Ano Velho ser um fenômeno editorial no Brasil daria páginas e páginas de teses, sem nunca se chegar a um consenso. Talvez seja um espelho que reflete imagens turvas da juventude atual. O próprio autor surpreende-se com este sucesso que o transformou em uma pessoa famosa tão repentinamente:
“Entrei na literatura por um lapso. De repente, passei por uma transformação de vida que me fazia sentir vontade de ficar só, e, passar para o papel o que eu sentia. Tive sorte de ter um amigo que era dono de uma editora. Isso já facilitou muito. Foi assim que me tornei um escritor.”
Já como uma celebridade, é hora de assumir bandeiras e posições em um país que luta pela volta da democracia e pela volta dos generais à caserna. E na sua escolha partidária, definiu-se pelo Partido dos Trabalhadores:
“O PT entra como um pedaço da nossa crise externa. Fazer política com toda essa confusão é um sacrifício. Hoje, eu nem sei o que eu quero, não sei mesmo. Há vinte anos nós tínhamos exemplos claros, como Cuba, onde poderíamos seguir. Hoje, nós só temos uma dívida enorme e não sei como vão pagar isso.”
Mesmo diante de uma suposta confusão ideológica dos modelos a ser seguidos dentro do atual panorama mundial, está muito seguro na escolha partidária que fez, considerando-a a mais viável:
“O PT não vai resolver as coisas, mas é uma pequena fatia. Quem vai resolver é você. É você reivindicando através da sua casa, do seu sindicato, é você mudar o micro para poder mudar o macro. Nós não somos operários e estamos num partido operário. Uma boa maneira que o Brasil, a Colômbia e a Venezuela tinha de pagarem a dívida externa era plantar cocaína e maconha e exportá-las para os EUA, porque lá eles adoram coca, seria uma forma da gente se vingar de tudo o que eles fizeram com a gente.”
Marcelo Rubens Paiva usa uma forma descontraída e irreverente para responder às questões que lhe são feitas, tratando-as com uma leveza latente. Quando o assunto é o pai, a leveza dá passagem para uma reflexão mais intimista, trazendo uma resposta mais contida:
“Fazer um paralelo entre o meu pai e eu é simples, é que ele mergulhou de cabeça no mundo da política e foi assassinado, e eu mergulhei de cabeça na juventude e aconteceu o que aconteceu.”
E parece mergulhar um pouco mais dentro de si, permitindo-se ir mais longe diante de um público tão afoito:
“Deus, para falar sinceramente, eu não acredito em Deus com D maiúsculo, um Deus como o que me apresentam. Acredito no acaso, na energia. Deus é um adjetivo. Sócrates para mim é deus, porque o que ele fez no campo de futebol é incrível.”
Novamente a leveza toma conta do seu discurso e entusiasma o auditório, que procuram arrancar mais conceitos do nosso jovem escritor, ansiosos para ouvir o que ele pensa sobre a liberdade, sem defini-la existencial ou ideológica:
“Liberdade? Não acho que liberdade ‘é uma calça velha, azul e desbotada’. A liberdade nunca vai existir totalmente. Eu não me considero livre. Calma, também não preciso saber de tudo.”
Pára e toma fôlego. Assustado ou cansado, prossegue após pedir calma. Se aquela juventude que ali está quer se espelhar nele, então dá mais pistas da sua forma de ver o mundo. Fala inclusive sobre o machismo:
“Por menos que a gente queira não ser machistas, não dá, nós fomos criados numa sociedade machista. O homem de hoje está numa crise profunda, o homem não é mais romântico, mas também não é aquele durão. Nós não queremos ser machistas, mas somos, não adianta. A gente continua cantando as mulheres nas ruas, mas não somos cantados por elas. Eu nunca fui. Até gostaria.”
Como insistiu em dizer que Feliz Ano Velho foi um relato, um desabafo de vida que deu certo, há a expectativa se continuará a escrever, seja relatos pessoais ou pura ficção. Mas ele prefere não fazer planos sobre a sua eventual carreira como escritor literário:
“Escrever sobre a minha vida foi fácil. Agora pretendo fazer personagens fictícios. Continuo escrevendo para a Veja, para a Status, até mesmo para a Capricho. A literatura no Brasil é uma coisa chata. O escritor de hoje, de repente, está tendo um descompromisso com o sério, deixando de ser apenas uma pessoa séria, que fuma cachimbo e está distante das pessoas. Ele é uma pessoa normal.”
Se entrará para a história da literatura ou não, Marcelo Rubens Paiva é hoje um fenômeno de consenso nacional. Nesse período do desgaste de vinte anos da ditadura, a juventude brasileira faz dele um símbolo de perseverança diante das limitações. O que era para ser um desabafo de vida, um grito diante da fatalidade humana, foi transformado em um grande acontecimento literário. Se o jovem autor fará novos best-sellers, ninguém sabe, segue o estigma do sucesso imediato da primeira obra que às vezes, persegue o seu autor para o resto da vida. Se nasceu um escritor ou um fenômeno fugaz, só o tempo o dirá. Entre a personagem agressiva, cáustica e revoltada de Feliz Ano Velho e o autor de hoje, encontramos um homem mais tranqüilo, mais leve e condescendente com a sua limitação física. Tenta ser apenas um jovem comum, que vive o seu tempo e o momento da sua juventude.
Já fora do auditório, longe das perguntas da platéia, encontro-o frente a frente, fazendo-lhe uma última pergunta: se Feliz Ano Velho fosse escrito hoje, seria diferente? Pela primeira vez não dá uma resposta de imediato, um breve silêncio parece revelar que ele prefere pensar antes de dar a resposta. Apesar de levar mais tempo para responder, dá a resposta mais curta:
“Seria.”
Não diz mais nada. Segue o seu caminho, levado por alguém que lhe empurra a cadeira de rodas. Vou seguindo com os olhos a cadeira de rodas se distanciar, ali vai a maior sensação revelada nos últimos anos através de um livro. Tem um ar de menino, uma juventude que pulsa além das suas mãos trêmulas e sem coordenação motora. Parece estar aliviado depois de responder a tantas perguntas. A fama tem o seu preço. Fazer-lhe reverências é como um acerto de contas que todo o país tem para com ele, afinal os pássaros amargos do Brasil tiraram-lhe o pai. A imensa fome de viver intensamente a sua juventude tirou-lhe os movimentos das pernas. Relatar os dissabores devolveu-lhe os sonhos da juventude. Fenômeno passageiro ou não, herói frágil ou leveza irreverente da alma, as nossas homenagens a este sobrevivente do Brasil.


Obras de Marcelo Rubens Paiva:

Ficção:

1982 – Feliz Ano Velho
1986 – Blecaute
1990 – Ua: brari
1992 – As Fêmeas
1994 – Bala na Agulha
1996 – Não És Tu Brasil
2004 – Malu de Bicicleta
2006 – O Homem Que Conhecia as Mulheres

Teatro:

1989 – 525 Linhas
1998 – Da Boca Pra Fora (E Aí, Comeu?)
2001 – Mais Que Imperfeito
2003 – Closet Show
2003 – No Retrovisor
2006 – Amo-te
 
 
 
 
 
 
 
publicado por virtualia às 05:45
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