Domingo, 12 de Outubro de 2008

CONTOS DA MONTANHA - MIGUEL TORGA

 

 

Analisar os contos de Miguel Torga é como analisar reflexos sociais do interior de Portugal. Suas personagens trazem o genuíno habitante da montanha. Ao nos adentrarmos pela paisagem humana das aldeias transmontanas, encontramos em cada esquina os rostos descritos no universo de Torga. Quantas lendas e costumes não nos conta essa gente que a narrativa de Torga registrou. São personagens inseridas no ambiente rústico e pobre das aldeias. São personagens natos nas dificuldades do frio cortante das montanhas e passam pela vida com a visão irônica de todo o meio do qual emanam as tradições, as crenças, o trabalho, a religião.
Tomando como base os “Contos da Montanha”, (8ª edição - Coimbra - 1996), vamos encontrar diversas personagens que nos mostra o universo regionalista de Miguel Torga. Nos contos de Torga as ações decorrem num emaranhado de emoções, onde as personagens vivem tais ações num tempo ilimitado, quase descrito em uma vida. Neles o devir temporal acontece sempre do presente para o futuro, onde o narrador adquire uma existência textual, quase como quem conta a vida das personagens e assume a forma de como elas pensam. Em cada conto o retrato de uma sociedade pobre e tipicamente da época do Portugal do Estado Novo (tais contos foram publicados pela primeira vez em 1941), onde o lema “Deus, Pátria e Família” é perseguido através do profundo catolicismo, do amor à terra e à família, onde a miséria faz dos sonhos e dos ideais situações de mera ironia, quase que um fado.

A Mulher das Aldeias

Maria Lionça, do conto “A Maria Lionça”, aceita com dignidade o seu fado, sem contestá-lo, ao resignar-se à miséria e à dor. O marido emigrou em busca de melhores condições e volta velho e doente; o filho persegue o inconformismo do pai e parte perseguindo o vazio, deixando à Maria Lionça apenas a dignidade da dor, e o respeito de todos pela forma como da vida apenas aceita o fado. Sim, ao abdicar da condição de mulher para apenas ser mãe e fiel ao amor que partiu, ao enterrar o marido e depois o filho, a dor também toma forma de vida, e só quem tem dignidade sabe sobreviver a ela. E a própria resignação de Maria Lionça diante da dor e da fatalidade da vida, fez com que ela se tornasse um mito:

Fala-se nela e paira logo no ar um respeito silencioso, uma emoção contida, como quando se ouve tocar a Senhor fora. E nem ler sabia! Bens - os seus dons naturais. Mais nada. Nasceu pobre, viveu pobre, morreu pobre, e os que, por parentesco ou mais chegada convivência, lhe herdaram o pouco bragal, bem sabiam que a grandeza da herança estava apenas no íntimo sentido desses panos. Na recatada alvura que traziam da arca e na regularidade dos fios do linho de que eram feitos, vinha a riqueza duma existência que ia ser a legenda de Galafura.”

Assim, o próprio mito também é coberto de dor, a dignidade do mito é mais forte do que a de uma heroína carismática, Maria Lionça representa a alma portuguesa diante das obrigações de mulher que se anula e dá passagem para a mãe, a que cuida do filho e sonha com a volta do amor que a vida levou. Quase como anti-herói, a personagem aqui representa muitas mulheres que permaneceram na terra, a lavrá-la, amá-la e respeitá-la, enquanto os companheiros perseguiam os sonhos de melhores condições sociais, onde a emigração era vista como a grande promessa. Muitos voltavam arruinados, doentes, sem esperanças, mas voltavam à terra que nasceram ainda que mais não fosse para morrer nos braços das fiéis mulheres que ali permaneceram, sem sonhos, sem nada.

O Homem Entre a Marginalização e a Aventura

Menos conformistas são o ladrão Faustino de “Um Roubo” e o Firmo de “Homens de Vilarinho”, onde ambos, de maneiras diferentes - um pelo roubo, outro pela aventura - tentam fugir do meio em que foram inseridos e, portanto são marginalizados pelos da aldeia; o primeiro que não é dado ao trabalho do campo, tem um velho sonho: assaltar a Senhora da Saúde. Decide que precisa alimentar a família, para tal efeito roubará a caixa de esmolas da igreja. É notável a luta psicológica da personagem entre o certo e o errado, o humano e o divino, a farsa e a realidade:

“Embora gatuno de profissão, pois que não se podia chamar cesteiro a quem só lá de tempos a tempos fazia um cesto por desfastio, Faustino, mal deu de chofre com a capela, teve um baque no coração. E parou. Nunca assaltara nenhum lugar sagrado. Sempre era roubar a Senhora da Saúde!”

Mas Faustino respeita a profissão que tem, como um egocêntrico Robin Hood, achava de direito tirar da santa que tanto tinha, para dar a si próprio, pobre ladrão miserável. E para concretizar tal sonho, caminhou durante a noite debaixo de uma chuva pesada. Todo molhado, chega à capela e descobre que a caixa de esmolas está vazia, sente-se lesado, chega à conclusão de que o verdadeiro ladrão é o padre, afinal foi quem limpou a caixa e deu fim ao dinheiro. Com a ironia cáustica que é comum em Miguel Torga, o pobre ladrão volta para casa sem o dinheiro, o sonho desfeito, com muita febre por andar à chuva. Pouco tempo depois está moribundo. Mesmo em delírio, já a receber a extrema-unção, ele não perde a forma de rebelião, ao acusar o padre de ladrão.
O Firmo, não é ladrão, mas também tem a alma maior do que o meio em que surgiu e ao qual está confinado. O espírito é o da aventura. Mas como a sua aventura é viver os perigos da estrada e dos lugares distantes, sem o retorno do dinheiro dos emigrantes, o Firmo é acusado pela aldeia e pelo padre de não ter raízes e amor à terra e à família, o que levaria também à falta de amor a Deus. O padre (que tem mulher e filhos, por isso ele próprio inadaptado na condição do celibato e criticado pelo bispo), tenta por tudo prender o Firmo à família e à terra, para que leve uma vida tranqüila e de temor a Deus. O Firmo tenta satisfazer ao padre e à família, domesticando em si a força da aventura. Mas dentro dele existe aquele que não se adapta à terra e ao tempo em que socialmente são vividas as histórias, decide por fim partir:

“Nem parecia o mesmo. Como um homem se modifica! Lá diz o ditado: Infeliz pássaro que nasce em ruim ninho. Tanto monta correr, como saltar: as asas puxam-no sempre para onde aprendeu a voar. Pusessem os olhos naquele exemplo.”

Um Olhar Português

Talvez seja esta a chave do universo de Miguel Torga, as histórias das aldeias, onde honra, trabalho, luta e personalidades tomam formas próprias. As personagens estão condicionadas ao espaço e ao ambiente, mas psicologicamente são superiores ao meio de onde certamente jamais irão sair. De uma forma bem-humorada, a tragédia anda lado a lado com a vida, mas como na literatura portuguesa a tragédia geralmente toma forma de fado, ao contrário dos clássicos gregos, onde jorra o sangue, aqui a fatalidade é vista com ironia, quase sarcasmo, de um humor tipicamente português. De um vocabulário rico, uma narrativa densa e povoada de descrição psicológica e social, Miguel Torga parece brincar com as personagens, parece conhecê-las como as linhas das mãos. Dentro da simplicidade de uma vida do campo, onde a miséria é rica em lendas, em misticismos, ninguém como ele consegue tal proeza. Talvez o maior dos contistas contemporâneos, Miguel Torga descreve dentro do conto regionalista um universo plural, onde as personagens tornam-se universais. Um universo mágico de gente e lendas que todos nós já ouvimos falar, lendas que nos foi contada pelos nossos avós, por alguém já distante, mas que retratam vidas.
Quem nunca ouviu falar em bruxedos mortais, como o que dizimou a Melra em “O Bruxedo”, ou do infeliz menino órfão que, para defender o rebanho do seu malvado tutor, matou o lobo feroz, como o fez o Gonçalo de “Maio Moço”, transformando-se em herói das aldeias. Aqui, ao contrário de Maria Lionça, o mito é construído diante do ato de coragem e heroísmo próprio dos fortes, acrescentando os populares ao mito o que melhor lhes parecesse:

“Herói do povo, aconchegavam -no orgulhosamente à fibra mais generosa do coração. Inventavam-lhe façanhas antigas, ditos cheios de graça, habilidades que nunca tivera. Do deserto monótono de outrora ia surgindo uma biografia rica, divertida, recheada de peripécias e de sentido. Pareciam abelhas a encher um favo. Ninguém queria deixar de colaborar na gesta redentora.”

Há ainda a história da pobre virgem desgraçada pelo aproveitador Arlindo de “A Paga”, cuja castração do mal-feitor é a solução para a defesa da honra caprichosa. Também há emigrantes vencedores, como o Lucas de “A Promessa”, que quase morto no Brasil, faz uma promessa que não pode cumprir, devido aos desvarios da mulher, deslumbrada com a nova condição de rica. Há as dores da vida em “O Cavaquinho”, enfim, um olhar lacônico diante da vida, sempre a fugir dos sonhos para a dura realidade em que o país vivia, rico em história, encerrado numa ditadura que atravessaria quase metade do século, um olhar português, mordaz, irônico, melancólico e saudosista.
Histórias das terras do granito, das rochas frias, dos invernos intensos e sem fim, da gente do campo e suas tradições. Talvez o universo regionalista de Torga só seja comparado com o universo complexo de Guimarães Rosa ao descrever os sertões brasileiros. Torga possui dentro do conto um domínio único. As personagens e as histórias são rápidas, intensas, densas, com uma surpresa agradável ao fim de cada uma delas, onde o espaço social das personagens muitas vezes é confundido com o espaço psicológico, onde elas tomam uma forma sempre inquietante no tempo que desenrolam, fazendo com que tenhamos a certeza de que fomos canalizados durante todo o texto para um final trabalhado.

Miguel Torga

Nascido em São Martinho de Anta, Vila Real, região transmontana portuguesa, em 12 de agosto de 1907, Adolfo Correia Rocha tornou-se sob o pseudônimo de Miguel Torga, um dos maiores escritores portugueses do Século XX. Filho de uma família humilde emigrou para o Brasil aos doze anos, vivendo em Leopoldina, onde trabalhou com um tio em sua fazenda de café. De inteligência intelectual privilegiada, fez com que o tio lhe custeasse os estudos. Custeado pelo tio, voltou para Portugal, onde se formou em medicina em Coimbra.
Mas foi na literatura que o doutor Miguel Torga cuidou da saúde psicológica de milhares de personagens, construindo uma literatura de caráter humanista. A obra de Torga descreve principalmente o homem transmontano e seus costumes, crenças e tradições. Foi o primeiro vencedor do Prêmio Camões. Morreu em Coimbra, em 17 de janeiro de 1995.

 


 
 
 
OBRAS:

Poesia:

1928 – Ansiedade
1930 – Rampa
1931 – Tributo
1932 – Abismo
1936 – O Outro Livro de Job
1943 – Lamentação
1944 – Libertação
1946 – Odes
1948 – Nihil Sibi
1950 – Cântico do Homem
1952 – Alguns Poemas Ibéricos
1954 – Penas do Purgatório
1958 – Orfeu Rebelde
1962 – Câmara Ardente
1965 – Poemas Ibéricos

Ficção:

1931 – Pão Ázimo
1931 – Criação do Mundo
1934 – A Terceira Voz
1937 – Os Dois Primeiros Dias
1938 – O Terceiro Dia da Criação do Mundo
1939 – O Quarto Dia da Criação do Mundo
1940 – Bichos
1941 – Contos da Montanha
1942 – Rua
1943 – O Senhor Ventura
1944 – Novos Contos da Montanha
1945 – Vindima
1951 – Pedras Lavradas
1974 – O Quinto Dia da Criação do Mundo
1976 – Fogo Preso
1981 – O Sexto Dia da Criação do Mundo
1982 – Fábula de Fábulas

Peças de Teatro:

1941 – “Terra Firme” e “Mar”
1947 – Sinfonia
1949 – O Paraíso
1950 – Portugal
1955 – Traço de União
 




CRONOLOGIA

1907 – Nasce Adolfo Correia da Rocha em São Martinho de Anta (distrito de Vila Real).
1920 – Emigra para o Brasil.
1925 – Regressa do Brasil.
1927 – Fundação da "Presença" em que colabora desde o começo.
1928 – Ingressa na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra; Ansiedade, primeiro livro, poesia.
1930 – Deixa a "Presença".
1931 – Pão Ázimo, primeiro livro em prosa.
1933 – Formatura em Medicina.
1934 – A Terceira Voz, prosa; passa a usar o pseudônimo Miguel Torga.
1936 – O outro livro de Job, poesia.
1937 – A Criação do Mundo - Os dois primeiros dias.
1939 – Abertura do consultório médico, em Coimbra.
1940 – Os Bichos.
1941 – Primeiro volume do Diário; Contos da Montanha, que será reeditado no Rio de Janeiro; Terra Firme, Mar, primeira obra de teatro.
1944 – Novos Contos da Montanha; Libertação (poesia).
1945 – Vindima, o primeiro romance.
1947 – Sinfonia (teatro).
1950 – Cântico do Homem (poesia); Portugal.
1954 – Penas do Purgatório (poesia).
1958 – Orfeu Rebelde, poesia.
1965 – Poemas Ibéricos.
1981 – Último volume de A Criação do Mundo.
1993 – Último volume do Diário (XVI).
1995 – Morre Adolfo Correia da Rocha.
 
 
 
 
 
 
 
 
publicado por virtualia às 22:10
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